Manual Antiautoajuda Antiajuda Oliver Burkemann

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"O mundo e um lugar perigoso, não por causa dos que fazem, mas por causa dos que veem e
não fazem nada."

Tradução

ANDRÉ FONTENELLE

Aos meus pais

A lei do esforço invertido sempre me fascinou. Às vezes eu a chamo de “a lei do reverso”.
Quanto mais você tenta boiar, mais afunda; mas quando você tenta afundar, você boia... A
insegurança resulta do esforço para sentir-se seguro... Inversamente, a salvação e a sanidade
advêm do reconhecimento mais radical de que não há como nos salvarmos.
Alan Watts, The Wisdom of Insecurity [A sabedoria da insegurança]

Eu ia comprar um exemplar de O poder do pensamento positivo.
Então, pensei: “De que diabos isso vai adiantar?”.
Ronnie Shakes
Sumário

1. Da busca excessiva da felicidade
2. O que Sêneca faria?
A arte estoica de encarar a pior das hipóteses
3. A tempestade antes da calmariaUm guia budista para não pensar positivo
4. Obcecado por metas
Quando não adianta tentar controlar o futuro
5. Quem está aí?
Como superar o próprio ego
6. A armadilha da segurança
As vantagens ocultas da incerteza
7. O Museu do Fracasso
Argumentos para assumir seus erros
8. Memento mori
A morte como estilo de vida
Epílogo: Capacidade negativa
Agradecimentos
Notas

1. Da busca excessiva da felicidade

Estabeleça a seguinte missão para você mesmo: não pensar num urso-polar. Você verá que o
maldito troço virá à sua mente de minuto em minuto.
Fiódor Dostoiévski, Notas de inverno sobre impressões de verão

O homem que afirma estar prestes a me revelar o segredo da felicidade humana tem 83 anos
e um preocupante bronzeado alaranjado, que em nada contribui para sua credibilidade. Passa um
pouco das oito horas da manhã de dezembro, num escuro ginásio de basquete na periferia de San
Antonio, Texas, e — de acordo com o homem laranja — dentro de instantes eu vou descobrir “a coisa
que vai mudar sua vida para sempre”. Duvido, mas não tanto quanto de costume, porque sou apenas
um entre mais de 15 mil pessoas presentes ao Motive-se!, o “seminário motivacional de negócios
mais popular” dos Estados Unidos. O entusiasmo de meus colegas de plateia começa a me contagiar.
“E aí, vocês querem saber?”, pergunta o octogenário, que vem a ser o dr. Robert H. Schuller,
guru de autoajuda, autor de mais de 35 livros sobre o poder do pensamento positivo, e, no restante
do tempo, pastor-fundador da maior igreja quase toda feita de vidro nos Estados Unidos. A plateia
grita: “Sim!”. Britânicos envergonhados, como eu, não gritam “Sim!” em seminários motivacionais
em ginásios de basquete texanos, mas por um instante o ambiente supera, em parte, minha
reticência. Eu grito “Sim!” baixinho.
“Então lá vai”, afirma o dr. Schuller, andando de um lado para outro do palco, enfeitado com
duas enormes faixas com os dizeres “MOTIVE-SE!” e “FAÇA SUCESSO!”, dezessete bandeiras
americanas e inúmeros vasos de plantas. “Eis aquilo que vai mudar sua vida para sempre.” Ele urra,
então, uma única palavra: “Corte…” — e depois de uma pausa dramática completa a ase — “… a
palavra ‘IMPOSSÍVEL’ da sua vida! Corte! Corte fora para sempre!”.
A plateia pega fogo. Não consigo conter o sentimento de decepção, mas talvez eu não devesse
esperar outra coisa do Motive-se!, um evento onde só o que conta é o poder da positividade pura.

“Você é o senhor do seu destino!”, prossegue Schuller. “Pense grande, sonhe grande! Ressuscite as
esperanças
perdidas! O pensamento positivo funciona para todos os setores da vida!”
A lógica da filosofia de Schuller, que é a doutrina do pensamento positivo no que ela tem de
mais puro, não chega a ser complicada: adote pensamentos felizes e de sucesso, afaste os fantasmas
da tristeza e do acasso, e a felicidade e o sucesso virão. Alguém pode argumentar que nem todos os
palestrantes relacionados no bonito catálogo do seminário acrescentam evidências irrefutáveis em
favor dessa visão: a palestra principal, dali a algumas horas, será dada por George W. Bush, um expresidente que está longe de ter sido uma unanimidade. Mas, se você expressar essa objeção ao dr.
Schuller, ele provavelmente irá descartá-la como “pensamento negativo”. Criticar o poder da
positividade é a prova de que você não o captou. Se tivesse captado, não estaria resmungando sobre
essas coisas. Aliás, não estaria resmungando sobre nada.
Os organizadores do Motive-se! o definem como um seminário motivacional, mas essa
expressão — que faz pensar em motivadores de segunda linha dando palestras em salões de baile
de hotéis decrépitos — não descreve a escala e a grandiosidade do negócio. Realizado ao longo de
aproximadamente um mês em cidades de toda a América do Norte, o evento é o ápice da indústria
global do pensamento positivo e pode se vangloriar de um time de peso de celebridades
palestrantes: Bill Clinton já participou, Mikhail Gorbatchev e Rudy Giuliani são assíduos, assim como
o general Colin Powell e, um tanto deslocado, William Shatner. Se de repente você se der conta de
que um personagem importante da política internacional do passado (ou William Shatner) tem
aparecido pouco na mídia nos últimos meses, é bem possível que você o encontre no Motive-se!,
pregando o evangelho do otimismo.
Como convém a esse tipo de celebridade, não há nada decrépito no cenário. São fileiras de
holofotes, equipamentos de som martelando clássicos do rock, fogos de artifício caríssimos: cada
palestrante sobe ao palco em meio a uma chuva de faíscas e uma nuvem de fumaça. Esses efeitos
especiais ajudam a transportar o público a níveis ainda mais altos de animação. Claro que não
atrapalha nem um pouco o fato de, para muitos deles, a viagem para o Motive-se! representar um
dia de folga: muitos patrões consideram o dia como treinamento profissional. Até as Forças Armadas
americanas, onde “treinamento” tende a significar algo mais rigoroso, aderiram a essa ideia: em San
Antonio, dezenas de cadeiras no ginásio são ocupadas por soldados uniformizados da base local do
exército.
Tecnicamente, eu estou ali clandestino. Tamara Lowe, que se apresenta como a “palestrante
motivacional número um do mundo” e que dirige com o marido a empresa por trás do Motive-se!,
foi acusada de negar acesso a jornalistas, uma tribo famigerada pelo pensamento negativo. Lowe
nega a acusação, mas, por via das dúvidas, apresentei-me como “um homem de negócios autônomo”
— tática que, só agora me dou conta, me faz parecer desonesto. No fim das contas, eu nem precisava
ter me preocupado em bolar uma desculpa qualquer, pois estou tão longe do palco que os
seguranças não conseguiriam me ver rabiscando meu bloco. No ingresso, meu assento está marcado
como “premier”, mas é apenas um caso de exagero do pensamento positivo: no Motive-se!, há
apenas três tipos de assento: “premier”, “executivo” e “VIP”. Na verdade, o meu está no setor mais

distante: um assento de plástico que faz doer o bumbum. Mas eu até agradeço, porque por acaso
me fez sentar ao lado de um homem que, até onde pude discernir, é um dos poucos cínicos no ginásio
— um guarda-florestal simpático e espaçoso chamado Jim, que de vez em quando se levanta para
gritar: “Estou tããão motivado!”, num tom carregado de sarcasmo. Jim explica que seu empregador,
o Serviço de Parques Nacionais dos Estados Unidos, exigiu que ele comparecesse. Quando perguntei
por que eles obrigariam guardas-florestais a fazer isso no horário de trabalho, ele admitiu
alegremente que não tinha “p* nenhuma de ideia”.
O sermão do dr. Schuller, enquanto isso, vai ganhando empolgação. “Quando eu era pequeno,
ir à Lua era impossível para o homem; tirar o coração de uma pessoa e botá-lo no peito de outra era
impossível… A palavra ‘impossível’ mostrou-se absolutamente estúpida!” Ele não perde muito tempo
apresentando outras evidências para sua afirmação de que o acasso é uma escolha: está claro que
Schuller — autor dos livros O pensamento da possibilidade
conduz ao êxito e Tempos duros não duram para sempre; pessoas duras, sim! — é um homem de
inspiração, muito mais que de argumentos. Em todo caso, ele é apenas o homem do aquecimento
para os principais palestrantes do dia, e ao fim de quinze minutos ele deixa o palco, ovacionado sob
os fogos de artifício, punho cerrado vitoriosamente na direção do público. O retrato do sucesso do
pensamento positivo.
Só meses depois, na minha casa em Nova York, lendo os jornais enquanto tomo meu café da
manhã, é que fico sabendo que a maior igreja dos Estados Unidos construída quase toda de vidro
estava em processo de falência, palavra que o dr. Schuller aparentemente esqueceu de eliminar de
seu vocabulário.

Para uma civilização tão obcecada em alcançar a felicidade, somos incrivelmente
incompetentes nisso. Um dos achados mais conhecidos da “ciência da felicidade” foi descobrir que
as muitas vantagens da vida moderna pouco contribuíram para melhorar nosso estado de espírito. A
verdade desconfortável parece ser de que o crescimento econômico não garante sociedades mais
felizes, da mesma forma que uma renda pessoal maior, acima de um nível mínimo, não garante
pessoas mais felizes. Nem uma educação melhor, pelo menos de acordo com algumas pesquisas.
Nem um número cada vez maior de produtos de consumo. Nem casas maiores e mais bonitas, que
parecem garantir apenas o privilégio de mais espaço onde se sentir deprimido.
Talvez não seja preciso dizer que livros de autoajuda, a apoteose moderna da busca pela
felicidade, estão entre as coisas que não nos tornam mais felizes. Mas, só para registrar: estudos
indicam fortemente que eles não costumam ajudar muito. É por isso que alguns editores de
autoajuda chamam isso de “regra dos dezoito meses”. Por essa regra, a pessoa mais suscetível a
comprar um livro de autoajuda é aquela que nos dezoito meses anteriores comprou um livro
semelhante — que evidentemente não resolveu seus problemas. Isso não causa surpresa quando
você percorre com um olhar imparcial as prateleiras de autoajuda. É compreensível o nosso desejo
por soluções simples, em forma de livro, para os problemas humanos; mas, tirando a embalagem, o
que fica são mensagens banais. Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes o aconselha,

basicamente, a decidir o que é mais importante na sua vida e depois agir; Como fazer amigos e
influenciar pessoas aconselha os leitores a serem gentis, não insolentes, e a chamar as pessoas pelo
primeiro nome. Um dos manuais de administração mais bem-sucedidos dos últimos anos — Peixe!
Como motivar e gerar resultados —, voltado para a promoção da felicidade e da produtividade no
ambiente de trabalho, sugere distribuir peixinhos de brinquedo aos funcionários mais dedicados.
Como veremos, quando as mensagens se tornam mais específicas que isso, os gurus de
autoajuda têm tendência a fazer afirmações que simplesmente não têm sustentação em pesquisas
sérias. As evidências apontam, por exemplo, que expressar sua raiva não a faz passar, e que visualizar
suas metas não aumenta sua chance de atingi-las. E qualquer que seja a análise das pesquisas
mundiais de felicidade nacional que são publicadas de vez em quando, chama a atenção que os países
“mais felizes” nunca são aqueles onde os livros de autoajuda são mais vendidos, nem aqueles em
que os psicoterapeutas profissionais dão mais consultas. A existência de uma “indústria da
felicidade” em plena expansão claramente não basta para engendrar a felicidade nacional, e não é
absurdo pensar que ela pode até piorar a situação.
Mas a ineficácia das estratégias contemporâneas para atingir a felicidade é apenas uma
pequena parte do problema. Existem bons motivos para acreditar que a noção de “buscar a
felicidade”, em si, já nasce problemática. Antes de tudo, quem foi que disse que a felicidade é uma
meta válida? As religiões nunca deram ênfase explícita a ela, pelo menos não nesta vida; os filósofos,
com certeza, também não apoiaram unanimemente essa ideia. E qualquer psicólogo evolucionista
dirá que, do ponto de vista evolutivo, há pouco interesse em que você seja feliz além do suficiente
para não perder o interesse em reproduzir-se.
Mesmo que se considere a felicidade um objetivo digno, porém, há uma armadilha pior à
espreita: almejá-la torna muito mais provável que você nunca consiga alcançá-la. “Pergunta a ti
mesmo se és feliz”, observou o filósofo John Stuart Mill, “e deixarás de sê-lo.” Na melhor das
hipóteses, a felicidade pode ser vislumbrada com o rabo do olho, nunca encarada diretamente
(temos tendência a esquecer os momentos felizes do passado com muito mais facilidade do que nos
damos conta da felicidade presente). Para piorar as coisas, é impossível definir em palavras o que é
felicidade. Mesmo supondo que isso fosse possível, provavelmente acabaríamos com tantas
definições diferentes quanto há pessoas no planeta. Tudo isso torna tentador concluir que “como
podemos ser felizes?” é simplesmente uma pergunta errada: que é melhor nos resignarmos a nunca
buscar a resposta e, em vez disso, cuidar de coisas mais produtivas.
Mas será que existe uma terceira possibilidade, entre, de um lado, o esforço inútil em busca
de soluções que parecem ineficazes e, de outro, a desistência pura e simples? Depois de vários anos
cobrindo a área da psicologia como jornalista, um dia, enfim, caiu minha ficha de que talvez exista.
Comecei a notar algo em comum entre psicólogos e filósofos — e até um ou outro guru de autoajuda
— cujas ideias parecem ficar de pé. A conclusão espantosa a que todos eles chegaram, por caminhos
diferentes, foi a seguinte: que o esforço para tentar sentir-se feliz é, muitas vezes, justamente o que
nos deixa tristes. E que nossos esforços para eliminar tudo que é negativo — insegurança, incerteza,
acasso ou tristeza — é o que nos faz inseguros, ansiosos, indecisos ou infelizes. No entanto, eles não
acharam desagradável essa conclusão. Ao contrário, argumentaram que isso aponta para uma

abordagem alternativa, um “caminho negativo” para a felicidade, que pressupõe ter uma atitude
totalmente diferente em relação àquilo que passamos a vida inteira tentando evitar. Envolve
aprender a apreciar a incerteza, abraçar a insegurança, parar de tentar pensar positivo, acostumarse ao acasso e até aprender a valorizar a morte. Resumindo, toda essa gente parece concordar que,
para sermos felizes de verdade, talvez tenhamos que nos dispor a vivenciar mais emoções negativas
— ou, no mínimo, parar de fugir tanto delas. Esse é um pensamento que causa perplexidade, que
põe em questão não apenas nossos métodos de busca da felicidade, mas nosso próprio conceito do
real significado da palavra “felicidade”.
Hoje em dia, essa noção tem menos mídia do que o sermão de que devemos ser positivos em
qualquer circunstância. Mas esse ponto de vista tem uma história surpreendentemente longa e
respeitável. Pode-se encontrá-lo na obra dos filósofos estoicos da Grécia e da Roma antigas, que
valorizavam os benefícios de sempre imaginar a hipótese mais pessimista. Está no cerne do budismo,
que prega que a verdadeira segurança reside na aceitação irrestrita da insegurança: no
reconhecimento de que nossos pés nunca estão em solo firme e nunca estarão. É o que fundamenta
a tradição medieval do memento mori, que celebrava o quanto faz bem à vida não esquecer que a
morte existe. E é o que liga escritores new age — como Eckhart Tolle, professor e autor de bestsellers espirituais — à maioria das obras da psicologia cognitiva, sobre a natureza autoderrotista do
pensamento positivo. É essa abordagem “negativa” da felicidade que também ajuda a explicar por
que tanta gente acha tão benéfica a meditação atenta; por que uma nova geração de pensadores da
área de negócios está aconselhando as empresas a deixar de lado a obsessão com metas e aceitar a
incerteza; e por que, nos últimos anos, alguns psicólogos chegaram à conclusão de que o pessimismo
pode ser, muitas vezes, tão saudável e produtivo quanto o otimismo, ou até mais.
O princípio por trás de tudo isso é aquilo que Alan Watts, filósofo da contracultura dos anos
1950 e 1960, na esteira de Aldous Huxley, batizou de “lei do esforço invertido”, ou “lei do reverso”:
o conceito de que em todo tipo de situação, de nossa vida privada à política, todo esforço para fazer
tudo dar certo é, em grande parte, justamente o que há de errado. Ou, citando Watts, “quanto mais
você tenta boiar, mais afunda; mas quando você tenta afundar, você boia”; e que “a insegurança
resulta do esforço para sentir-se seguro”. Muitas vezes, escreveu Huxley, “quanto mais tentamos
fazer algo conscientemente, menos conseguimos”.
O caminho negativo para a felicidade não é um argumento em favor da teimosia “do contra”
a qualquer preço: você não vai melhorar as coisas se pular na ente de um ônibus, por exemplo, em
vez de evitá-los. Nem significa que haja algo necessariamente errado com o otimismo. É mais útil
pensar nele como um bem-vindo contrapeso a uma cultura obcecada pela ideia de que o otimismo
e o positivismo são os únicos caminhos possíveis para a felicidade. É claro que muitos de nós já somos
saudavelmente céticos quando o assunto é pensamento positivo. Mas vale notar que até aqueles
que desdenham o “culto do otimismo”, como o batizou o filósofo Peter Vernezze, acabam por
legitimá-lo sem querer, ao pressupor que, já que não podem ou não vão aderir a essa ideologia, a
única alternativa é resignar-se, em vez disso, ao negativismo, a uma espécie de ranzinzice irônica. O
“caminho negativo” é uma rejeição dessa dicotomia e a busca, em vez disso, da felicidade que vem

por meio do negativismo. Não se trata de tentar abafar o negativismo com uma alegria incessante. A
fixação no positivismo é a doença; essa abordagem é o antídoto.
O “caminho negativo”, cumpre enfatizar, não é um pacote filosófico único, abrangente e bem
amarrado; o antídoto não é uma panaceia. Parte do problema com o pensamento positivo e muitas
abordagens semelhantes para a felicidade é exatamente esse desejo de reduzir grandes questões a
fórmulas de autoajuda que se aplicam a qualquer caso, ou programas de dez pontos. Pelo contrário,
o caminho negativo não oferece nenhuma solução única. Alguns de seus proponentes ressaltam que
é preciso aceitar os sentimentos e pensamentos negativos, enquanto é mais adequado considerar
que outros advogam a indiferença em relação a eles. Alguns focam em técnicas radicalmente
heterodoxas na busca pela felicidade, enquanto outros apontam para uma definição alternativa de
felicidade, ou o puro e simples abandono dessa busca. A palavra “negativo” costuma ter duplo
sentido aqui. Pode ser uma referência a emoções e experiências desagradáveis; mas algumas
filosofias da felicidade podem ser consideradas mais precisamente “negativas”, porque exigem
desenvolver “não habilidades” — ou aprender a não perseguir de forma tão agressiva os sentimentos
positivos. Os paradoxos são muitos e, quanto mais se pesquisa, mais eles aparecem. Por exemplo,
uma situação ou um sentimento pode ser realmente chamado de “negativo” se no fim levar à
felicidade? Se “ser positivo” não o faz feliz, dá para chamar isso de “ser positivo”? Se você redefine
a felicidade para incluir o negativismo, isso ainda é felicidade? E assim por diante. Nenhuma dessas
perguntas pode ser respondida de forma clara — em parte porque aqueles que propõem o caminho
negativo compartilham apenas uma visão geral da vida, em vez de um conjunto definido de crenças.
Mas também porque uma base crucial dessa abordagem é considerar que a felicidade envolve
paradoxos; que não há uma maneira única de juntar todas as peças, por mais que queiramos
desesperadamente.
Este livro é o registro de uma jornada pelo mundo da “lei do reverso” e das pessoas, vivas e
mortas, que seguiram o caminho negativo para a felicidade. Minhas viagens me levaram às florestas
remotas de Massachusetts, onde passei uma semana num retiro de meditação silenciosa; ao México,
onde a morte não é evitada, mas comemorada; e às favelas extremamente miseráveis da periferia
de Nairóbi, onde a insegurança é uma realidade impossível de ignorar na vida cotidiana. Encontreime com estoicos dos dias de hoje; especialistas na arte do fracasso; pessimistas profissionais; e
outros defensores do poder do pensamento negativo, muitos dos quais se revelaram
surpreendentemente bem-humorados. Mas comecei em San Antonio porque queria experimentar o
culto do otimismo ao extremo. Se fosse mesmo verdade (como acabei por acreditar) que o tipo de
pensamento positivo do dr. Schuller era apenas uma versão exagerada das crenças unilaterais sobre
a felicidade que todos tendemos a ter, então fazia sentido testemunhar o problema em seu grau
mais puro.
E foi assim que eu acabei me levantando, relutante, em um canto escuro de um ginásio de
basquete, porque a animada mestra de cerimônias do Motive-se! anunciou um “concurso de dança”,
do qual todos os presentes eram obrigados a participar. Bolas de praia gigantes surgiram do nada,
quicando no meio da plateia, que batia nelas desajeitadamente enquanto os alto-falantes tocavam
Wham!. Uma viagem à Disney, fomos avisados, seria o prêmio não do melhor dançarino, mas do mais

motivado, mas essa distinção pouco importava para mim. Aquele negócio todo era sacrificado
demais para arrancar de mim mais que algumas balançadinhas. No fim, quem ganhou o prêmio foi
um soldado, decisão que, suspeitei, era menos um reconhecimento a uma dança altamente motivada
que uma concessão ao orgulho patriótico.
Depois do concurso, durante um intervalo na programação que antecedia a chegada de George
W. Bush, eu saí do ginásio, comprei um cachorro-quente caríssimo e acabei batendo papo com uma
colega de plateia, uma professora aposentada de San Antonio, bem-vestida, que se apresentou como
Helen. O dinheiro andava curto, ela explicou, quando lhe perguntei por que estava ali. Depois de
muito relutar, ela concluiu que tinha que sair da aposentadoria e voltar a trabalhar, e esperava que
o Motive-se! a motivasse de fato.
“Só que o problema é que…”, disse ela, quando falávamos dos palestrantes, “... é meio
complicado ter esses pensamentos positivos o tempo todo, como eles falam, não é?” Por um instante
ela pareceu abalada. Mas em seguida se recuperou e disse, com um dedo em riste professoral, em
tom de repreensão: “Mas não podemos pensar assim!”.

Um dos mais destacados investigadores dos problemas do pensamento positivo é o professor
de psicologia Daniel Wegner, que dirige o Laboratório de Controle da Mente na Universidade
Harvard. Apesar do nome, não se trata de uma entidade financiada pela CIA para estudar a ciência
da lavagem cerebral. O território intelectual de Wegner é aquilo que se convencionou chamar de
“teoria do processo irônico”, que explora a maneira como nosso esforço para evitar certos
pensamentos ou comportamentos acaba, ironicamente, por torná-los predominantes. Comecei mal
com o professor Wegner quando, numa coluna de jornal, grafei seu nome acidentalmente como
“Wenger”. Ele me mandou um email ranzinza (“Vê se acerta o nome!”), e não parecia propenso a
aceitar a alegação de que meu lapso era justamente um bom exemplo do tipo de erro que ele
estudava. Pelo resto do tempo em que nos comunicamos, o clima ficou um pouco pesado.
As questões às quais Wegner dedicou a maior parte da carreira se originam, todas, num jogo
de salão fácil e extremamente irritante, que data, no mínimo, dos tempos de Dostoiévski. Dizem que
ele o usava para atormentar o irmão. Trata-se de um desafio: Você conseguiria — pergunta-se à
vítima — não pensar num urso-polar durante um minuto? A resposta você já sabe, é claro, mas
mesmo assim é instrutivo tentar. Que tal tentar agora? Olhe para o relógio ou procure um com
ponteiro de segundos e tente só por dez segundos pensar apenas em coisas não relacionadas a ursospolares. Um, dois, três e… já!
Sinto muito, você perdeu.
As pesquisas iniciais de Wegner sobre a “teoria do processo irônico” envolviam pouco mais
que apresentar esse desafio a universitários americanos, pedindo em seguida que eles expressassem
em voz alta seus monólogos interiores durante a tentativa. É um jeito um tanto grosseiro de ter
acesso aos processos mentais de alguém, mas um trecho da transcrição de uma tentativa típica
demonstra de forma clara o quanto é inútil lutar:

É claro, agora a única coisa em que eu vou pensar é num urso-polar… Não pense num ursopolar. Hummmmm, em que é que eu estava pensando antes? Olha só, eu costumo pensar
muito em flores… O.k., preciso fazer as unhas… Toda vez que eu quero, tipo… Hummm… falar,
pensar, não pensar num urso-polar, isso só me faz pensar ainda mais num urso-polar…
Neste momento, você deve estar começando a pensar por que deixam psicólogos gastar
dinheiro alheio para provar o óbvio. É claro que é praticamente impossível ganhar o desafio do ursopolar. Mas Wegner só estava começando. Quanto mais ele pesquisava, mais suspeitava que o
mecanismo interno que sabota nosso esforço para suprimir o pensamento no tal urso seja o mesmo
que cuida de uma área inteira da nossa atividade mental e do nosso comportamento exterior. O
desafio do urso-polar, afinal, mais parece uma metáfora de muitas coisas que dão errado na vida: a
todo instante, o resultado que queremos evitar é exatamente aquele que parece nos atrair como um
ímã. Wegner batizou esse efeito de “erro precisamente contraintuitivo”, que, como ele explicou num
artigo, “é quando conseguimos fazer a pior coisa possível, o erro tão absurdo que, ao prevê-lo, nos
determinamos a impedir que ocorra. Quando vemos uma vala à nossa ente na estrada, damos um
jeito de levar nossa bicicleta direto nela. Registramos em nossa mente não tocar em um tema
sensível numa conversa, e travamos, horrorizados, ao soltar exatamente aquilo. Levamos o copo
cuidadosamente pelo salão, pensando o tempo todo ‘não derrame’, e deixamos cair tudo no tapete
sob os olhos do dono da festa”.
Longe de representar um desvio ocasional do nosso autocontrole normalmente perfeito, a
capacidade de cometer erros irônicos parece morar no fundo de nossa alma, perto do núcleo de
nossa personalidade. Edgar Allan Poe chamou isso de “o demônio da perversidade”, em um conto
de mesmo nome: o impulso indefinível, mas palpável, que sentimos quando andamos na beira de
um abismo, ou subimos à torre de observação de um prédio alto, de nos jogarmos — não por algum
instinto suicida, mas exatamente porque fazer isso seria uma tragédia. O demônio da perversidade
também contamina nossas interações sociais. Qualquer um que já riu durante um episódio de Curb
Your Enthusiasm* sabe bem o que é isso.
O que ocorre nesse instante, afirma Wegner, é um defeito da capacidade, exclusiva do ser
humano, de metacognição, isto é, de pensar sobre o pensamento. "A metacognição", explica
Wegner, "ocorre quando o pensamento faz de si mesmo um objeto." Em geral, é uma habilidade
extremamente útil: é ela que nos faz reconhecer quando estamos errados, ou caindo em depressão,
ou so endo de ansiedade, e nos permite tomar uma atitude a respeito. Mas quando tentamos usar
os pensamentos metacognitivos para controlar nossos outros pensamentos cotidianos, no “nível de
objetos” — evitando pensar em ursos, por exemplo, ou substituindo pensamentos tristes por outros,
positivos —, aí é que nos damos mal. “O metapensamento é uma instrução que damos a nós mesmos
em relação ao nosso pensamento no nível de objetos”, afirma Wegner. “Às vezes simplesmente não
conseguimos obedecer nossas próprias instruções.”

Quando você tenta não pensar num urso, por exemplo, você até pode conseguir forçar sua
mente a pensar em outras coisas. Simultaneamente, porém, entra em ação um processo de
monitoramento metacognitivo, que “varre” sua mente tentando saber se você está conseguindo ou
não cumprir a tarefa. E é aí que mora o perigo, porque, se você tentar demais — ou, como sugerem
as pesquisas de Wegner, se você estiver cansado, estressado, deprimido, fazendo várias coisas ao
mesmo tempo, enfim, so endo de “sobrecarga mental” —, a metacognição provavelmente vai dar
errado. O processo de monitoramento começa a “roubar a cena” no seu “palco” cognitivo. Pula para
o primeiro plano de sua consciência — e de repente você só consegue falar em ursos e como está
fracassando na tentativa de não pensar neles.
Será que a teoria do processo irônico lança uma luz sobre o que há de errado com nosso
esforço para alcançar a felicidade, e a forma como nosso esforço para sermos positivos traz
constantemente o resultado inverso? Desde o início das experiências com o urso-polar, os estudos
de Wegner e de outros pesquisadores trouxeram mais evidências favoráveis a essa ideia. Um
exemplo: quando voluntários de uma experiência recebiam uma notícia ruim, mas eram orientados
a não se sentirem tristes a respeito, acabavam se sentindo pior do que aqueles que recebiam a
mesma notícia mas não recebiam ordens a respeito de como se sentir. Em outro estudo, quando
pacientes que so iam de desordens de pânico ouviam músicas para relaxar, seus batimentos
cardíacos eram mais rápidos que os de pacientes ouvindo audiolivros sem conteúdo explicitamente
“relaxante”. Pesquisas sobre o luto indicam que as pessoas que levam mais tempo para se recuperar
de um so imento são justamente aquelas que fazem o maior esforço para não so er. Até na vida
sexual nosso esforço de supressão mental dá errado: quando se mede a excitação pela condutividade
elétrica da pele, quem é orientado a não pensar em sexo se excita mais do que aqueles a quem não
se pediu para abafar esses pensamentos.
Desse ponto de vista, conclui-se que há uma falha enorme em grande parte das técnicas
favoritas da indústria de autoajuda para alcançar o sucesso e a felicidade — do pensamento positivo
à visualização dos objetivos para “se motivar”. Uma pessoa determinada a “pensar positivo” é
obrigada a caçar constantemente pensamentos negativos em sua mente. Não há outro jeito de
conferir se a operação está dando certo, mas é justamente essa caça que chama a atenção para a
presença de pensamentos negativos (pior que isso, se os pensamentos negativos começam a
predominar, dão início a um círculo vicioso, já que a incapacidade de pensar positivamente dá origem
a novos pensamentos autodepreciativos, sobre a incapacidade de pensar positivamente o bastante).
Digamos que você tenha resolvido seguir a sugestão do dr. Schuller e eliminar a palavra “impossível”
do seu vocabulário, ou, de forma mais genérica, tentar focar apenas em resultados favoráveis e parar
de pensar em coisas que não dão certo. Como veremos, essa abordagem traz todo tipo de problema.
Mas o primeiro deles é que o simples ato de monitorar seu sucesso é o que pode fazêlo fracassar.
O problema da autossabotagem provocada pelo automonitoramento não é a única armadilha
do pensamento positivo. Uma perversidade a mais foi revelada em 2009, quando a psicóloga Joanne
Wood, que trabalha no Canadá, se dispôs a testar a eficácia da assertividade — aquelas ases
motivadoras autoelogiosas feitas para elevar o moral de quem as usa, pela repetição constante. A
origem da assertividade é a obra de Émile Coué, um farmacêutico ancês do século XIX, precursor dos

pensadores positivos contemporâneos, que cunhou a assertiva que ficou mais famosa: “Todos os
dias, sob todos os pontos de vista, eu vou cada vez melhor”.
A maioria das afirmações soa cafona, e é natural duvidar que elas tenham algum efeito. Elas
seriam, então, inócuas? Wood não tinha tanta certeza. O raciocínio dela, embora compatível com o
de Wegner, baseou-se em outra tradição da psicologia, conhecida como “teoria da
autocomparação”. De acordo com essa teoria, da mesma forma que gostamos de ouvir informações
positivas a nosso respeito, desejamos mais ainda ser, antes de tudo, pessoas coerentes e
consistentes. Informações a nosso respeito que entram em conflito com essa percepção de nós
mesmos, portanto, são incômodas. Por isso, nós as rejeitamos o tempo todo — ainda que sejam
positivas e que nós mesmos sejamos a fonte da informação. O palpite de Wood foi: aqueles que
buscam a assertividade deveriam ser, por definição, aqueles com baixa autoestima — mas
justamente por isso essas pessoas acabam reagindo contra a mensagem assertiva, porque ela entra
em conflito com a própria imagem. Mensagens como “Todos os dias, sob todos os pontos de vista,
eu vou cada vez melhor” se chocam com a opinião negativa que elas têm de si mesmas, e acabam
deixadas de lado para não ameaçar a coerência de sua percepção própria. Isso resulta numa piora de
uma autoestima que já é baixa, na medida em que a pessoa luta para reafirmar a imagem que tem
de si mesma diante daquela mensagem.
E foi exatamente isso que aconteceu no estudo de Wood. Em uma série de experiências, um
grupo de pessoas foi dividido em subgrupos com autoestima baixa e autoestima alta. Em seguida,
pediu-se a esses grupos que escrevessem um diário. Toda vez que um sino tocava, eles tinham que
repetir para si mesmos a ase “Eu sou uma pessoa amável”. Uma série de métodos engenhosos de
medição do humor constatou que as pessoas com baixa autoestima ficavam bem menos contentes
depois de dizer a si mesmas que eram amáveis. Para começo de conversa, elas não se sentiam
particularmente amáveis: tentar convencer a si mesmas do contrário só reforçava sua negatividade.
O “pensamento positivo” as fez sentir-se pior.

A chegada de George W. Bush ao palco de San Antonio foi anunciada pela súbita aparição de
sua equipe do serviço secreto. São homens que já chamariam a atenção em qualquer lugar, com seus
ternos escuros e pontos eletrônicos na orelha. No Motive-se! chamavam duas vezes mais atenção,
por causa dos cenhos anzidos. Proteger ex-presidentes de assassinos em potencial, ao que parece,
não é uma tarefa que favorece ver o lado bom das coisas e supor que nada errado vá acontecer.
O próprio Bush, em compensação, subiu ao palco sorrindo de orelha a orelha. “Sabe, a
aposentadoria não é tão ruim assim, principalmente quando você se aposenta no Texas!”, começou
ele, antes de iniciar um discurso que claramente já pronunciara várias vezes. Primeiro, contou uma
piadinha sobre como passar a pós-presidência limpando cocô de cachorro (“Eu estava pegando
aquilo de que passei oito anos fugindo!”). Depois, por um instante estranho, a impressão era de que
o assunto principal da palestra era o tapete que um dia ele teve que escolher para o Salão Oval da
Casa Branca (“Eu pensei comigo mesmo: ‘A presidência vai me dar experiência em tomada de
decisões!’”). Mas rapidamente ficou claro que o verdadeiro assunto era o otimismo. “Acho

impossível governar uma família, uma escola, uma cidade, um estado ou um país sem acreditar num
futuro melhor”, disse ele. “E eu quero que vocês saibam que, mesmo nos piores dias do meu
mandato, eu mantive a crença num futuro melhor que o presente para nossos cidadãos e o mundo.”
Não é preciso ter nenhuma opinião política em particular a respeito do 43o presidente dos
Estados Unidos para entender como suas palavras ilustram uma característica estranha e básica do
“culto do otimismo”. Bush não ignorou as inúmeras polêmicas de seu governo — a estratégia que,
seria de esperar, ele adotaria em um seminário motivacional, diante de uma plateia de convertidos
e livre do risco de perguntas incômodas. Em vez disso, ele optou por redefini-las como argumentos
em favor de sua atitude otimista. Da maneira como Bush apresentou as coisas, não só os períodos
felizes e bem-sucedidos de seu mandato provaram os benefícios de uma visão otimista, é claro, mas
igualmente os períodos infelizes e malsucedidos. Afinal de contas, quando tudo vai mal, aí é que o
otimismo se torna ainda mais necessário. Ou, dito de outra forma, quando se está determinado a
adotar a ideologia do pensamento positivo, sempre se encontra um jeito de interpretar toda e
qualquer eventualidade como justificativa para o pensamento positivo. Não é preciso perder um
minuto sequer pensando se seus atos vão dar errado.
Essa ideologia “infalsificável” da positividade a qualquer custo — positividade
independentemente dos resultados — poderia ser um perigo concreto? Os opositores da política
externa do governo Bush podem ter motivos para achar que sim. Essa é, inclusive, parte da
argumentação da crítica Barbara Ehrenreich, no livro Smile or Die: How Positive Thinking Fooled
America and the World [Sorria ou morra: Como o pensamento positivo enganou a América e o
mundo], que ela publicou em 2010. Ela argumenta que uma causa subestimada da crise financeira
global do final da primeira década do século XXI foi a cultura do mundo dos negócios nos Estados
Unidos, em que a simples cogitação da possibilidade do fracasso — e nem estamos falando de
mencioná-la nas reuniões — passou a ser considerada um faux pas vergonhoso. Os banqueiros, cujo
narcisismo foi espicaçado por um ambiente que recompensava, acima de tudo, a grandeza das
ambições, perderam a capacidade de fazer a distinção entre seus sonhos ególatras e os resultados
concretos. Enquanto isso, os compradores de imóveis passaram a achar que tudo o que quisessem
estava ao alcance, desde que eles quisessem o bastante (quantos deles leram livros como O segredo,
que faz exatamente essa afirmação?), e, agindo de acordo com essa ideia, eles assumiram hipotecas
que não foram capazes de honrar. O otimismo irracional inundou o setor financeiro, e os provedores
profissionais de otimismo — palestrantes, gurus de autoajuda, organizadores de seminários — não
se fizeram de rogados para incentivá-lo. “A tal ponto”, escreve Ehrenreich,
que o pensamento positivo tornou-se ele próprio um negócio, cujo principal cliente era o
mundo dos negócios, ávido consumidor da boanova, segundo a qual tudo era possível por
meio da força de vontade. Era uma mensagem conveniente para os empregados de quem, na
virada do século XXI, se exigiam mais horas de trabalho em troca de menos benefícios e menos
segurança no emprego. Mas também era uma ideologia libertadora para os altos executivos.
Para que se estressar com balancetes e análises de riscos enfadonhas — e por que perder

tempo se preocupando com dívidas em níveis assustadores e calotes em potencial —, se só
coisas boas acontecem com aqueles otimistas o bastante para acreditar nelas?
Ehrenreich vai buscar a origem dessa filosofia nos Estados Unidos do século XIX, mais
especificamente em um movimento semirreligioso conhecido como Novo Pensamento [New
Thought]. O Novo Pensamento surgiu como reação à mensagem dominante e negativa do calvinismo
americano: trabalho duro e incessante era o dever de todo cristão — com o agravante de que,
segundo a doutrina da predestinação, mesmo assim você poderia já estar marcado para passar a
eternidade no inferno. O Novo Pensamento, em compensação, propunha ser possível alcançar a
felicidade e o sucesso mundanos pelo poder da mente. Esse poder serviria até para curar males
físicos, de acordo com a recém-criada religião da Ciência Cristã, nascida das mesmas raízes. No
entanto, como Ehrenreich deixa claro, o Novo Pensamento impôs sua própria versão de
julgamentalismo ao substituir o trabalho duro obrigatório do calvinismo pelo pensamento positivo
obrigatório. Pensamentos negativos eram condenados com dureza. Nessa mensagem havia ecos da
“antiga condenação do pecado pelas religiões”, aos quais se acrescentava “uma insistência no
constante trabalho de autoexame interior”. Citando a socióloga Micki McGee, ela mostra como, sob
essa nova ortodoxia do otimismo, “trabalhar contínua e interminavelmente a própria personalidade
[era] apresentado não apenas como um caminho para o êxito, mas também como uma espécie de
salvação secular”.
George W. Bush, portanto, estava dando continuidade a uma venerável tradição quando
proclamou a importância do otimismo em qualquer circunstância. Mas, mal tinha começado, seu
discurso no Motive-se! já estava terminando. Uma mistura de religião, uma anedota particularmente
não instrutiva sobre os atentados terroristas do Onze de Setembro, algumas palavras elogiosas para
as Forças Armadas, e ele já estava dando adeus — “Obrigado, Texas, é bom estar em casa!” —,
enquanto os seguranças fechavam o círculo em torno dele. Em meio à vibração do público, consegui
ouvir Jim, o guardaflorestal sentado a meu lado, soltar um suspiro de alívio. “O.k., agora eu estou
motivado”, ele resmungou para si mesmo. “Hora da cervejinha?”

“Existem muitas maneiras de ficar triste”, diz um personagem de um conto de Edith Wharton,
“mas só há uma maneira de se sentir bem, que é parar de correr atrás da felicidade.” É uma
observação que exprime de forma cruel o que há de errado com o “culto do otimismo” — a luta inútil
e condenada ao acasso que solapa a positividade quando nos esforçamos demais. Mas a ase também
sugere a possibilidade de uma alternativa que dá mais esperanças, uma abordagem para a felicidade
que pode assumir uma forma totalmente diferente. O primeiro passo é aprender a parar de perseguir
tanto a positividade. Mas, como veremos, muitos dos que propõem o “caminho negativo” para a
felicidade levam isso ainda mais longe, afirmando — de forma paradoxal, mas convincente — que
mergulhar de propósito ainda mais fundo naquilo que chamamos de negativo é uma precondição da
verdadeira felicidade.

Talvez a metáfora mais perfeita para toda essa estranha filosofia seja um pequeno brinquedo
infantil conhecido como “algemas chinesas”, que, apesar do nome, provavelmente não tem origem
chinesa. Em seu escritório na Universidade de Nevada, o psicólogo Steven Hayes, crítico aberto do
pensamento positivo contraproducente, tem uma caixa cheia desses brinquedos, que usa para
ilustrar sua tese. A “algema” é um tubo feito de um feixe de bambu trançado, com um buraco em
cada ponta, mais ou menos do tamanho de um dedo. Pede-se à vítima inocente que insira um dedo
em cada ponta do tubo. Ela fica presa. Quanto mais se tenta puxar os dedos para fora, mais os
buracos em cada ponta do tubo se contraem, apertando com ainda mais força. Quanto mais força
no puxão, mais a pessoa fica presa. O único jeito de se soltar é relaxar e empurrar os dedos ainda
mais para dentro. Isso alarga as extremidades do tubo, que cai, soltando os dedos.
No caso das algemas chinesas, Hayes observa, “fazer o que parece ser o mais correto é
contraprodutivo”.
Seguir o caminho negativo para a felicidade é uma questão de fazer o inverso, aquilo que
parece ilógico.

* Série de TV americana cujo protagonista en enta diversas situações constrangedoras. (N. T.)

2. O que Sêneca faria?
A arte estoica de encarar a pior das hipóteses

O pessimismo, quando você se acostuma a ele,
é tão agradável quanto o otimismo.
Arnold Bennett

É uma manhã comum de primavera na linha central do metrô de Londres — o que equivale a
dizer que estão ocorrendo os tradicionais “pequenos atrasos” no serviço, e há um grande
descontentamento da parte dos usuários espremidos. A única coisa fora do comum é que estou a
poucos instantes de passar, de modo totalmente próprio, por uma das experiências mais
assustadoras da minha vida. Quando estivermos chegando à estação de Chancery Lane — mas antes
que o alto-falante do trem a anuncie — vou quebrar o silêncio e gritar, bem alto, as palavras
“Chancery Lane”. Durante a viagem do trem para Holborn, Tottenham Court Road, Oxford Circus e
assim por diante, minha intenção é continuar a fazer isso, anunciando o nome de cada estação à
medida que avançamos.
Sim, eu sei que não é a façanha mais assustadora que se possa imaginar. Leitores que já foram
reféns de piratas ou enterrados vivos — ou que simplesmente passaram por uma viagem de avião
particularmente turbulenta — estão perdoados se acharem meu drama um tanto exagerado. Mas a
verdade é que minhas mãos estão suadas e meu coração, acelerado. Nunca lidei bem com a
vergonha, e cá estou maldizendo a mim mesmo por ter chegado a pensar que flertar com ela seria
uma boa ideia.
Estou realizando esse ritual de auto-humilhação proposital conforme as instruções de Albert
Ellis, um psicólogo falecido em 2007. Embora tenha sido nosso contemporâneo, Ellis criou a
experiência para demonstrar de forma vívida uma antiga filosofia, a dos estoicos, que
estiveram entre os primeiros a sugerir que o caminho para a felicidade possa depender da

negatividade. Ellis sugeriu o “exercício da estação de metrô”, que inicialmente ele propunha a
seus pacientes em Nova York, para demonstrar o quão irracionais somos mesmo diante de
experiências apenas levemente desagradáveis — e como podemos extrair delas benefícios
insuspeitados, se tivermos coragem de encará-las.
Não se deve confundir o estoicismo, surgido na Grécia e amadurecido em Roma, com o sentido
moderno da palavra “estoicismo” — a resignação silenciosa e desanimada que descreve bem o
comportamento de meus companheiros de viagem no metrô. O verdadeiro estoicismo é muito mais
firme. É como adquirir uma espécie de relaxamento muscular diante de circunstâncias que nos põem
à prova. Essa é, também, a intenção do torturante exercício de Ellis: me fazer encarar todas as minhas
crenças inconfessáveis em relação à vergonha de mim mesmo, à inibição e ao que as pessoas podem
pensar de mim. Ele vai me forçar a vivenciar a sensação desagradável que eu tanto temo e tomar
consciência de algo intrigante, do ponto de vista psicológico, nesse tipo de situação: que, embora eu
ache que ela vai ser incrivelmente horrível, quando é posta em prática e examinada, os fatos não
confirmam minha expectativa.
A menos que você seja uma pessoa anormalmente desavergonhada, provavelmente você é
capaz de se identificar com o desconforto que estou sentindo. Mas, se você pensar bem, há algo de
estranho em nutrir qualquer sentimento negativo nessa situação. Afinal de contas, não há nenhum
conhecido meu no vagão. Então, não tenho nada a perder se acharem que sou maluco. Além disso,
sei, por experiência própria, que, quando uma pessoa começa a falar alto para si mesma, eu a ignoro
como todo mundo. É quase certo que isso é o pior que pode me acontecer. E essas pessoas que falam
alto costumam dizer coisas sem sentido, enquanto estarei anunciando o nome das estações. Daria
até para alegar que estou prestando um serviço público. Com certeza é muito menos irritante que o
som que vaza dos fones dos iPods à minha volta.
Por que então — à medida que o trem começa a ear, de início quase imperceptivelmente, ao
se aproximar de Chancery Lane — eu sinto vontade de vomitar?

Por trás de muitas abordagens populares para a felicidade está a filosofia simples de
concentrar-se naquilo que dá certo. No mundo da autoajuda, a expressão mais acabada desse ponto
de vista é a técnica conhecida como “visualização positiva”: por essa lógica, se você mentalizar que
as coisas vão dar certo, é muito mais provável que elas deem mesmo. O conceito new age da “lei da
atração”, muito em voga, leva isso um passo adiante, sugerindo que a visualização é tudo de que se
precisa para alcançar fortuna, ótimos relacionamentos e boa saúde. “Há uma tendência profunda na
natureza humana de tornar-se exatamente aquilo que você visualiza ser”, disse Norman Vincent
Peale, autor de O poder do pensamento positivo, em uma palestra para executivos do banco de
investimentos Merrill Lynch, em meados da década de 1980.
Se você vê a si mesmo como tenso, nervoso e ustrado… é isso, com certeza, que você vai virar.
Se você se acha de alguma forma inferior, e essa imagem persiste em seu consciente, ela vai,

por um processo de osmose intelectual, entrar no seu inconsciente, e você se tornará aquilo
que visualizou. Se, ao contrário, você se vê como alguém organizado, senhor de si, equilibrado,
ponderado, trabalhador, confiante em si, em sua habilidade e seu talento, é isso que você se
tornará.
O Merrill Lynch quebrou no colapso financeiro de 2008, e foi salvo pelo Bank of America. O
leitor que tire suas próprias conclusões.
Mas até aqueles que torcem o nariz para as perorações de Peale teriam dificuldade para
discordar de sua visão subjacente: que o otimismo em relação ao futuro, se bem administrado, é em
geral algo bom. Focar no futuro tal como você o deseja, e não como você não o deseja, soa como um
jeito sensato de se motivar e aumentar suas chances de êxito. A caminho de uma entrevista de
emprego, é melhor pecar por otimismo. Antes de convidar alguém para um encontro, é aconselhável
agir pressupondo que ela, ou ele, vai topar. De fato, a tendência de ver o lado bom das coisas parece
tão ligada à sobrevivência humana que a evolução nos teria feito assim. Em seu livro The Optimism
Bias [O viés do otimismo], de 2011, a neurocientista Tali Sharot reuniu evidências cada vez maiores
de que uma mente em bom estado parece ter sido feita de modo a superestimar as chances de algo
dar certo. Os estudos indicam que gente feliz e saudável, em geral, tem menos capacidade, por
excesso de otimismo, de avaliar sua capacidade real de influenciar os acontecimentos, se comparada
a quem sofre de depressão.
No entanto, há problemas nessa visão, além do simples desapontamento quando as coisas não
acabam bem. Esses problemas são mais graves no caso da visualização positiva. Nos últimos anos, a
psicóloga de origem alemã Gabriele Oettingen e sua equipe montaram uma série de experiências
para extrair a verdade em relação ao que chamam de “fantasias positivas sobre o futuro”. Os
resultados são chocantes: gastar tempo e energia pensando em como as coisas podem dar certo,
concluiu-se, na verdade reduz a motivação das pessoas para alcançá-las. Por exemplo, ao estimular
voluntários a pensar que a semana de trabalho estava sendo altamente produtiva, eles acabavam
produzindo menos que aqueles a quem se pedia que pensassem na semana pela ente sem instruções
adicionais sobre como fazer isso.
Em uma experiência engenhosa, Oettingen desidratou ligeiramente alguns dos participantes.
Em seguida, o exercício deles era visualizarem-se bebendo um copo de água gelada e refrescante,
enquanto os demais participantes faziam outro exercício. Os visualizadores de água desidratados —
ao contrário da doutrina da autoajuda de motivação por meio da visualização — tiveram uma
redução significativa em seus níveis de energia, medida pela pressão sanguínea. Não só eles não
ficaram motivados a se hidratar, mas seus corpos relaxaram, como se a sede já tivesse sido matada.
É como se, inconscientemente, eles tivessem confundido a visualização do sucesso com já tê-lo
atingido.
Não decorre daí, é claro, que seria melhor mudar para a visualização negativa e começar a
focar em como tudo pode dar errado. Essa é, porém, exatamente uma das conclusões que vêm do
estoicismo, uma escola filosófica surgida em Atenas, alguns anos depois da morte de Aristóteles, e
que viria a dominar o pensamento ocidental em relação à felicidade durante quase cinco séculos.

O primeiro estoico de que temos notícia foi Zenão de Cítio, que nasceu na cidade hoje
conhecida como Larnaca, na costa sul de Chipre, por volta de 334 a.C. “Sua cabeça pendia
naturalmente para um dos lados”, escreveu Diógenes Laércio, historiador grego do século III d.C., em
Vidas e opiniões de filósofos eminentes, fonte primária de evidências sobre os primeiros estoicos.
“Ele era muito magro, muito alto, de pele morena, [com] pernas acas e flácidas […] comenta-se que
gostava muito de figos, tanto naturais quanto desidratados ao sol.” Diz a lenda que Zenão era um
comerciante, que chegou a Atenas por volta dos trinta anos, possivelmente depois da traumática
experiência de um nau ágio. Em Atenas, ele começou a estudar com o filósofo cínico Crato; Laércio
conta uma das experiências precoces de Zenão nas mãos de Crato, que pode ajudar a explicar o foco
do estoicismo em crenças irracionais como fonte de males emocionais. Segundo essa anedota, Crato
deu a Zenão uma tigela de papa de lentilhas, pedindo-lhe que andasse com ela pelas ruas de Atenas.
Mas Crato esmigalhou a tigela com um porrete, derramando todo o conteúdo no corpo de Zenão. “A
papa escorreu-lhe pelas pernas”, nos conta Laércio, ao que Zenão saiu correndo, de vergonha. “Por
que você corre [se] você não fez mal nenhum?”, gritou Crato, para provocá-lo, troçando do fato de
Zenão achar aquilo motivo de vergonha. Quando Zenão tornou-se professor de filosofia, dava suas
lições sob o stoa poikile, o pórtico ornado no lado norte da antiga ágora de Atenas. Daí o rótulo
“estoico”. A influência dessa escola acabaria chegando a Roma, e foi a obra desses estoicos romanos
tardios — acima de tudo Epicteto, Sêneca, o Jovem, e Marco Aurélio — que sobreviveu.
Desde os primeiros dias, os ensinamentos estoicos deram ênfase à importância fundamental
da razão. Os estoicos argumentavam que apenas o ser humano recebeu da Natureza o dom do
raciocínio. Assim, uma vida “virtuosa” — isto é, uma vida apropriada para um homem — implicaria
viver de acordo com a razão. Os estoicos romanos acrescentaram um toque de psicologia: viver
virtuosamente, de acordo com a razão, alegavam, levaria à paz interior — um “estado mental”,
escreve William Irvine, estudioso acadêmico do estoicismo, “marcado pela ausência de emoções
negativas, tais como dor, raiva e ansiedade, e a presença de emoções positivas, como a alegria”.
Reside aí uma diferença essencial entre o estoicismo e o “culto do otimismo” contemporâneo. Para
os estoicos, o estado mental ideal era a tranquilidade, e não a animação excitada a que os pensadores
positivos costumam se referir quando usam a palavra “felicidade”. E essa tranquilidade será
alcançada não pela busca exaustiva de experiências agradáveis, mas pelo cultivo de certa forma de
indiferença tranquila em relação às circunstâncias individuais. Para eles, uma forma de fazer isso é
voltando-se para emoções e experiências negativas, e não as evitando; pelo contrário, examinandoas de perto.
Esse foco na negatividade pode parecer perverso, mas levar em conta as circunstâncias de vida
dos estoicos pode ajudar. Epicteto nasceu escravo no que hoje é a Turquia; embora tenha ganhado
alforria, morreu aleijado por culpa do tratamento brutal de seus senhores. Sêneca, em compensação,
era filho de nobre e teve uma carreira fulgurante como tutor pessoal do imperador romano. Mas
tudo acabou de repente quando seu patrão — que, infelizmente, era o perturbado Nero —
desconfiou que Sêneca estava armando um complô contra ele e obrigouo a cometer suicídio.
Parecem existir poucas evidências que confirmem as suspeitas de Nero, mas àquela altura ele já tinha
assassinado a mãe e o meioirmão, e se notabilizara por queimar cristãos à noite, como forma de

iluminar seus jardins. Então não se pode acusá-lo de ter fugido a suas características. Sêneca, diz a
lenda, tentou cumprir as ordens, cortando as próprias veias para sangrar até a morte. Mas foi
malsucedido, então pediu que lhe dessem veneno; isso também não bastou para matá-lo. Foi só
quando ele tomou um banho turco sufocante que finalmente deu o último suspiro. Talvez por isso
não cause espanto que a filosofia surgida das circunstâncias vividas por Epicteto — em um contexto
em que até os de berço nobre, se a sorte não os ajudasse, acabavam como Sêneca acabou — não
fosse propensa ao pensamento positivo. Qual o mérito de convencer a si mesmo de que tudo vai dar
certo, quando há tantas evidências de que não dará?
E, no entanto, é curioso constatar que a abordagem dos estoicos, da felicidade por meio da
negatividade, começa justamente com o tipo de intuição que Norman Vincent Peale aprovaria:
quando a questão é sentir-se empolgado ou desanimado, o que importa é a sua convicção. A maioria
de nós, observam os estoicos, passa a vida iludindo-se de que o que nos torna tristes, ansiosos ou
raivosos são certas pessoas, situações ou acontecimentos. Quando o colega da mesa ao lado o deixa
irritado por não parar de falar, você acredita, naturalmente, que a fonte da irritação é o colega.
Quando você se compadece ao saber que um ente querido está doente, faz sentido imaginar que a
fonte da dor é a doença. Observe mais atentamente sua experiência, porém, afirmam os estoicos, e
no fim você terá que concluir que esses eventos externos não são, em si, “negativos”. O fato é que
nada externo à sua mente pode ser apropriadamente descrito como negativo ou positivo. O que
realmente causa o so imento são as suas convicções a respeito desses fatos. O colega não é irritante
per se, mas por causa de sua convicção da importância de terminar seu trabalho sem ser
interrompido. Até a doença de um parente só é ruim à luz da sua convicção de que é uma boa coisa,
para seus familiares, não estar doente (afinal, milhões de pessoas adoecem todos os dias; como não
temos opinião alguma a respeito delas, por conseguinte não ficamos aborrecidos). Marco Aurélio,
imperador e filósofo estoico, expressou esse conceito como “aquilo que não nos toca a alma”, e
acrescentou: “Nossas perturbações vêm somente daquilo que está dentro de nós”. Pensamos na
tristeza como um processo de um único passo: algo no mundo exterior que causa tristeza em seu
mundo interior. Na verdade, é um processo de dois passos: entre o acontecimento externo e a
emoção interior há uma convicção. Se você não achasse ruim a doença de um parente, você ficaria
aborrecido com ela? Claro que não. Shakespeare põe na boca de Hamlet: “Não existe nada de bom
ou mau que não seja assim pelo nosso pensamento”. Muito estoico.
Não pretendo sugerir que as emoções negativas não existam de verdade ou que não tenham
importância ou que possam ser descartadas facilmente mediante a mera força de vontade. Os
estoicos não afirmam nada disso; querem apenas explicar o mecanismo pelo qual surge toda tristeza.
Toda mesmo. Até perder a casa, o emprego ou a pessoa amada, desse ponto de vista, não é um
acontecimento negativo em si; é apenas um acontecimento. Ao que você pode responder: mas e se
for realmente ruim? Sem teto ou sem renda, você pode perecer de fome ou de io. Isso é ruim, ou
não é? Mas a mesma lógica incansável se aplica. O que torna a perspectiva da fome, ou do io,
incômoda antes de tudo? A sua convicção em relação às desvantagens da morte. Como afirma A. A.
Long, um dos maiores estudiosos do estoicismo, essa visão do funcionamento da emoção também é
a ideia por trás da atual terapia comportamental cognitiva. “Está tudo lá [na obra dos estoicos]”,

disse-me Long. “Em particular essa ideia de que temos poder sobre nossos juízos, que nossas
emoções são determinadas por nossos juízos, e que sempre podemos dar um passo atrás e
perguntar: ‘O que me incomoda são os outros? Ou o meu juízo a respeito dos outros?’” Long explicou
que ele próprio usava essa forma de pensar para lidar com os incômodos do cotidiano, como o
estresse do trânsito. Os outros motoristas estão mesmo dirigindo “mal”? Ou seria mais correto dizer
que a causa de sua raiva era a convicção de que os outros deveriam dirigir de outro jeito?
Essa distinção é crucial. Como vimos, a ideia de que, no fim, são nossas convicções que causam
aborrecimento é uma perspectiva compartilhada por estoicos e pensadores positivos. Fora isso,
porém, são duas tradições que divergem radicalmente — e a divergência fica mais exposta do que
nunca quando se trata de convicções sobre o futuro. Os pregadores do otimismo afirmam que você
deve cultivar o máximo possível de expectativas positivas sobre o futuro. Mas essa ideia não é tão
boa quanto parece à primeira vista. Para começo de conversa, como demonstram as experiências de
Gabriele Oettingen, concentrar-se no resultado desejado pode, na verdade, solapar seus esforços
para alcançá-lo. De forma mais geral, afirmariam os estoicos, essa não é uma técnica particularmente
boa para sentir-se mais feliz. Otimismo sem fim a respeito do futuro só aumenta o baque quando as
coisas não dão certo; ao lutar para ter apenas convicções positivas sobre o futuro, o pensador
positivo acaba menos preparado, e fica mais abalado quando acontece algo que ele não consegue
convencer a si mesmo de que seja bom (e esse algo vai acontecer). É um problema subjacente de
todas as abordagens da felicidade que põem ênfase demais no otimismo. Tentar ver as coisas
somente sob uma luz positiva é uma atitude que exige um esforço constante e renovado. Se esse
esforço vacila ou se mostra insuficiente quando ocorre um baque inesperado, você recai na
depressão, talvez até mais profundamente.
Aplicando à situação sua lógica rigorosa, os estoicos propõem um modo mais calmo, elegante
e sustentável de lidar com a possibilidade de acasso: em vez de lutar para evitar quaisquer
pensamentos na pior hipótese possível, eles aconselham especular ativamente a respeito deles,
olhando-os de ente. O que nos leva a um marco importante no caminho negativo para a felicidade:
uma tática psicológica que William Irvine afirma ser “a mais valiosa técnica do ‘arsenal de
ferramentas’ dos estoicos”. Ele a chama de “visualização negativa”. Os próprios estoicos, de forma
mais cruel, chamam de “premeditação dos males”.
O primeiro benefício de especular o quanto as coisas podem dar errado é direto. É consenso
há muito tempo entre os psicólogos que um dos grandes adversários da felicidade humana é a
“adaptação hedonista” — a forma previsível e ustrante como cada nova fonte de prazer que
obtemos, seja ela pequena, como um novo brinquedinho eletrônico, ou grande, como um
casamento, rapidamente é deixada em segundo plano em nossa vida. Nós nos acostumamos a ela, e
ela deixa de nos proporcionar tanta alegria. Daí conclui-se que lembrar a si mesmo constantemente
que você pode vir a perder algo de que des uta hoje — e de fato você vai perder todas, no fim, quando
a morte o alcançar — reverteria o efeito de adaptação. Pensar na possibilidade da perda de alguma
coisa que você aprecia traz de volta essa coisa do segundo para o primeiro plano da sua vida, e ela
pode voltar a lhe dar prazer. Escreve Epicteto:

Sempre que você se afeiçoar a alguma coisa, não aja como se fosse uma dessas coisas que não
podem lhe tomar, mas pense nela como se fosse um jarro ou uma bola de cristal […]. Se você
beijar seu filho, seu irmão, seu amigo […] lembre-se de que você ama um mortal, algo que não
lhe pertence, que lhe foi dado no momento presente, nem inseparavelmente nem para
sempre, mas como um figo, ou um cacho de uvas, numa determinada estação do ano.
Toda vez que você der em seu filho o beijo de boa noite, ele afirma, você deve levar em conta
a possibilidade específica de que ele possa morrer no dia seguinte. Esse é um conselho dissonante
que pode parecer terrível a qualquer pai, mas Epicteto é categórico: fazer isso o fará amar ainda mais
seu filho, ao mesmo tempo que reduzirá o choque caso esse horrível acontecimento um dia se
produza.
O segundo benefício da premeditação do mal, mais sutil e talvez até mais poderoso, é que ela
serve como antídoto para a ansiedade. Pense em quantas vezes tentamos aliviar nossas
preocupações sobre o futuro: buscamos reconforto, tentando convencer a nós mesmos de que tudo
vai dar certo. Mas o reconforto é uma faca de dois gumes. No curto prazo pode ser maravilhoso, mas,
como qualquer forma de otimismo, exige manutenção constante: se você oferece reconforto a um
amigo tomado pela ansiedade, com equência verá que, poucos dias depois, ele voltará a procurá-lo.
Pior que isso, o reconforto pode, na verdade, exacerbar a ansiedade: quando você tranquiliza um
amigo dizendo que a pior hipótese que ele tanto teme provavelmente não ocorrerá, você reforça
sem querer sua convicção de que essa hipótese seria catastrófica. Você o afunda ainda mais na
ansiedade, em vez de tirá-lo dela. Com grande equência, nos lembram os estoicos, as coisas não
terminam do melhor jeito.
Mas também é verdade que, quando elas dão errado, muito provavelmente darão menos
errado do que você temia. Perder o emprego não o condenará à fome e à morte; perder o namorado,
ou a namorada, não lhe condenará a uma vida de tristeza permanente. Esses medos se baseiam em
juízos irracionais sobre o futuro, em geral porque você não refletiu o suficiente sobre o assunto. Ao
ouvir um boato de demissões na empresa, no mesmo instante você constrói a imagem mental de
uma demissão sumária; a pessoa que você ama lhe trata com ieza e sua mente imagina a solidão
para o resto da vida. A premeditação dos males é uma forma de trocar essas noções irracionais por
juízos mais racionais: passe algum tempo imaginando claramente o quanto as coisas podem
realmente dar errado, e em geral você perceberá que seus receios eram exagerados. Se você perder
o emprego, há medidas específicas que podem ser tomadas para encontrar outro; se um
relacionamento terminou, é provável que você consiga ser feliz na vida mesmo solteiro. Encarar a
pior hipótese tira muito de sua capacidade de gerar ansiedade. A felicidade obtida pelo pensamento
positivo pode ser ágil e fugaz; a visualização negativa gera uma calma muito mais confiável.
Sêneca conduz esse raciocínio até a conclusão lógica. Se visualizar o pior pode ser fonte de
tranquilidade, que tal tentar deliberadamente sentir o gosto do pior? Em uma de suas cartas, ele
propõe um exercício que era um antecessor direto da minha aventura constrangedora no metrô de
Londres, só que, reconheça-se, mais radical. Ele aconselha: se aquilo que você mais receia é perder
sua riqueza material, não tente convencer a si mesmo de que isso nunca ocorrerá (essa seria a

abordagem do dr. Robert H. Schuller: recusar-se a levar em conta a possibilidade de acasso). Em vez
disso, tente agir como se você já tivesse perdido tudo. Ele sugere: “Reserve um determinado número
de dias durante os quais você deve se contentar com aquilo que há de mais barato e despojado, com
as vestes mais rudes e grosseiras, enquanto diz a si mesmo: ‘Esta é a situação que eu temia?’”. Pode
não ser lá muito divertido. Mas o exercício vai obrigá-lo a um conflito entre, de um lado, suas piores
ansiedades a respeito de uma eventualidade tão ruim e, de outro, a realidade — que pode ser
desagradável, mas muito menos catastrófica. Isso o ajudará a entender que a pior hipótese possível
é algo com que você seria capaz de lidar.
Tudo isso fazia sentido para mim, do ponto de vista intelectual, mas eu queria saber se alguém
realmente vive hoje de acordo com esses princípios. Tinha ouvido rumores a respeito de uma
comunidade contemporânea de estoicos autodeclarados, espalhados mundo afora, e minha
pesquisa me levou rapidamente a um negócio chamado Fórum Estoico Internacional, um fórum de
mensagens na internet com mais de oitocentos membros. Uma busca mais aprofundada levou-me
ao caso de um policial de Chicago que afirma usar os princípios do estoicismo para manter a calma
ao en entar marginais violentos. Em outro site, um professor da Flórida fazia um relato do encontro
inaugural da Sociedade Estoica Internacional, realizado no Chipre, em 1998. O tempo todo aparecia
um nome — como moderador do Fórum Estoico Internacional, como tutor do policial de Chicago, e
como autor de vários posts sobre os benefícios da vida estoica. Eu queria achar a pista de um Sêneca
dos tempos modernos. Imaginei que essa pessoa pudesse ter se alienado da sociedade, como Sêneca
fez no fim da vida; que ela vivesse, por exemplo, em uma moradia rústica no sopé de algum vulcão
do Mediterrâneo, passando o dia em contemplação filosófica e a noite bebendo retsina. Mas a
pessoa a quem minha enquete levou, no caso, não era nada disso. Chamava-se Keith e vivia a um
pulo de trem, na cidade de Watford, a noroeste do centro de Londres.

Apesar de viver em Watford, o dr. Keith Seddon preenchia alguns critérios “de além-mundo”.
Isso ficou evidente assim que vi sua moradia. Separada por uma sebe alta das casas mais bem
cuidadas dos vizinhos, em que por fim discerni uma portinhola, parecia o chalé de um mago que
poderia ter saído da imaginação de Tolkien, se ele tivesse feito da região metropolitana de Londres
o cenário de O senhor dos anéis. Era início de tarde, chovia muito. Espiando pela janela panorâmica,
concluí que a sala de entrada não tinha ninguém, mas estava abarrotada de pilhas instáveis de livros,
com uma enorme coleção de chapéuspanamá. Precisei tocar a campainha várias vezes até Seddon
aparecer. Mas quando ele o fez, tinha o físico adequado para o papel: longa barba branca, olhos que
não paravam de piscar e um colete de couro. Por cima de tudo, um de seus panamás. Ele disse
“Entre!” três vezes seguidas, e então me tirou da chuva, por um corredor, para uma salinha lateral
com aquecimento a gás, um sofá e duas poltronas de encosto alto. Numa delas estava sentada a
mulher dele, Jocelyn. Boa parte do espaço restante estava tomado por ainda mais livros, espremidos
em estantes insuficientes. Obras da filosofia clássica disputavam espaço com títulos mais esotéricos:
The Book of Egyptian Ritual [O livro dos rituais egípcios], An Introduction to Elvish [Uma introdução

aos elfos], Fountain Pens of the World [Canetastinteiros do mundo]. Seddon me conduziu a um sofá
e foi buscar uma coca light para mim.
Deu para notar na hora que o destino não tinha sido particularmente bondoso para com o
casal. Jocelyn so ia de artrite reumatoide precoce, que a deixara extremamente debilitada. Embora
ainda na casa dos cinquenta anos, já tinha dificuldade até para levar um copo, manobra que lhe exigia
o uso de ambas as mãos, e claramente era fonte de dor. Keith tomava conta dela em tempo integral,
e ele próprio so ia de encefalomielite miálgica, ou síndrome de fadiga crônica. Ambos eram Ph.D. e
planejaram seguir carreira acadêmica, mas a doença de Jocelyn se interpôs no caminho. Agora, o
trabalho de Keith como tutor de cursos por correspondência sobre estoicismo para alunos de
universidades particulares americanas também já não rendia tanto, e o dinheiro andava curto.
Mesmo assim, o clima na salinha superaquecida nem de longe era desanimado. Descobri que
Jocelyn não se definia como estoica, como o marido, mas que compartilhava o molde mental: disse
que sua doença se mostrara um “presente sombrio”, e que, assim que aprendeu a ignorar quando
as pessoas lhe diziam para “lutar” e “pensar positivo”, ela passou a ver a dependência em relação
aos outros como uma espécie de bênção. Ela tinha um ar sereno; Keith, por sua vez, mal se continha.
“Ser estoico é, na verdade, uma posição muito desconfortável”, disse ele, animadamente. “Ao longo
da história, muitos cometeram esse grande erro a respeito da felicidade, e aqui estamos nós, os
estoicos, nos destacando nos extremos — para lá dos extremos, na verdade! — e berrando lá do
horizonte: ‘Vocês estão completamente errados! Vocês estão completamente errados!’”
Keith atribui seu início no estoicismo a um incidente bizarro que lhe ocorreu por volta dos vinte
anos, quando ele caminhava por um parque arborizado, não muito longe de sua casa nos arredores
de Londres. Ele descreveu o incidente como uma virada em sua perspectiva — o tipo de epifania que
costuma ser descrita como uma “experiência espiritual”. “Foi bem rápido”, lembrou ele. “Durou um
ou dois minutos. Mas, de repente, por um ou dois minutos, eu fiquei…” Ele fez uma pausa,
procurando as palavras certas. “Eu fiquei diretamente consciente de como tudo estava conectado, no
espaço e no tempo”, disse por fim. “Foi como viajar pelo espaço, percebendo o universo como um
todo, e vendo tudo conectado exatamente como deveria ser. Como algo acabado e completo.”
Eu tomei um gole de coca light e aguardei.
“Era como um kit de aeromodelismo”, ele disse, balançando a cabeça exasperado, o que eu
interpretei como significando que, no fim das contas, não era exatamente como um kit de
aeromodelismo. “Eu tive a sensação de que tudo havia sido feito de propósito, por algum tipo de
agente. Não um Deus exterior ao universo, manipulando os cordéis, entenda bem. Mas como se a
coisa toda, propriamente dita, fosse Deus.” Ele fez outra pausa. “Sabe, o engraçado é que na hora
isso não me chamou a atenção como algo particularmente significativo.” O Seddon de vinte anos
entrou por breves instantes num reino místico de consciência cósmica, esqueceu-se, foi para casa e
continuou seu curso universitário.
Mas, algum tempo depois, a memória desses dois minutos começou a devorá-lo. Ele leu o Tao
Te Ching [O livro do caminho e da virtude], procurando pistas no taoismo. Explorou o budismo. Por
fim, foi o estoicismo que o tocou. “Parecia tão mais sólido e pé no chão”, disse ele. “Pensei: ‘Não há
nada aqui de que eu possa discordar!’” Sua visão no parque, por fim, espelhou a própria forma

idiossincrática de crença religiosa. Eles também sustentavam que o universo era Deus — que havia
um projeto maior, e que tudo acontecia por uma razão. O objetivo estoico de agir conforme uma
razão significava agir de acordo com esse projeto universal. “Veja o universo constantemente como
um único ser vivo, com uma substância e uma alma”, diz Marco Aurélio. “Aconteça o que acontecer,
que ocorra como deve ser.” Para mentes secularistas modernas, é certamente a parte do estoicismo
mais difícil de engolir. Chamar o universo de “Deus” pode ser algo simplesmente aceitável; pode-se
argumentar que é só uma questão semântica. Mas sugerir que tudo segue numa direção, de acordo
com um projeto, é bem mais problemático. De fato, explicou Keith com um suspiro, o tempo todo
ele se interpunha em discussões divisionistas entre estoicos ateus e estoicos teístas no Fórum Estoico
Internacional — embora, como bom estoico, ele não tenha deixado isso aborrecê-lo por muito
tempo.
Você não precisa necessariamente aceitar o conceito estoico de um “projeto maior”, no
entanto, para abraçar sua outra face, que é muito mais importante para o estoicismo no cotidiano:
que, haja ou não um agente maior que nós mesmos controlando a forma como os eventos se
desenrolam, cada um de nós tem pouquíssimo controle individual sobre o universo. Keith e Jocelyn
aprenderam isso de forma dolorosa. Eles prefeririam viver sem a artrite de Jocelyn, sem o constante
cansaço de Keith e com mais dinheiro. Mas, sem que eles pedissem, as circunstâncias lhes ensinaram
a intuição central do estoicismo e a sabedoria de entender seus próprios limites.
Como Sêneca nota constantemente, costumamos agir como se nosso controle sobre o mundo
exterior fosse muito maior do que realmente é. Até questões muito pessoais como nossa saúde,
nossas finanças e nossas reputações estão, no fim das contas, acima de nosso controle; podemos
tentar influenciá-las, é claro, mas equentemente as coisas não acontecem como desejamos. E o
comportamento dos outros está ainda mais fora do nosso controle. Para a maior parte dos conceitos
convencionais da felicidade — que consiste de moldar as coisas do jeito como as queremos — isso é
um enorme problema. Quando tudo vai bem, é fácil esquecer o quão ágil é o nosso controle: muitas
vezes nos convencemos de que nós conseguimos uma promoção no emprego, ou um novo
relacionamento, ou o prêmio Nobel, graças unicamente a nosso próprio brilho e esforço. Mas fases
ruins trazem de volta a verdade. Demissões acontecem, planos dão errado, pessoas morrem. Se a
sua estratégia para atingir a felicidade depende da capacidade de alterar as circunstâncias conforme
sua vontade, essa é uma péssima notícia: o melhor que você pode fazer é rezar para que as coisas
não deem errado demais e tentar desviar sua atenção se isso acontecer. Para os estoicos, em
compensação, a tranquilidade pressupõe con ontar a realidade: seu controle é limitado. “Nunca
confiei na Fortuna”, escreve Sêneca, “mesmo quando ela parecia estar em paz. Todos os seus butins
generosos — dinheiro, cargos, influência —, eu os depositei onde ela pudesse pedi-los de volta sem
me perturbar.” São coisas que estão além do controle de uma pessoa; se você investir nelas a sua
felicidade, está armando para si mesmo um duro choque. A única coisa que conseguimos realmente
controlar, afirmam os estoicos, é nosso juízo — aquilo em que acreditamos — a respeito de nossa
situação. Mas essa não é uma notícia ruim. Do ponto de vista dos estoicos, como já vimos, são nossos
juízos que causam nossas penas. Logo, controlá-los é tudo de que precisamos para trocar o
sofrimento pela serenidade.

“Suponha que alguém o insultou — mas o insultou de forma realmente abominável”, disse
Keith, inclinando-se para a ente na poltrona, como sinal de empolgação com o assunto. “Um bom
estoico não vai ficar zangado, enfadado, aborrecido ou desconcertado, porque verá, no fim das
contas, que nada de ruim aconteceu. Para ficar aborrecido, primeiro ele teria de ter achado que o
outro lhe fez mal. O problema é que as pessoas são condicionadas a vida inteira a fazer esse tipo de
juízo.”
Esse é um exemplo relativamente pequeno: é fácil entender que um insulto verbal não implica
dano pessoal. É muitíssimo mais difícil argumentar o mesmo, por exemplo, sobre a morte de um
amigo. É por isso que a noção de um “projeto maior” é, no fim, tão crucial para uma aceitação
completa do estoicismo: só quando vemos a morte como parte desse projeto é que podemos ter
esperança de nos sentirmos serenos a respeito. “Não despreze a morte, mas se contente com ela,
pois também ela é um desses desígnios da natureza”, diz Marco Aurélio. É um pedido difícil. Nessa
situação, provavelmente, o melhor que o estoicismo poderia fazer por um ateu seria fazê-lo ver que
manteve algum controle sobre seus pensamentos. O ateu seria capaz de lembrar a si mesmo que foi
possível optar por uma tristeza profunda, mas razoável, em vez de mergulhar numa espiral de puro
desespero.
Isso não chega a anular a utilidade da abordagem estoica quando se trata de tristezas menores
do cotidiano, e foi por aí que Seddon mandou seus alunos do curso por correspondência começarem.
Ele pediu que tentassem pensar estoicamente só pelo tempo de uma ida ao supermercado. Algum
produto está faltando? A fila está muito longa? O estoico não é necessariamente obrigado a tolerar
essa situação; em vez disso, ele pode resolver ir a outro mercado. Mas se aborrecer seria, em termos
estoicos, um juízo errado. Você não pode controlar a situação. Reagir com fúria contra a realidade é,
portanto, irracional. Além disso, sua irritação é, com toda probabilidade, desproporcional ao dano
real causado pela inconveniência, se é que houve algum; não há motivo para levar a questão para o
lado pessoal. Talvez seja uma oportunidade de pôr em prática a “premeditação do mal”: qual a pior
coisa que pode acontecer como consequência disso? Fazer essa pergunta, quase sempre, revelará
que sua opinião sobre a situação era exagerada, e reduzi-la a suas verdadeiras dimensões aumentará
enormemente as chances de trocar a decepção ou o aborrecimento pela calma.
É essencial compreender aqui a diferença entre aceitação e resignação: usar o poder da razão
para deixar de se perturbar com uma situação não significa que não se deva tentar mudá-la. Pegando
um exemplo bastante óbvio, não se deve esperar que um estoico que esteja so endo abuso em uma
relação tolere isso, e o mais aconselhável, é quase certo, seria agir para se livrar dela. O estoicismo o
obrigaria a encarar a realidade de sua situação — ver as coisas como elas são — e então tomar as
medidas que estiverem a seu alcance, em vez de se queixar das circunstâncias como se elas não
devessem existir. “O pepino está amargo? Deixeo de lado”, aconselha Marco Aurélio. “Há espinheiros
no caminho? Desvie. Basta isso, sem perguntar ao mesmo tempo: ‘Como essas coisas puderam vir
ao mundo?’”
Ou pegue alguém que tenha sido condenado e preso por engano, disse Keith.

Então, essa pessoa, sendo estoica, dirá que ter sido injustamente aprisionada, em certo
sentido, não é realmente importante. O que importa é como eu encaro a situação. Agora que
estou aqui, e em nenhum outro lugar, aqui neste momento e neste lugar, o que posso fazer?
Talvez eu precise esmiuçar a legislação, entrar com um recurso e lutar por minha liberdade.
Isso, com certeza, não é resignação, e sim, racionalmente, a aceitação da realidade da
situação. Portanto, eu não preciso me sentir deprimido pelo pensamento de que aquilo não
devia estar acontecendo. Porque está acontecendo.
Keith e Jocelyn sentiram isso na pele. “Sem estoicismo”, disse Keith baixinho, gesticulando para
si mesmo e para a mulher, “não consigo mesmo imaginar como teríamos conseguido passar por tudo
isso.”
Horas depois, saindo da casa enquanto anoitecia em Watford, tive a impressão de que absorvi
algo da tranquilidade racional e rigorosa de Keith, como por osmose. De volta a Londres, enquanto
comprava comida para fazer o jantar para os amigos que estavam me hospedando, eu de fato acabei
na ponta errada de uma longa fila de supermercado, onde só havia um caixa estressado e uma série
de registradoras defeituosas. Tive um instante de irritação, até conseguir pedir socorro aos estoicos.
A situação era como tinha que ser. Se eu quisesse, podia ir embora. E a pior hipótese possível ali —
uns minutinhos de atraso no jantar com meus amigos — era tão irrelevante que chegava a ser risível.
O problema eram meus juízos irracionais, e não a fila do supermercado. Reconhecer isso me deixou
exageradamente contente comigo mesmo. Claro que, na longa história do estoicismo, esse triunfo é
um dos menores. Não se podia compará-lo, por exemplo, a manter-se tranquilo ao ser forçado a
suicidar-se sangrando até a morte, como Sêneca. Mesmo assim, eu disse a mim mesmo —
estoicamente — que tinha que começar de algum jeito.

Para os estoicos, portanto, a única coisa que podemos controlar são nossos juízos a respeito
do mundo. Mas também é tudo que precisamos controlar para sermos felizes; a tranquilidade resulta
de substituir nossos conceitos irracionais por outros, racionais. E cogitar a pior hipótese possível, a
“premeditação dos males”, é, muitas vezes, o melhor jeito de conseguir isso — a ponto de, sugere
Sêneca, vivenciar propositalmente esses “males”, de modo a compreender que eles não são tão ruins
quanto você teme irracionalmente.
Esta última foi a técnica específica que, séculos mais tarde, inspirou o psicoterapeuta
inconformista Albert Ellis. Ele fez mais que qualquer outro para trazer o estoicismo à linha de ente
da psicologia moderna. Em 2006, em seus últimos meses de vida, fui visitá-lo, numa cobertura
apertada no prédio que ele batizou — com imodéstia característica — como Instituto Albert Ellis, no
Uptown de Manhattan. Ele estava com 93 anos e nem se levantou da cama para a entrevista; para
compensar sua severa deficiência auditiva, estava usando um enorme par de fones de ouvido e pediu
que eu falasse em um microfone.

“Como proclamou Buda há 2500 anos”, disse, assim que começamos a conversa, balançando
um dedo na minha direção, “todo mundo despirocou completamente! Esse é o nosso jeito de ser.”
Para ser sincero, se ele não tivesse empregado esse linguajar logo de cara, eu ia me sentir enganado,
tamanha sua reputação de boca-suja. Mas eu sabia que encontrá-lo rendia mais que simples
diversão. Uns vinte anos atrás, ele foi eleito por um grupo de psicólogos americanos como o segundo
psicoterapeuta mais influente do século XX, atrás do fundador da psicologia humanista, Carl Rogers,
mas — surpreendentemente — à ente de Sigmund Freud. Foi generoso da parte deles, considerando
a opinião de Ellis sobre a maior parte da psicologia convencional, que para ele não passa de “uma
bosta”.
Nos anos 1950, quando Ellis começou a divulgar sua visão da psicologia com sabor estoico, ela
era muito controvertida. Conflitava tanto com o foco da autoajuda no pensamento positivo quanto
com as ideias eudianas dominantes na área. Várias vezes, em simpósios de psicologia, ele foi
ridicularizado. Mas agora, autor de mais de cinquenta livros — um exemplo típico é o best-seller How
to Stubbornly Refuse to Make Yourself Miserable About Anything; Yes, Anything! [Como teimar em
não se entristecer com nada; sim, nada!] —, ele irradiava satisfação por seu triunfo intelectual.
Alguns dias antes, eu presenciara Ellis dando uma de suas famosas “oficinas de sexta à noite”,
em que ele juntava voluntários no palco para insultálos (para o próprio bem deles), diante de uma
plateia de aprendizes de terapeutas e espectadores interessados pelo tema. A primeira participante
a que assisti so ia de forte ansiedade: não conseguia decidir se largava o emprego e se mudava para
o outro lado do país para viver com o namorado de muitos anos. Ela queria se casar com ele e não
gostava muito do emprego. Mas e se ele não fosse a pessoa certa? “Se ele for um traste, você se
divorcia!”, gritou Ellis — gritou porque era surdo, mas, desconfio, também porque gostava de gritar.
“Isso
ia ser altamente desagradável! Pode ser que você fique triste! Mas não precisa ser horrível. Não
precisa ser absolutamente terrível.”
Essa distinção — entre desfechos absolutamente terríveis e aqueles que são só ruins — pode
parecer ívola ou uma discussão trivial de semântica. Para entender por que não é nem uma coisa
nem outra, e por que vai ao cerne da visão de Ellis sobre as virtudes do pensamento negativo, é
preciso voltar à juventude dele, em Pittsburgh, nas primeiras décadas do século XX. Desde a infância,
pensar como um estoico mostrou-se uma necessidade pessoal imediata. Ele se lembrava da mãe
como uma pessoa centrada em si mesma e melodramática; o pai, caixeiro-viajante, raramente estava
em casa. Aos cinco anos, Ellis teve problemas renais graves, que o condenaram durante a infância a
longas internações hospitalares, com raras visitas dos pais. Pensando sozinho, ele derivou para
especulações filosóficas sobre a natureza da existência, e acabou lendo as Cartas de um estoico, de
Sêneca. O foco dos estoicos na importância dos juízos pessoais sobre as circunstâncias o tocou; ele
acabou percebendo que sua vida infeliz poderia ser uma prova para adquirir a sabedoria estoica.
Assim, em 1932, quando ele era um adolescente desengonçado de dezoito anos que morria de medo
de falar com as mulheres, já sabia o bastante de filosofia e psicologia para tentar tratar o problema
da timidez com uma experiência prática de estoicismo. Um dia, no verão daquele ano — o verão em
que Amelia Earhart se tornou a primeira mulher a cruzar o Atlântico sozinha num avião e que Walt

Disney lançou o primeiro desenho animado de longa metragem em Technicolor —, Ellis foi ao Jardim
Botânico do Bronx, perto de sua residência nova-iorquina, para pôr em prática seu plano.
Ellis decidiu que todos os dias, durante um mês inteiro, ele obedeceria sem vacilar a uma regra.
Ele se sentaria em um determinado banco do parque e, se uma mulher se sentasse a seu lado, ele
tentaria puxar um papo inocente. Só isso. No fim, ele dividiu o banco e tentou conversar com 130
mulheres. “Trinta se levantaram e foram embora”, ele lembraria, anos depois. “Restou-me uma
amostra de cem, boa o suficiente para fins de pesquisa. Falei com todas as cem — pela primeira vez
na minha vida.” Só uma conversa avançou o bastante para Ellis e sua parceira de banco combinarem
um encontro — “e ela não apareceu”. Para um observador mal informado, essa experiência pode
parecer um acasso total. Mas Ellis provavelmente rejeitaria qualquer veredicto como “uma bosta”.
Para ele, foi um imenso sucesso.
O que Ellis compreendeu a respeito de suas ideias inconfessas sobre conversar com mulheres
— uma descoberta que ele depois estenderia a todas as crenças por trás de nossas preocupações e
ansiedades — é que essas ideias eram absolutistas. Em outras palavras, não apenas ele queria ser
menos tímido, mas queria ser capaz de falar com as mulheres. Ao contrário, ele estava agindo sob a
convicção absolutista de que ele precisava da aprovação delas. Tempos depois ele cunharia um nome
para esse hábito mental: “musturbação”.* Nós elevamos tudo aquilo que queremos e preferiríamos
possuir a coisas que acreditamos dever possuir; temos a impressão de que devemos nos sair bem em
certas circunstâncias, ou que os outros devem nos tratar bem. Como achamos que essas coisas
devem ocorrer, concluímos que será uma catástrofe absoluta caso não ocorram. Não é à toa que
ficamos tão ansiosos: decidimos que, se acassamos no nosso objetivo, isso não apenas será ruim,
mas completamente ruim — absolutamente terrível.
Os encontros de Ellis no Jardim Botânico do Bronx o fizeram ver que a pior hipótese possível
— a rejeição — estava longe de ser o desastre absoluto que ele temia. “Ninguém pegou um estilete
e arrancou meu saco”, ele contou. “Ninguém vomitou e saiu correndo. Ninguém chamou a polícia.”
Na verdade, foi bom, estoicamente falando, que nenhuma de suas conversas tenha resultado em
encontros emocionantes; se ele tivesse alcançado esse resultado espetacular, poderia ter reforçado
sua crença irracional no horror de não alcançá-los. Esse exercício de “ataque à vergonha”, como mais
tarde ele viria a se referir a esse tipo de ação, era a “premeditação do mal” tornada real e imediata.
A pior coisa sobre qualquer acontecimento, Ellis gostava de dizer, “costuma ser a crença exagerada
em seu horror”. O jeito de desarmar essa crença seria encarar a realidade — e, na realidade, ser
rejeitado pelas mulheres mostrou-se algo apenas indesejável, não assustador ou terrível. Anos
depois, já como psicoterapeuta praticante, Ellis elaborou outros exercícios de ataque à vergonha; em
um deles, mandou seus pacientes para as ruas de Manhattan instruindo-os a abordar estranhos e
dizer a eles: “Com licença, acabei de sair do hospício — você saberia me dizer em que ano estamos?”.
Isso mostrava aos pacientes que ser tachado de louco não mata. Em outro, ele mandava as pessoas
andarem de metrô em Nova York, anunciando em voz alta o nome das estações. Quando ele me
contou isso, respondi que minha impressão era que eu acharia esse exercício constrangedor e
paralisante. Ellis disse que era exatamente por isso que eu devia experimentá-lo.

Explicar a diferença entre um desfecho terrível e outro meramente indesejável tornou-se uma
missão norteadora da carreira de Ellis. Ele chegou ao ponto de insistir que nada poderia jamais ser
absolutamente terrível — “porque”, escreveu ele, “quando você teima que um evento indesejável é
mau ou terrível, você está querendo dizer, se quiser ser anco consigo mesmo, que ele não poderia
ser pior”. E no entanto, para ele, nada pode ser 100% ruim, porque sempre se pode imaginar algo
pior. Mesmo quando alguém é assassinado, “isso é muito ruim, mas não 100% ruim”, porque vários
dos seus entes queridos poderiam ter o mesmo destino, “e isso seria pior. Se você for torturado
lentamente até a morte, sempre poderia ter sido torturado ainda mais lentamente”. Com relutância,
ele admitia a existência de um acontecimento que pode ser legitimamente considerado 100% ruim:
a destruição completa de absolutamente tudo no planeta. Mas isso, ele ressalvava, “parece
improvável no futuro próximo”.
Pode parecer uma atitude ia em relação a coisas como tortura ou assassinato; soa de mau
gosto tentar construir hipóteses complexas apenas para encontrar algo pior do que elas. Mas é
exatamente no contexto desses cenários indesejáveis, insistia Ellis, que a estratégia de se concentrar
na pior hipótese possível — e fazer a distinção entre acontecimentos muito ruins e absolutamente
terríveis — realmente faz sentido. Ela transforma receios infinitos em receios finitos. Uma de suas
pacientes, ele contava, não conseguia ter vida amorosa devido ao medo extremo de contrair aids em
um beijo ou mesmo em um aperto de mão. Se um amigo seu tivesse uma ansiedade semelhante, sua
primeira reação seria tranquilizá-lo: em outras palavras, mostrar o quanto essa hipótese é altamente
improvável. Essa foi a primeira reação de Ellis, inclusive. Mas, como vimos, há um problema no
reconforto: tranquilizar a paciente dizendo a ela que era improvável que seus receios se
materializassem em nada a ajudava a livrarse da sensação de que, caso isso ocorresse, seria
inimaginavelmente ruim. Ellis passou, então, para a visualização negativa. Suponha que você tenha
contraído aids, disse ele. Seria bem ruim. Mas absolutamente horroroso ou 100% terrível? É claro
que não: dá para imaginar hipóteses piores. Sempre dá. Dá para imaginar outras fontes de
contentamento na vida, mesmo quando se contraiu aids. A distinção entre achar algo “muito ruim”
ou “absolutamente terrível” faz toda a diferença na vida. Só reagimos com terror cego àquilo que é
absolutamente terrível; todos os outros medos são finitos, e, por conseguinte, suportáveis. Quando
finalmente se deu conta disso, a paciente de Ellis conseguiu parar de temer uma calamidade
inconcebível e terrível. Em vez disso, passou a tomar as precauções normais para evitar a pior das
hipóteses, altamente indesejável, mas ao mesmo tempo altamente improvável. Além disso, ela
introjetou a compreensão estoica de que estava fora do controle dela suprimir toda e qualquer
possibilidade de que ocorresse aquilo que ela temia. “Se você aceita que o universo é incontrolável”,
disse-me Ellis, “você será bem menos ansioso.”
Esses insights estoicos foram úteis a Ellis, sobretudo nos meses que se seguiram à minha visita.
Seus últimos dias de vida foram so idos não apenas devido a problemas intestinais e pneumonia, mas
a uma briga com os demais diretores do Instituto. Eles o afastaram do comitê diretor, cancelaram
suas oficinas de sexta à noite e pararam de pagar sua moradia, forçando-o a se mudar. Ele entrou
com um processo, o juiz lhe deu sentença favorável e, quando morreu, Ellis estava de volta ao seu
apartamento. Fiel a seus princípios, ele insistia que esse contratempo não o deixara aborrecido. Tudo

altamente indesejável, é claro, mas não horroroso, e não fazia sentido teimar em fazer o universo
inteiro se alinhar com seus desejos. Os demais membros do comitê de direção, ele disse a um
repórter, eram “seres humanos falíveis e fodidos — como todo mundo”.
“CHANCERY LANE!”
Pronuncio as palavras em voz alta, mas sai da minha boca um grasnar tão nervoso que tenho
a impressão de que ninguém escutou. Correndo os olhos pelo vagão inteiro, não noto qualquer
indício de que alguém tenha percebido. É então que o homem de meia-idade sentado na minha ente
olha por cima do jornal, com um semblante que só consigo descrever como “levemente interessado”.
Cruzamos os olhos por um instante, e em seguida desvio o olhar. Mais nada acontece. O trem para.
Algumas pessoas descem. De repente, percebo que, subconscientemente, eu esperava que
ocorresse algo calamitoso — ser ridicularizado por todos, pelo menos. Como isso não ocorreu, sintome desorientado.
Pouco antes de chegarmos a Holborn, eu grito “HOLBORN!” — mais alto dessa vez, e com mais
confiança. O mesmo homem dá a mesma olhada. Um bebê, a dois assentos de mim, me observa,
boquiaberto. Mas provavelmente ele faria o mesmo de qualquer forma.
Na altura da estação Tottenham Court Road, eu cruzo uma espécie de onteira psíquica. A
adrenalina cai, o pânico se esvai e eu me vejo encarando a verdade que a experiência de ataque à
vergonha de Albert Ellis foi criada para martelar em meu cérebro: que nada disso, nem de longe, é
tão ruim quanto eu imaginava. Não me restou outra opção a não ser constatar que meu medo do
constrangimento baseava-se em ideias profundamente irracionais sobre o quão terrível seria se as
pessoas pensassem algo ruim a meu respeito. O fato é que elas não estão zombando
descaradamente de mim, nem sendo hostis — principalmente porque, tenho certeza, elas estavam
muito ocupadas pensando em si mesmas. Em Tottenham Court Road, mais gente olha para mim
quando eu falo. Mas isso já não me importa. Eu me sinto invencível.
Três estações adiante, em Marble Arch, eu me levanto e desço do trem, radiante comigo
mesmo, infundido de serenidade estoica. Ninguém no vagão parece estar se importando com isso,
tampouco.

* De must (dever) e masturbation (masturbação). (N. T.)
3. A tempestade antes da calmaria
Um guia budista para não pensar positivo

Você quer que seja de um jeito. Mas tudo acontece de outro.
Marlo Stanfield, personagem da série de TV The Wire

No início dos anos 1960, Robert Aitken, um zen-budista americano que vivia no Havaí,
começou a perceber algo inexplicável e alarmante. Aitken foi um dos pioneiros que trouxeram o
budismo para o Ocidente faminto de espiritualidade. Em sua casa em Honolulu, ele e a mulher, Anne,
criaram um zendo, ou centro de meditação, que atendia sobretudo a população crescente de hippies
na ilha. Mas algo não estava certo com alguns novos alunos da meditação. Eles chegavam, sentavamse na hora marcada em suas almofadas, onde ficariam imóveis como pedras, parecendo meditar;
mas de repente, quando soava o alarme encerrando um período de meditação, eles se levantavam
— e imediatamente caíam no chão. Aitken precisou de várias semanas de perguntas delicadas para
compreender os fatos. Havia corrido o boato, entre os hippies de Honolulu, que experimentar a
meditação zen sob influência do LSD era a viagem definitiva, um expresso de tirar o fôlego para o
êxtase.
À medida que a loucura pela meditação budista espalhou-se cada vez mais pelos Estados
Unidos e pela Europa, a ideia de que seria um atalho para o êxtase mostrou-se popular. Foi
certamente isso que, ainda nos anos 1950, atraiu Jack Kerouac, que aderiu a ela com o mesmo
entusiasmo que reservava para o uísque e os cogumelos mágicos. Por causa de problemas
circulatórios, ele só conseguia ficar de pernas cruzadas por uns poucos minutos de cada vez, mas ele
se esforçou mesmo assim, determinado a penetrar um novo estado de gozo. Às vezes até dava certo.
“Mergulhar, de mãos entrelaçadas, em um êxtase instantâneo, como um pico de heroína ou
morfina”, ele escreveu ao amigo Allen Ginsberg, fazendo uma descrição de suas primeiras
experiências. “As glândulas dentro do meu cérebro descarregando o bom fluido da alegria (Santo
Fluido) […] curando todos os meus males […] apagando-os todos […].” A maior parte do tempo,
porém, os joelhos lhe doíam demasiadamente, e em pouco tempo Kerouac era obrigado, como
escreveu um de seus biógrafos, a “erguer-se com dificuldade e esfregar as pernas para recuperar a
circulação”.
Hoje em dia, o estereótipo mais comum a respeito da meditação não é de que ela seja um
caminho para o êxtase, mas para uma calma similar a um transe. Às vezes parece impossível abrir
uma revista, ou uma seção de reportagens de um jornal, sem ler lições sobre os benefícios relaxantes
da meditação atenta. A foto-padrão que mais se usa para ilustrar esse tipo de matéria é uma mulher
de collant, numa praia, pernas cruzadas, olhos fechados e um sorriso insípido nos lábios (se o tema
da matéria for “como meditar na vida cotidiana”, às vezes o personagem é um homem ou uma
mulher de negócios, a caráter, mas com a mesma postura de pernas cruzadas e o mesmo sorriso).
Paul Wilson, um professor de meditação australiano, autor de best-sellers, autointitulado “o guru da
calma”, é responsável por reforçar essa ideia: seus livros sobre meditação incluem títulos como A
técnica da calma, Calma instantânea, O pequeno livro da calma, O grande livro da calma, Calma no
trabalho, A mãe calma, A criança calma, O livro completo da calma e Calma para a vida.

A noção da meditação como caminho para a calma é um pouco mais realista, já que a calma
— como o êxtase ininterrupto — pode, de fato, ser um de seus efeitos colaterais. Mas todas essas
associações contribuíram para a imagem atual da meditação como uma forma sofisticada de
pensamento positivo, e isso é o oposto da verdade. Realmente, a meditação tem pouco a ver com
atingir algum estado mental específico, seja êxtase ou calma. No núcleo do budismo, na verdade, há
uma noção muitas vezes mal compreendida e que se opõe à maior parte dos conceitos
contemporâneos sobre a felicidade, e que situa a meditação diretamente no “caminho negativo”
para a felicidade: o desapego.
Na raiz de todo so imento — diz a segunda das quatro “verdades nobres” que definem o
budismo — está o apego. O fato de desejarmos coisas, e de odiarmos ou não gostarmos de outras, é
o que motiva quase toda atividade humana. Em vez de simplesmente des utar de coisas prazerosas
quando elas ocorrem e vivenciar o desprazer das coisas dolorosas, nós criamos o hábito do apego e
da repulsa: nos agarramos àquilo de que gostamos, tentando conservá-lo para sempre, e tentamos
nos livrar daquilo de que não gostamos, evitando-o a qualquer custo. Ambos são formas de apego.
A dor é inevitável, desse ponto de vista, mas o sofrimento é um adendo opcional, que resulta de
nossos apegos, que representam nossa tentativa de negar a verdade inevitável: nada é permanente.
Crie um forte apego à sua boa aparência — em vez de simplesmente des utá-la enquanto durar — e
você so erá quando ela fenecer, como inevitavelmente
ocorrerá; crie um forte apego a uma vida luxuosa, e sua vida se tornará uma luta infeliz e acovardada
para que tudo continue desse jeito. Apegue-se demasiadamente à vida, e a morte se tornará ainda
mais amedrontadora (nesse ponto, não são coincidências os paralelos com o estoicismo e com a
distinção de Albert Ellis entre aquilo que preferimos e aquilo que sentimos dever possuir; as duas
tradições se sobrepõem de incontáveis maneiras). O desapego não significa retirar-se da vida,
suprimir os impulsos naturais ou recair em uma autonegação punitiva. Significa, simplesmente,
abordar a vida como um todo — os pensamentos íntimos e as emoções, os eventos exteriores e as
circunstâncias — sem apego ou repulsa. Viver desapegadamente é sentir impulsos, ter pensamentos
e viver a vida sem ficar preso a narrativas mentais sobre como as coisas “devem” ou não ser, ou como
devem permanecer para sempre. O budista desapegado ideal deve ser uma presença simples, calma
e consciente, sem fazer julgamentos.
Isso, sejamos ancos, não vai acontecer tão cedo conosco. A ideia de viver sem desejar que as
coisas sejam assim, e não assado, é um objetivo estranho para a maior parte das pessoas. Como não
se apegar a bons amigos, a des utar de relacionamentos satisfatórios ou a ter conforto material? E
como ser feliz sem essas coisas para se apegar? Sim, a meditação pode ser o caminho para o
desapego, como afirmam os budistas — mas não está nem de longe claro, para qualquer pessoa
acostumada às abordagens-padrão para a felicidade, por que todos deveriam almejar esse objetivo.
A primeira pista que encontrei para desafiar essa impressão foi o título de um livreto de outro
zen-budista americano, com formação de psiquiatra. Chamava-se Ending the Pursuit of Happiness [O
fim da busca pela felicidade]. Seu autor, um homem chamado Barry Magid, afirmava que a ideia de
usar a meditação para tornar sua vida “melhor” ou “mais feliz”, em qualquer sentido convencional,
era um mal-entendido. O objetivo, na verdade, era aprender a parar de tentar consertar as coisas, a

parar de se preocupar tanto em tentar controlar a própria experiência de vida, a renunciar a tentar
trocar pensamentos e emoções ruins por outros, mais agradáveis, e perceber que, ao deixar de lado
a “busca da felicidade”, uma paz mais profunda pode ser o resultado. Ou, para ser mais preciso, esse
não era o “objetivo”, porque Magid se opunha à noção de que a meditação teria um objetivo. Se
tivesse, ele dava a entender, ela seria apenas mais uma técnica de felicidade, um jeito de satisfazer
nosso desejo de nos agarrarmos a certos estados e de eliminar outros. Isso era extremamente
confuso para mim. De que adianta, pensei, fazer algo sem objetivo? Por que alguém tentaria pôr fim
à busca da felicidade, se não for para ser feliz — não se estaria do mesmo jeito buscando a felicidade,
só que de um jeito mais astucioso?
Barry Magid exercia a psiquiatria em um salão espaçoso, com poucos móveis, no térreo de um
prédio de apartamentos perto do Central Park, no Upper West Side de Manhattan. A única luz era
um abajur de escrivaninha, e as duas poltronas de couro estavam dispostas a uma distância
anormalmente grande uma da outra, encostadas em paredes opostas, de modo que a cabeça de
Magid parecia se destacar da escuridão enquanto me observava. Ele era um homem alto, recémentrado nos sessenta anos, com jeito de coruja e óculos com armação de arame. Quando lhe fiz uma
pergunta confusa sobre o budismo e o desapego, ele me olhou com ar ligeiramente divertido. E
começou a falar de um assunto totalmente diferente.
O que eu realmente tinha que entender, segundo ele, era o mito de Édipo. Na visão de Magid,
a célebre história do rei da Grécia antiga — que mata o pai e desposa a mãe, provocando a ruína de
sua família e de sua cidade, e levando-o a arrancar os próprios olhos — era a metáfora perfeita do
que há de errado com a busca da felicidade. Isso tinha pouco a ver com o “complexo de Édipo”, a
teoria de Freud sobre o desejo secreto dos meninos pelas mães. A verdadeira mensagem do mito,
explicou Magid, é que lutar para fugir de seus demônios é o que lhes dá força. É a “lei do reverso”
sob forma de mitologia: agarrar-se a uma versão em particular de uma vida feliz, enquanto se tenta
eliminar qualquer possibilidade de uma vida infeliz, é a causa e não a solução para o problema.
Você provavelmente conhece a história. Quando a rainha de Tebas deu à luz Édipo, seu terrível
destino — de que ele matará o pai e se casará com a mãe — já fora previsto por um oráculo. O pai e
a mãe, desejando desesperadamente assegurar que isso nunca ocorresse, convencem um pastor
local a pegar o recém-nascido, e o instruem a abandoná-lo na natureza. Mas o pastor é incapaz de
deixar Édipo morrer; a criança sobrevive e acaba sendo adotada pelos reis de Corinto. Tempos
depois, quando Édipo os questiona a respeito do rumor de que é adotado, eles negam — de modo
que, quando ele fica sabendo da terrível profecia do oráculo, supõe que eles são os pais a que ele se
refere. Decidido a fugir da maldição, distanciando-se o máximo possível do casal que acredita serem
seus pais, Édipo viaja para muito longe. Infelizmente, o lugar distante em que ele chega é Tebas.
Assim, o destino o arrasta para seu fim inevitável: primeiro, ele acaba metido em uma improvável
briga por uma carruagem e mata seu ocupante, que não era outro senão seu pai. Depois se apaixona
por sua mãe.
Uma leitura óbvia do mito é que você nunca pode escapar de seu destino, por mais que tente.
Mas Magid prefere outra leitura. Ele me disse: “A quintaessência do mito é que, se você fugir, será
pego. Exatamente aquilo de que você foge — bem, é a fuga que causa o problema. Para Freud, toda

a nossa psicologia é organizada em torno dessa fuga. O inconsciente é o depósito de tudo que
evitamos”.
O mito fundador do budismo é praticamente um espelho disso. O Buda se liberta
psicologicamente — se ilumina — ao encarar a negatividade, o so imento e a impermanência, em
vez de lutar para evitá-la. Diz a lenda que o Buda histórico nasceu com o nome de Sidarta Gautama,
filho de um rei, em um palácio no sopé do Himalaia. Da mesma forma que Édipo, seu destino foi
predito: segundo a profecia, ele se tornaria ou um rei poderoso ou um homem santo. Como os pais
de qualquer época, os de Sidarta preferiram o emprego mais seguro e que pagava melhor, então se
dedicaram a garantir que o filho crescesse tomando gosto pelo privilégio. Tornaram sua vida uma
prisão de luxo, mimando-o com as mais finas iguarias e um exército de servos; ele chegou a casar-se
e ter um filho sem deixar sua bolha de riqueza. Só aos 29 anos ele saiu pela primeira vez de seu
conjunto de palácios. Foi então que ele teve o que ficou conhecido na tradição budista como as
Quatro Visões: um velho, um homem doente, um cadáver e um monge asceta errante. Os três
primeiros simbolizavam a inevitabilidade da impermanência, e os três destinos que nos aguardam.
O susto levou Sidarta a abandonar sua vida confortável e sua família e a tornar-se um monge
itinerante. Teria sido na Índia, anos depois, que ele alcançou a iluminação, depois de passar a noite
sentado sob uma figueira. Tornou-se, assim, o Buda, ou “o Desperto”. Mas foram essas visões iniciais,
segundo o mito, que despertaram nele a compreensão da impermanência. O caminho do budismo
para a serenidade começou com um confronto com o negativo.
Do ponto de vista eudiano-budista de Barry Magid, então, a maioria das pessoas que acreditam
estar “em busca da felicidade” está, na verdade, fugindo de coisas de que elas mal têm consciência.
Da forma como ele a descrevia, a meditação seria uma forma de parar de fugir. Sente-se, veja seus
pensamentos, emoções, desejos e aversões irem e virem, e resista ao impulso de fugir deles, de
consertá-los, ou de agarrar-se a eles. Ao fazer isso, em outras palavras, você praticou o desapego. O
que quer que ocorra, negativo ou positivo, você estava ali e observou. Não se trata de fugir rumo ao
êxtase, nem mesmo àquilo que se costuma entender por calma; e com certeza não se trata de
pensamento positivo. Trata-se do desafio muito maior de recusar-se a fazer qualquer dessas coisas.
Pouco tempo depois de encontrar Magid, tomei uma decisão radical de passar uma semana com
quarenta estranhos, meditando umas nove horas por dia, no meio da floresta, em pleno inverno, a
muitos quilômetros da cidade mais próxima, em silêncio quase ininterrupto.
O que acabou sendo interessante.

“A instrução básica para a meditação é realmente de uma incrível simplicidade”, disse Howard,
um dos dois professores encarregados de administrar o retiro da Sociedade Vipassa de Meditação,
uma mansão da virada do século convertida para esse fim em uma floresta de pinheiros remota no
centro do estado de Massachusetts. Era o começo da noite, e todos nós, quarenta pessoas,
estávamos sentados em travesseiros de casca de trigo-sarraceno no saguão principal do austero
casarão, ouvindo um homem cuja voz era tão calma que era impossível imaginar uma instrução vinda

de sua boca que não cumpriríamos de bom grado. “Sentem-se confortavelmente, fechem os olhos
calmamente, sintam sua respiração ir e vir. Podem se concentrar na sensação nas narinas ou no
abdome. Acompanhem uma inspiração e uma expiração. Em seguida repitam.” Houve alguns risinhos
nervosos; seria tão simples, ou tão chato assim? “Outras coisas virão”, prosseguiu Howard.
“Sensações físicas, sentimentos e pensamentos nos levarão a nos distrairmos. Na meditação, quando
vemos isso acontecer, não fazemos julgamentos. Apenas voltamos a respirar.” Aparentemente, era
simples assim mesmo. O que ele deixou de comentar — embora estivéssemos prestes a descobrir —
é que “simples” não era sinônimo de “fácil”.
Cheguei à Sociedade Vipassana de Meditação um pouco mais cedo, naquela mesma tarde,
vindo da principal estação ferroviária da região, a uns quarenta quilômetros dali. Dividi um táxi com
uma estudante israelense que vou chamar de Adina. Enquanto sacolejávamos nas estradas
irregulares do interior, ela explicou que ia fazer o retiro porque se sentia perdida. “É como se eu não
tivesse raízes em lugar algum… nada a que me agarrar, nenhuma estrutura em minha vida”, ela disse.
Não pude deixar de estranhar, no meu íntimo, a franqueza dela: mal nos conhecêramos, e no meu
entender aquilo era informação demais. Mas o que Adina disse em seguida fez sentido. Ela esperava
que a meditação fosse não uma forma de parar de se sentir perdida, mas de ver a perdição de outra
maneira — e até de aceitá-la. A monja budista americana Pema Chödrön chama isso de “relaxar na
falta de chão de nossa situação”, o que está em harmonia com a ideia de desapego. Chödrön sugere
que a “falta de chão” é, na verdade, a condição de todos nós, o tempo todo, gostemos ou não. Só
que a maioria de nós não consegue relaxar na presença dessa verdade; em vez disso, tentamos
desesperadamente negá-la.
O motorista do táxi parecia perdido num sentido mais literal, embrenhando-se em estradinhas
sulcadas floresta adentro, voltando pelo mesmo caminho e praguejando contra o GPS. Não foi fácil
achar o centro de meditação, o que não chegou a ser uma surpresa: a intenção é o isolamento.
Quando finalmente chegamos, me levaram a meu quarto — uma estreita cela monacal, com vista
para quilômetros e quilômetros de floresta. Tinha uma cama de solteiro, uma pia, um pequeno
armário, uma prateleira e mais nada. Acomodei minha mala debaixo da cama e corri para o saguão,
onde uma funcionária relacionou as regras da semana. Ela explicou que a ideia era passarmos uma
hora por dia ajudando a limpar o prédio, ou cozinhando, ou lavando a louça. Dali a poucos minutos,
ela ia tocar o pequeno gongo de latão na escadaria central do prédio, e a partir daí deveríamos fazer
silêncio — fora um punhado de exceções, como emergências e sessões de perguntas e respostas com
os mestres — pelo resto do retiro. Já que não íamos falar, ela acrescentou, seria melhor ficarmos
olhando para baixo também, para evitar a tentação de passar a semana nos comunicando por
sorrisos, caretas e piscadelas. Nada de álcool, nada de sexo, nada de telefones ou internet, nada de
ouvir música, nem ler ou escrever — uma vez que tudo isso, segundo ela, podia romper o silêncio
interior tanto quanto uma conversa em voz alta. De qualquer modo, como ficava claro pela
programação diária afixada no quadro de avisos, não haveria tempo para nada disso:
5h30 — Despertar
6h — Meditação sentada

6h30 — Café da manhã
7h15 — Período de trabalho (limpeza da cozinha, preparação da comida etc.)
8h15 — Meditação sentada
9h15 — Meditação caminhando
10h — Meditação sentada
10h45 — Meditação caminhando
11h30 — Meditação sentada
12h — Almoço, seguido de sesta
13h45 — Meditação caminhando
14h15 — Meditação sentada
15h — Meditação caminhando
15h45 — Meditação sentada
16h30 — Meditação caminhando
17h — Refeição leve
18h15 — Meditação sentada
19h — Meditação caminhando
19h30 — Palestra Dharma
20h30 — Meditação caminhando
21h — Meditação sentada
21h30 — Dormir ou meditação adicional
“Bom, essa é a estrutura que você estava procurando”, disse eu a Adina, que estava do lado.
Assim que eu disse isso, soou a mim mesmo como um comentário desagradável e metido a
espertinho. O que o tornou pior, de certa forma, foi ter sido a última coisa que eu disse. Segundos
depois, ouvimos o som profundo do gongo e caímos no silêncio.
Não demorou muito tempo nos travesseiros de meditação, porém, para descobrir que o
silêncio exterior não garante automaticamente silêncio interior. Durante várias horas, depois de
receber as instruções básicas — o resto da primeira noite e a maior parte da manhã seguinte —
minha cabeça foi tomada quase exclusivamente por letras de canções, repetindo-se sem parar em
alto volume. Inexplicável e estarrecedoramente, a principal era a de “Barbie Girl”, de 1997, cantada
pelo Aqua, um grupo dinamarquês-norueguês de kitsch-pop, música que eu sempre achei horrível.
Ela só era interrompida por pensamentos ocasionais, e nervosos, sobre como eu ia sobreviver àquela
semana, ou a lembrança de itens da minha lista de afazeres que eu esquecera de resolver antes de
sair de casa.
Diga-se em minha defesa que o mesmo acontece com qualquer pessoa em sua primeira
experiência de meditação silenciosa — a conversa interior, não “Barbie Girl”. Quando se eliminam as
distrações do ruído externo, e a atenção se volta para dentro de si, a primeira coisa que chama a
atenção é: dentro, o barulho é permanente. Não que a conversa interior seja provocada, de algum
jeito, pela tentativa de meditar. É que na maior parte do tempo o ruído exterior, simplesmente, abafa

o interior; mas no silêncio da floresta e da sala de meditação, tudo, de repente, torna-se audível. O
mestre espiritual Jiddu Krishnamurti definiu assim, certa vez: “Você se dá conta de que seu cérebro
está, o tempo todo, conversando, fazendo planos, projetos: o que vai fazer, o que fez, o passado se
intrometendo no presente. Está incessantemente conversando, conversando, conversando”.
Uma reação compreensível a essa conversa, quando você tenta meditar, é tentar silenciá-la —
abafando-a, ou até tentando parar de pensar em qualquer coisa. Mas um princípio central da
meditação vipassana, a ensinada no centro, é o contrário: deixe o barulho acontecer. Como
explica o mestre budista Steve Hagen em seu conciso guia Meditation: Now or Never
[Meditação: agora ou nunca]:
nós não tentamos nos livrar à força dos sentimentos, pensamentos e expectativas que nascem
em nossa mente. Não tentamos forçar nada para dentro ou para fora da mente. Em vez disso,
deixamos as coisas subirem e descerem, irem e virem, serem, simplesmente […]. Em certos
momentos da meditação, estaremos relaxados; em outros, nossas mentes estarão agitadas.
Não buscamos atingir um estado de relaxamento ou afastar o que agita e distrai nossa mente.
Isso seria só mais agitação.
Esse é o primeiro grande passo rumo ao desapego: aprender a enxergar os pensamentos e os
sentimentos que passam como se fôssemos espectadores, e não protagonistas. Examinando muito
de perto, essa ideia pode dar vertigem, porque observar seus processos mentais é, em si, um
processo mental; é fácil sentir-se preso em uma espécie de círculo infinito.
Felizmente, não é preciso resolver esse quebra-cabeça para praticar meditação. A técnica,
como Howard explicou, consiste simplesmente em retomar a respiração, toda vez que você perceber
que se deixou levar por uma narrativa ou uma emoção. Na manhã seguinte, durante a palestra diária
dos mestres, ele citou o místico católico são Francisco de Sales, praticante da meditação cristã: “Volte
a seu interior de modo suave. E mesmo que você não faça outra coisa durante uma hora inteira a
não ser voltar a seu interior mil vezes, perdendo-se de novo a cada vez, sua hora terá sido bem
empregada”. Desapego não é apenas isso, e há muito mais no budismo, é bom ressaltar, que o
desapego. Mas ele começa por aí.
Fica mais fácil entender isso quando você percebe que o budismo, ainda que hoje o vejamos
como uma religião, na origem era mais uma abordagem para o estudo da psicologia. O principal texto
psicológico budista, o Abhidhamma, é um volume extremamente complicado de listas, subitens e
discussões técnicas. Mas uma de suas lições mais simples é o conceito de que a mente pode ser vista,
sob muitos aspectos, como um dos sentidos, tanto quanto a visão, a audição, o olfato, o tato e o
paladar. Da mesma forma que os odores chegam a nós pela “porta sensorial” do nariz, e os sabores
pela porta sensorial da língua, também é possível ver a mente como uma espécie de porta sensorial,
ou como uma tela onde os pensamentos são projetados, como as imagens em um cinema.
Não costumamos pensar assim sobre os pensamentos. Afinal de contas, sons, odores e sabores são
apenas sons, odores e sabores, mas costumamos ver os pensamentos como algo muito mais

importante: por virem de dentro de nós, parecem mais essenciais, a expressão de nosso eu mais
íntimo. Mas será que isso é mesmo verdade? Quando você começa a meditar, logo fica evidente que
os pensamentos — e, a propósito, as emoções — borbulham da mesma forma incontrolável e
espontânea com que o ruído chega aos ouvidos, o cheiro ao nariz etc. Eu não posso resolver não
pensar, da mesma forma que não posso resolver não sentir io toda manhã, quando o despertador
toca às cinco e meia — ou, já que estamos falando disso, da mesma forma que não posso resolver
não ouvir o alarme.
Enxergar os pensamentos como similares aos outros cinco sentidos torna o desapego muito
mais fácil de atingir como meta. Na analogia mais usada pelos budistas contemporâneos, a atividade
mental começa a se parecer com o tempo — como os períodos nublados e de sol, de tempestades e
nevascas, indo e vindo. Nessa analogia, a mente é o céu, e o céu não se apega a determinadas
condições meteorológicas, nem tenta se livrar das “más”. O céu existe, apenas. Nisso, os budistas
vão além dos estoicos, que às vezes parecem apegados a certos estados mentais, especialmente a
tranquilidade. O estoico ideal adapta seu pensamento para não se deixar perturbar por
circunstâncias indesejáveis; o budista perfeito vê o pensamento, em si, apenas como um conjunto
de circunstâncias, entre outros, a ser observado acriticamente.
Ainda mais desafiador que a prática do desapego em relação a pensamentos e emoções que
passam é praticá-lo em presença da dor física. Não fazer juízos sobre o so imento, enquanto se so e,
parece um absurdo. Mas é nesse ponto que, nos últimos anos, têm se acumulado algumas das
evidências científicas mais fortes em favor do desapego. Alguns budistas, como Barry Magid,
poderiam criticar a ideia subjacente de que os benefícios da meditação precisem ser cientificamente
“provados”. De qualquer forma, as conclusões da ciência são interessantes — sobretudo no caso de
uma série de experiências realizadas em 2009, na Universidade da Carolina do Norte, por um jovem
psicólogo chamado Fadel Zeidan.
Zeidan queria testar os efeitos da meditação sobre a capacidade individual de suportar a dor
física. Assim, com revigorante simplicidade, decidiu machucálas. Sua pesquisa usou leves choques
elétricos — descargas que não chegavam a ferir, mas fortes o suficiente para provocar espasmos nos
membros —, pedindo aos participantes que dessem notas à experiência subjetiva da dor. Parte deles
recebeu, nos dias seguintes, três aulas de vinte minutos sobre a meditação atenta, em que se
mostrou como desenvolver uma consciência acrítica dos pensamentos, das emoções e das
sensações. Quando lhes deram novos choques elétricos, os que usaram as técnicas de meditação
relataram uma redução significativa da dor (numa experiência semelhante da equipe de Zeidan,
usando tomografias do cérebro e uma chapa quente para provocar dor, a meditação parece ter
provocado menos dor aos participantes; essa redução ia de 11% a 93%). Um crítico pode retrucar
que a meditação apenas serviu de distração, dando aos voluntários outra coisa em que focar. Zeidan
fez um grupo realizar contas matemáticas antes de levar os choques. Essa distração, de fato, fez
algum efeito, mas nem de longe como a meditação. E, ao contrário das contas, as aulas de meditação
reduziram o nível de dor mesmo quando os participantes não meditaram ativamente durante os
choques.

“Foi meio bizarro para mim”, disse Zeidan. “Eu estava intensificando os choques em
quatrocentos ou quinhentos miliamperes, e os braços dos voluntários sacudiam para a ente e para
trás, porque a corrente estava estimulando um nervo motor.” Mesmo assim, a avaliação de dor deles
continuava baixa. Zeidan acredita que a meditação “lhes ensinou que distrações, sentimentos e
emoções são momentâneos, [e] não exigem um rótulo ou um juízo, porque o momento já passou.
Com o treinamento de meditação, eles reconhecem a dor, dão-se conta dela, mas a deixam passar.
Aprendem a focar a atenção de volta ao presente”. Se você já segurou com força o braço da cadeira
do dentista, na expectativa da dor iminente que nunca acontece de verdade, sabe que boa parte do
problema é o apego a pensamentos sobre a dor, o medo de que ela ocorra e a batalha interna para
evitá-la. No laboratório de Zeidan, o foco desapegado na experiência da dor, propriamente dita,
tornou a experiência muito menos incômoda.
À medida que os dias passavam na Sociedade Vipassana de Meditação, no entanto, meus
apegos só pareciam se tornar cada vez mais intratáveis. No segundo dia, as letras de música tinham
desaparecido, mas no lugar apareceram irritações mais obscuras. Gradualmente, comecei a tomar
consciência do jovem sentado logo atrás de mim, à esquerda. Eu o notara assim que ele entrou no
salão de meditação, e naquela hora um flash de aborrecimento passou pela minha cabeça: havia algo
nele, em particular a barba, que me marcou como calculadamente desleixado, como se quisesse dizer
algo com aquilo. Dava para ouvir sua respiração, o que naquele momento também estava
começando a me irritar. Parecia estudado, artificial, algo teatral. Minha irritação aos poucos
aumentava — uma reação que me pareceu totalmente razoável e proporcional. Minha mente
fervilhava em silêncio: quanto desprezo o barbudo meditabundo devia ter por mim para decidir
estragar de propósito a serenidade da minha meditação, para se comportar de forma tão
abominável?
Acontece que os veteranos de retiros têm um nome para esse fenômeno. Eles o chamam de
“vingança vipassana”. Na calmaria, pequenas irritações são ampliadas a ponto de se tornarem
campanhas abertas de ódio; a mente é tão condicionada a apegar-se a narrativas que se agarra a
qualquer uma que esteja disponível. Estar no retiro me separou temporariamente das razões reais
de infelicidade na minha vida. Então, aparentemente, eu estava inventando novas. Na hora de me
enfiar na cama, à noite, eu ainda estava elucubrando a respeito do homem que respirava alto. Acabei
por desistir da vingança — mas só porque, exausto, caí num sono sem sonhos.

Uma das objeções mais óbvias ao desapego como modo de vida é que parece muito passivo.
Certo, pode ser um jeito de relaxar, mas não poderia levar você a não realizar nada? O monge budista
que passa décadas meditando pode estar em harmonia com o universo, mas isso não significa que o
resto de nós deva querer imitá-lo. O raciocínio é que o apego é, antes de tudo, a única coisa que
motiva as pessoas a realizar algo de valor. Se você não tivesse apego às coisas de uma certa maneira,
em vez de outra — e a certas emoções, em vez de outras — por que você tentaria crescer na
profissão, melhorar sua situação material, criar filhos ou mudar o mundo? Há, no entanto, uma
resposta convincente a esse argumento. Assim como o conceito estoico de aceitação não acarreta

necessariamente resignação, o desapego budista pode ser um modo prático e rigoroso de realizar
atividades de valor. Para entender como, pense na mais comum e ustrante barreira às realizações: a
praga quase universal da procrastinação.
Você já conhece, provavelmente, essa verdade: a maior parte dos conselhos contra a
procrastinação não funciona, ou pelo menos não funciona por muito tempo. Os livros motivacionais,
as fitas e os seminários podem animá-lo por um breve período de tempo, mas esse sentimento logo
passa. Listas de metas ambiciosas e sistemas de recompensas parecem uma ótima ideia quando você
as cria, mas já envelheceram no dia seguinte; slogans inspiradores em pôsteres e xícaras de café
perdem rapidamente a capacidade de inspirar. A procrastinação logo toma conta de novo, às vezes
é mais forte do que antes. Um cínico poderia dizer que é assim que os palestrantes motivacionais e
os autores de autoajuda garantem uma renda razoável: se seus produtos proporcionassem bemestar duradouro, a clientela voltaria muito menos.
O problema com todos os truques e dicas motivacionais, porém, é que eles não tratam, em
absoluto, de “como fazer as coisas”. Eles tratam de como se sentir disposto a fazer as coisas. “Se
sentirmos a emoção certa, podemos fazer qualquer coisa!”, diz Tony Robbins, autor de Desperte seu
gigante interior, tema que é a ideia fixa de seus livros e palestras (nos seminários motivacionais de
Robbins, os participantes são convidados a acordar andando descalços sobre brasas). Como vimos,
porém, as ideias que os gurus de autoajuda expressam de forma tão hiperbólica costumam ser
versões radicais daquilo que pensa o resto de nós. A resposta mais comum à procrastinação é, de
fato, tentar “sentir a emoção certa”: tentar motivar-se a continuar a trabalhar.
O problema é que ter vontade de agir e realmente agir são duas coisas diferentes. Uma pessoa
atolada até o pescoço na procrastinação pode dizer que não consegue trabalhar, mas na verdade
quer dizer que não consegue sentir vontade de trabalhar. A escritora Julie Fast, autora de livros sobre
a psicologia da depressão, observa que, mesmo quando uma pessoa está deprimida a ponto de não
conseguir sair da cama de manhã — algo que ela sentiu na própria pele —, é mais correto dizer que
ela não consegue sentir vontade de sair da cama. Não se deve depreender daí que os
procrastinadores, ou aqueles em depressão profunda, devam simplesmente arregaçar as mangas e
superar isso. Na verdade, se está enfatizando nossa tendência a confundir a ação com a vontade de
agir, e a maior parte das técnicas motivacionais é criada para mudar como você se sente. Essas
técnicas se baseiam, em outras palavras, em uma forma de apego — em reforçar seu investimento
num tipo específico de emoção.
Isso às vezes pode ajudar. Mas às vezes simplesmente não dá para se forçar a sentir vontade
de agir. Nessas situações, conselhos motivacionais podem piorar as coisas, ao reforçar, de forma subreptícia, a ideia de que é preciso estar motivado antes de agir. Ao incentivar o apego a um
determinado estado emocional, se está na verdade acrescentando uma barreira entre você e seu
objetivo. O subtexto é que, se você não se sente animado e satisfeito em relação ao trabalho, então
você não consegue trabalhar.
Em compensação, adotar uma posição desapegada em relação à procrastinação começa com
uma pergunta diferente: quem disse que, para começar a fazer algo, você precisa esperar até “sentir
vontade”? Dessa perspectiva, o problema não é estar desmotivado; é imaginar que você precise se

sentir motivado. Se você for capaz de enxergar como algo passageiro seus pensamentos e emoções
sobre aquilo que está adiando, vai perceber que a relutância em relação ao trabalho não é algo que
precise ser erradicado, ou transformado em positividade. Você pode coexistir com ela. Você pode
reconhecer a vontade de adiar, e agir assim mesmo.
É esclarecedor observar, neste ponto, o quão raramente os rituais diários e as rotinas de
trabalho de artistas e escritores prolíficos — gente que produz muito — incluem técnicas para “se
motivar” ou “se inspirar”. Bem ao contrário, eles tendem a dar ênfase à mecânica do processo de
trabalho, concentrando-se não em criar o estado de espírito ideal, mas em realizar certas atividades
físicas, independentemente do humor. Anthony Trollope escrevia três horas todas as manhãs, antes
de ir para seu trabalho como diretor nos correios; se dentro desse período de três horas ele
terminasse um romance, simplesmente começava outro (Trollope escreveu 47 romances ao longo
da vida). Da mesma forma, as rotinas de quase todos os escritores famosos, de Charles Darwin a John
Grisham, atribuem grande importância a fixar uma determinada hora para começar, ou um número
de horas para trabalhar, ou um número de palavras a escrever. Esses rituais dão uma estrutura sobre
a qual trabalhar, esteja ou não presente a vontade, a motivação ou a inspiração. Eles permitem
trabalhar em meio a emoções negativas ou positivas, em vez de deixar-se distrair pelo esforço de
cultivar apenas as positivas. Certa vez, o artista plástico Chuck Close disse, numa ase memorável:
“Inspiração é para amadores. O restante de nós simplesmente comparece ao trabalho”.
A abordagem psicológica que exprime melhor os benefícios pragmáticos do desapego é a
terapia Morita, escola fundada no início do século XX pelo psicólogo japonês Shoma Morita. Chefe
da psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Jikei, em Tóquio, Morita so eu forte
influência do budismo, e em particular de sua visão de pensamentos e emoções como meteorologia
mental — coisas que acontecem e com as quais podemos coexistir pacificamente. Morita dizia:
“Minha forma de fazer as coisas é simples. Não é necessário fazer esforços impossíveis quando não
se está bem. Em suma, quando você está aborrecido, fique aborrecido e diga: ‘Sim, e o que devo
fazer?’”.
Um praticante atual da terapia Morita, Gregg Krech, exprimiu assim essa abordagem original:
Muitos métodos terapêuticos ocidentais focam na tentativa de conseguir administrar ou
alterar nosso estado de espírito. Isso se baseia na presunção de que, se nossos sentimentos
puderem ser alterados [ou] aliviados, teremos mais condições de viver vidas plenas e úteis;
nossos sentimentos é que nos re eariam… [Mas] é correto presumir que devemos “superar” o
medo para pular do trampolim na piscina, ou reunir coragem antes de convidar alguém para
sair? Se fosse assim, a maioria de nós ainda estaria esperando para fazer essas coisas. Nossa
experiência de vida ensina que não é preciso alterar nossos sentimentos para agir […]. Tendo
aprendido a aceitar nossos sentimentos, descobrimos que dá para agir sem mudar nosso
estado de espírito.
Podemos ter medo, e agir mesmo assim.

Ao fim do quarto dia na Sociedade Vipassana de Meditação, as coisas tinham melhorado
bastante. A respiração do barbudo não incomodava mais. Todos parecíamos adaptados aos horários
que governavam nosso despertar, adormecer, meditar e comer; aquilo que antes nos parecia rígido
e militarista agora nos acalentava ao longo do dia. Na verdade, eu estava começando a gostar de
meditar — até a meditação caminhante, que envolvia mover-se num ritmo glacial pelo salão de
meditação, tentando subdividir a sensação de cada passo em seus componentes — “levantar”,
“mover” e “posicionar” — e que no início eu achava uma perda de tempo. Em intervalos ocasionais,
quando eu conseguia me embrenhar nos caminhos do bosque atrás do centro de meditação, eu me
dava conta de quanto estava hipersintonizado com o ambiente à minha volta: o ruído de cada galho
esmagado soava como um diamante lapidado. Ao mesmo tempo, a comida vegetariana que nos
serviam na sala de jantar — cozidos de lentilha indefiníveis, pasta de amendoim em bolachas de
centeio, esse tipo de coisa — começou a parecer deliciosa. Descobri subsabores sutis que nunca
imaginei que a pasta de amendoim pudesse esconder. O pôr do sol do inverno de Massachusetts,
visto da varanda principal da casa, muitas vezes era tão bonito que quase doía. À noite, meu sono
era profundo como nunca na vida.
E aí as coisas desandaram. Sem que eu notasse o momento exato da mudança, o silêncio do
salão de meditação tornou-se uma mistura de sala de tribunal e câmara de tortura. Por horas a fio,
eu era assaltado por baterias de pensamentos negativos e sentimentos a eles associados — de
ansiedade, culpa, preocupação, hostilidade, aborrecimento, impaciência e até terror —, como se
durante anos eles estivessem tomando corpo, invisíveis, esperando a hora de atacar. Acima de tudo,
eram sentimentos de autocrítica. Subitamente me dei conta — e por algum motivo de uma vez só —
dos incontáveis momentos em minha vida em que agi mal em relação a outras pessoas: meus pais,
minha irmã, meus amigos, namoradas ou colegas. Muitos desses momentos eram relativamente
pequenos na ordem natural das coisas — palavras grosseiras, relacionamentos malcuidados —, mas
me encheram de tristeza. Meses depois, topei com textos budistas dando a entender que esse é um
conhecido passo inicial de “acesso ao insight”, estágio pelo qual, tradicionalmente, quem medita tem
que passar: é chamado “incorporação da causa e do efeito” e tem a ver com a percepção nova de
como suas atitudes sempre têm consequências. A dor que vem junto com essas descobertas, do
ponto de vista budista, é uma coisa boa; é o solo fértil em que a compaixão pode criar raízes.
Depois de mais ou menos um dia inteiro assim, porém, comecei a notar uma coisa: na minha
cabeça, a situação estava longe do silêncio ou do relaxamento. E, no entanto, meu esforço constante
para voltar a focar em minha respiração — ou evitar me apegar a pensamentos e emoções — parecia
estar fazendo efeito. O ponto de vista em minha atividade mental so era uma mudança sutil, como
se eu tivesse galgado dois degraus numa escada para ver as coisas de cima. Eu estava menos
envolvido com elas. Shoma Morita diria que eu estava começando a vê-las como meras ocorrências
mentais, que eu devia perceber sem fazer juízos. Muitos dos meus pensamentos eram relativos ao
passado ou ao futuro, mas eu não estava mais viajando em devaneios ou lembranças desagradáveis;
eu estava totalmente presente, ali no travesseiro, assistindo ao espetáculo com algo mais próximo

do interesse que do pânico. Em alguns mosteiros na tradição zen, um monge tem a tarefa de se
esgueirar por trás de seus colegas, para bater neles com um bastão de madeira fino, ou keisaku,
exatamente para trazê-los a esse estado de presença absoluta. Na Sociedade Vipassana de
Meditação, não se bate nas pessoas, mas eu senti como se alguém tivesse batido. Eu estava
observando minha própria mente com total atenção.
A parte mais estranha, porém, e a parte mais difícil de descrever em palavras, era a questão
de onde eu estava assistindo tudo isso. Se eu deixara de me misturar a meus pensamentos, qual era
o ponto de observação? De lugar algum? De toda parte? Senti como se tivesse pulado no vazio.
Lembrei minha conversa com Adina no táxi, e o conselho de Pema Chödrön sobre “relaxar na falta
de chão de nossa situação”. Subitamente eu me dei conta de que passara minha vida toda me
agarrando desesperadamente a pensamentos, tentando evitar cair no vazio que existe por trás deles.
Só que agora eu estava no vazio, e não havia nada terrível a respeito dele. Quando o retiro estava
chegando ao fim, descobri, para minha surpresa, que eu não queria que ele acabasse; eu ficaria,
facilmente, mais uma semana. Mais que isso, senti-me cercado de amigos. Embora eu não tivesse
trocado palavras com quase nenhum dos demais participantes — e fosse incapaz de reconhecê-los
na rua, já que passamos o tempo todo olhando para o chão —, um sentimento tangível de comunhão
florescera no salão de meditação. Quando o gongo soou, indicando que podíamos falar de novo, o
papo-furado soou deslocado e sem jeito; era como se estivesse atrapalhando o companheirismo.
“Bom, foi…”, disse Adina, recaindo no silêncio, quando a encontrei na varanda, enquanto nos
preparávamos para ir embora. Encapsular a semana em meia dúzia de palavras parecia banal.
“Sei o que você quer dizer”, respondi.
Quando voltei a Nova York de trem, cheguei com a cabeça latejando de
dor: os ruídos normais do cotidiano eram demais para minha mente adaptada ao silêncio. Ver
quantos e-mails aguardavam na caixa de entrada não ajudou. Mas os pensamentos estressados, de
fato, foram embora mais rapidamente que antes. Parecia que eu estava conseguindo conviver com
um pouco de mau tempo.
Tudo isso é só uma pequena parte da visão radical do budismo em relação à psicologia. Mas é
um ponto central de qualquer abordagem “negativa” da felicidade: raramente é recomendável lutar
para mudar o tempo. “Uma mente clara é como a lua cheia no céu”, disse certa vez Seung Sahn,
mestre zen coreano da velha guarda, numa palestra nos Estados Unidos nos anos 1970. “Às vezes as
nuvens vêm cobri-la, mas a lua continua ali atrás. As nuvens passam, e então a lua brilha com força.
Então não se preocupem com uma mente clara; ela continua lá. Quando o pensamento vem, a mente
clara está por trás. Quando o pensamento vai embora, resta apenas a mente clara. O pensamento
vem e vai, vem e vai. Não se apegue ao ir e vir.” E se isso não bastasse para fazer a plateia se dar
conta de que não é preciso se apegar a narrativas mentais, que é possível optar por observar os
próprios pensamentos e sentimentos sem fazer juízos, e assim encontrar a paz por trás do
pandemônio? “Nesse caso”, Seung Sahn gostava de dizer, “lhe darei trinta golpes de bastão!”

4. Obcecado por metas
Quando não adianta tentar controlar o
futuro

Futuro, substantivo masculino. Período de tempo em que nossos negócios prosperam, nossos
amigos são sinceros e nossa felicidade está
garantida.
Ambrose Bierce, O dicionário do diabo

Em 1996, aos 28 anos, um americano de Indiana chamado Christopher Kayes comprou um
pacote para um trekking no Himalaia, em uma agência de turismo de aventura. Sua intenção, que
hoje soa irônica, era dar um tempo para relaxar. Uma carreira desgastante como operador da bolsa,
primeiro, e como consultor de empresas, depois, o deixara estafado. Kayes sempre se interessou
pela psicologia do mundo dos negócios. Decidiu, então, que ia fazer um doutorado em
comportamento organizacional. Para isso, ele precisava de tempo livre, e quando viu numa revista
de turismo um anúncio de uma expedição a pé por trilhas no Nepal, lhe pareceu a resposta ideal.
Quando aterrissou em Katmandu, como lembraria tempos depois, ele estava à procura de uma
“imersão revigorante na cultura nepalesa”, cercado pela beleza do Himalaia. Mas o que Kayes
encontrou nas montanhas foi um quebra-cabeça psicológico perturbador, que viria a dominar sua
vida pelos anos seguintes.
Quando Kayes e seus companheiros de trilha estavam explorando o sopé do monte Everest,
acampando em tendas à noite, um desastre de proporções históricas estava ocorrendo perto do pico.
Quinze alpinistas morreram no Everest naquela temporada de escaladas, oito deles num único
período de 24 horas que, desde então, entrou para os anais do montanhismo, em grande parte por
causa do best-seller No ar rarefeito, do jornalista e alpinista Jon Krakauer, um dos que estavam na
montanha naquele dia. Kayes encontrou pessoalmente alguns dos alpinistas e guias que

sobreviveram ao desastre — homens exaustos, de olhos fundos, emergindo atordoados, lutando
para entender o que ocorrera.
Até mesmo na era moderna das expedições comerciais ao Everest, em que qualquer um com
dinheiro o bastante e conhecimentos básicos de escalada pode pagar para ser transportado ao cume,
ainda não é tão incomum que se morra na tentativa. O que tornou o desastre de 1996 tão arrepiante
— além do grande número de mortos — foi o fato de ter parecido tão único e inexplicável. O tempo
no pico não estava mais perigoso que de costume. Não houve avalanches súbitas durante o período
em que a maioria dos escaladores pereceu. Todos os clientes pagantes eram suficientemente
treinados para a missão. No ar rarefeito, de forma polêmica, atribuiu a tragédia, em parte, à teimosia
e à arrogância de Anatoli Boukreev, um guia de montanha cazaque. Há algumas evidências em favor
dessa tese, mas no fim das contas ela também é uma explicação insatisfatória. A categoria dos
montanhistas tende à teimosia e à arrogância, e mesmo assim desastres da escala do ocorrido no
Everest em 1996, felizmente, são raros.
No fim, o ocorrido naquele ano parecia mais uma epidemia de irracionalidade em massa —
um episódio que chegou ao apogeu por volta do meio-dia de 10 de maio no Hillary Step, uma parede
de pedra apenas 90 metros abaixo do cume, num momento que se tornou conhecido como “o
engarrafamento”. Equipes da Nova Zelândia, dos Estados Unidos e de Taiwan — 34 alpinistas ao todo
— tentaram ao mesmo tempo a última etapa da ascensão naquele dia, do Acampamento Quatro, a
7900 metros, para o cume, a quase 8900 metros. Os esforços dos americanos e dos neozelandeses
foram coordenados, de forma a garantir um avanço suave montanha acima e abaixo. Mas os
alpinistas taiwaneses descumpriram um acordo para não subir no mesmo dia, e uma equipe de guias
precursores não fixou cordas de segurança no Hillary Step, como havia sido combinado. O resultado
é que o avanço suave logo se tornou um gargalo.
O timing é uma das variáveis mais importantes em qualquer ataque ao pico do Everest. Por
isso, os alpinistas costumam seguir “períodos de rotação” rígidos. Um montanhista que sai do
Acampamento Quatro à meia-noite deve chegar ao cume até meio-dia ou pouco mais. Mas se não
conseguir chegar no período de rotação programado — que deve ficar entre meio-dia e duas da
tarde, dependendo das condições do tempo e da atitude do chefe da expedição em relação ao risco
—, é essencial renunciar à tentativa e voltar. Do contrário, o risco é o alpinista ficar sem garrafas de
oxigênio e en entar o tempo mais perigoso do Everest na escuridão. Mesmo assim, diante do
engarrafamento no Hillary Step, as equipes persistiram, ignorando os períodos de rotação. De volta
ao Acampamento Quatro, o montanhista americano Ed Viesturs assistiu de telescópio ao lento
progresso dos alpinistas, e mal pôde crer no que viu. Lembra-se de ter pensado, cada vez mais
alarmado: “Eles já estão escalando há horas e ainda não estão no cume. Por que ainda não deram
meia-volta?”.
Depois das duas da tarde, o limite seguro do período de rotação, membros das três equipes
continuaram a chegar ao topo durante mais duas horas. O último foi Doug Hansen, um funcionário
dos correios do estado de Washington que era um dos clientes da expedição neozelandesa, pouco
depois das quatro horas, um horário incrivelmente tardio. Um ano antes ele já escalara o Everest,
mas fora forçado a dar meia-volta a algumas dezenas de metros do topo. Dessa vez, ele não desceria

de regresso. Como outros sete, foi pego em nevascas intensas quando escureceu, o que tornou
impossível se orientar na montanha e fez a temperatura cair a quarenta graus abaixo de zero. Eles
agonizaram sem serem alcançados pelas tentativas desen eadas de resgate que salvaram as vidas de
tantos outros escaladores. Anos depois da transformação do Everest em um objetivo factível tanto
para amadores quanto para profissionais, 1996 testemunhou a maior taxa de mortalidade da história
da montanha. E até hoje ninguém sabe direito por quê.
Ninguém a não ser, talvez, Chris Kayes. Pode parecer que um operador da bolsa transformado
em especialista em comportamento organizacional teria pouco a contribuir para a análise de um
desastre na montanha. Mas quanto mais Kayes descobria sobre o que ocorrera, acompanhando o
caso mesmo depois de voltar para casa, mais isso o lembrava de um fenômeno que testemunhara
constantemente entre os homens de negócios. Kayes suspeitava que os alpinistas do Everest haviam
sido “atraídos para a destruição por sua paixão por objetivos”. Sua hipótese era de que quanto mais
eles se obcecavam pelo fim — o êxito de atingir o cume —, mais essa meta se tornava não apenas
um objetivo exterior, mas parte de suas próprias identidades, da percepção de si mesmos como guias
bem-sucedidos ou amadores com grandes feitos. Se esse palpite a respeito dos alpinistas estivesse
certo, seria cada vez mais difícil para eles renunciar a sua meta, apesar das evidências crescentes de
que seria suicida. Na verdade, Kayes estava convencido de que essas evidências crescentes só teriam
reforçado a determinação dos alpinistas de não dar meia-volta. A escalada se tornaria não mais uma
mera luta para chegar ao cume, mas para preservar seu senso de identidade. Em teologia, o termo
“teodiceia” é usado para se referir ao esforço para manter a fé em um Deus benevolente, apesar da
prevalência do mal no mundo; a expressão é usada ocasionalmente para descrever o esforço para
manter qualquer crença a despeito de evidências em contrário. Tomando emprestado o termo, Chris
Kayes batizou de “metodiceia” a síndrome que ele havia identificado.
Em seus anos no mundo corporativo, Kayes se sentia incomodado ao ver o estabelecimento
de metas adquirir o status de dogma religioso entre seus colegas. A situação não mudou muito desde
então. Há uma crença geral de que a marca de um líder é a disposição de estabelecer metas grandes
e audaciosas para sua organização, e então concentrar todos os recursos em alcançá-las. Os
empregados, enquanto isso, são incentivados, e às vezes obrigados, a definir seus próprios objetivos
pessoais no trabalho, muitas vezes sob a forma de metas “Smart” (sigla em inglês para “específicos,
mensuráveis, alcançáveis, realistas e temporais”). Vários livros de autoajuda defendem metas
ambiciosas e altamente detalhadas como a chave-mestra para uma vida satisfatória e bem-sucedida:
“Daqui a um ano estarei casado com a mulher dos meus sonhos/ sentado na varanda da minha casa
de praia/ ganhando trinta mil por mês!”. Um dos propagandistas mais apaixonados dessa prática,
Brian Tracy — em seu livro
Metas: Como conquistar tudo o que você deseja, mais rápido do que jamais imaginou — insiste que
“viver sem metas claras é como dirigir em névoa cerrada… metas claras lhe permitem pisar no
acelerador da sua própria vida e avançar rapidamente”.
E no entanto Kayes não podia deixar de pensar que equentemente as coisas não aconteciam
assim. Uma meta comercial era fixada, anunciada e geralmente recebida com entusiasmo. Então
surgiam evidências de que ela não era razoável — e como resposta vinha a metodiceia. As evidências

negativas eram reinterpretadas como uma razão para investir mais esforço e recursos na busca
daquela meta. E, sem nenhuma surpresa, as coisas davam ainda mais errado. Kayes achava que algo
parecido tinha acontecido no Everest em 1996.
Hoje Chris Kayes é professor de ciência da administração na Universidade George Washington,
em Washington, D.C. Como tem percorrido o circuito das palestras nos últimos anos, usando o
Everest como metáfora para tudo que dá errado com nossa obsessão por metas, muitas vezes ele se
viu ferindo suscetibilidades. Um estudante russo lhe deu uma lição de moral curta e grossa por email: “Um homem ou uma mulher de negócios não deve estudar temas tão carregados de tragédia
e emoção. Questões de tragédia e os dilemas da existência humana devem ser deixados aos poetas,
aos romancistas e aos dramaturgos. Esses temas não têm nada a ver com as razões pelas quais
estudamos a liderança nas organizações”. Mas Kayes não podia abandonar o tema. Disse-me ele:
“Dizer que eu penso todos os dias no desastre do Everest provavelmente não está errado. É quase
como se fosse uma morte na minha família. ‘Assombrado’ é definitivamente a melhor definição”. Há
evidências convincentes em favor da hipótese de Kayes a respeito do que aconteceu na montanha
escondidas em um estudo de psicologia realizado em 1963 e praticamente esquecido. Os
participantes do estudo eram montanhistas profissionais, realizando uma expedição ao Everest.
Naquele ano, dezessete alpinistas estavam tentando se tornar os primeiros americanos a
chegar ao topo, e um psicólogo chamado James Lester se deu conta de que a expedição apresentava
uma oportunidade ideal para investigar o que levava as pessoas a tentar feitos tão ambiciosos e
perigosos. Com verba da Marinha americana, Lester e um punhado de colegas reuniram os
montanhistas em Berkeley, na Califórnia, onde foram submetidos a uma série de testes de
personalidade. Então — demonstrando um comprometimento incomum com sua pesquisa —, Lester
trocou a ensolarada Califórnia pelo monte Everest, acompanhando os alpinistas até o Acampamento
Dois, a 6400 metros. Ali, ele submeteu os alpinistas e os guias xerpas a novos testes. Em seu livro O
desafio da liderança: Aprendendo com o desastre do Everest, Chris Kayes relata a conclusão básica
de Lester a respeito do escalador típico do Everest: alguém que demonstrava “considerável
inquietação, aversão à rotina, desejo de autonomia, tendência a ser dominante em relações pessoais
e falta de interesse na interação social pela interação. A percepção da necessidade de realização e
independência era muito elevada”. Nada que surpreenda. Lester confirmou uma obviedade: que
alpinistas tendem a ser solitários dominadores com pouco respeito às convenções sociais. Mas
descobertas mais fascinantes brotariam dos diários que Lester pediu aos alpinistas que escrevessem
durante todo o período de três meses de preparação e realização da expedição ao cume da
montanha.
No caminho para o acampamento-base, a equipe americana dividiu-se em dois grupos
discordantes, cada um com uma ideia muito diferente quanto à melhor maneira de chegar ao topo.
O grupo maior preferia a rota mais convencional, via face sul, uma passagem varrida por fortes
ventos, o que a deixava relativamente livre de neve. Mas um grupo menor preferia uma abordagem
pela aresta oeste (ainda hoje, numa mórbida aberração estatística, a taxa de fatalidades da aresta
oeste é de mais de 100%, o que significa que, por aquele caminho, mais pessoas morreram do que
atingiram o cume). Ao comentar a diferença de opinião entre os alpinistas, Lester certificou-se de

que os diários incluíssem atualizações regulares sobre o otimismo ou pessimismo de cada um em
relação à rota escolhida.
Uma análise subsequente dos diários revelou um padrão inesperado. À medida que se
aproximava o dia da tentativa até o cume, o otimismo do grupo da aresta oeste começou a diminuir
rapidamente, substituído por uma corrosiva sensação de incerteza. Até aí, nenhuma surpresa, uma
vez que aquela rota não havia sido tentada. Mas à medida que aumentavam a incerteza e o
pessimismo em relação à opção pela aresta oeste, mais firme era o propósito de segui-la. Ou, nas
palavras de Kayes: “Quanto mais inseguros os alpinistas se sentiam em relação a suas possibilidades
de sucesso em atingir o cume, mais se tornava provável que eles investissem em sua estratégia
particular”. Um círculo bizarro e autossustentado tomou conta: integrantes da equipe buscariam
ativamente informações negativas em relação ao objetivo — evidências, por exemplo, de tempo
ruim, que tornaria a aresta oeste ainda mais arriscada —, o que aumentaria a sensação de incerteza.
Mas daí, num esforço para se livrar da incerteza, os alpinistas aumentavam o investimento emocional
em sua decisão. Como se o objetivo tivesse se tornado parte de suas identidades e, assim, a incerteza
em relação a ele ameaçasse não apenas o projeto, mas a eles mesmos como indivíduos. Tamanha
era a ânsia de eliminar esses sentimentos de incerteza que eles se agarravam cada vez mais a um
plano claro, firme e específico que lhes dava uma sensação de certeza em relação ao futuro — muito
embora o plano parecesse cada vez mais temerário. Eles estavam sob o domínio total da
“metodiceia”.
A expedição de 1963 — ainda que isso estrague a limpidez da argumentação de Kayes — teve
um final feliz: os alpinistas da aresta oeste levaram adiante seu plano perigoso e sobreviveram.
Enquanto isso, um número grande demais de protagonistas do drama de 1996 morreu para que
saibamos exatamente até que ponto a culpa foi dos mesmos processos mentais. Mas Beck Weathers,
um dos pagantes da expedição daquele ano, que foi duas vezes dado como morto na montanha —
ele perdeu o nariz e vários dedos por causa do congelamento, ao se arrastar de volta ao
acampamento —, disse considerar essa ideia plausível. Ele faria a seguinte reflexão: “Você pode
buscar seus objetivos excessivamente. Você pode se tornar obcecado pelas metas”.
Montanhistas, é claro, não usam a linguagem corporativa de metas e objetivos. Mas quando
eles se referem à “febre do cume” — aquele magnetismo estranho, e às vezes fatal, que certos picos
parecem exercer sobre a mente dos alpinistas —, eles estão identificando, intuitivamente, algo
parecido: o comprometimento com uma meta que destrói os que lutam em excesso para atingi-la,
como as sereias atraindo os marinheiros para as pedras. Ed Viesturs, que assistiu pelo telescópio à
tragédia de 1996, usou palavras vívidas para se referir a essa atração:
Quando você está lá em cima, já passou anos treinando, meses se preparando, semanas
escalando, e o cume está ao alcance dos seus olhos, e você sabe — no fundo da sua mente,
você está dizendo: “É melhor voltar, porque está tarde, vamos ficar sem oxigênio…”. Mas você
está vendo o cume, e ele o atrai. E para muitas pessoas é tão magnético que elas tendem a
violar as regras e subir. Num dia bom, você consegue se safar. Num dia ruim, você morre.

Se alguma vez você leu um livro popular sobre a importância de planejar o futuro, é quase
certo que tenha encontrado alguma referência — provavelmente várias — à Pesquisa de Metas de
Yale. Trata-se de uma descoberta, hoje lendária, sobre a importância de estabelecer planos
detalhados para sua vida: é mencionada no supracitado Metas, de Brian Tracy, mas também em
dezenas de outras obras, desde as pseudoacadêmicas (livros com títulos como Os fundamentos
psicológicos do sucesso) às mais populares (o manual de administração Treine sua equipe e massacre
a concorrência). O essencial da pesquisa é o seguinte: em 1953, pesquisadores perguntaram a
formandos da Universidade Yale se eles tinham ou não formulado por escrito metas específicas para
o restante de suas vidas. Só 3% deles disseram que tinham. Duas décadas depois, os pesquisadores
localizaram a turma de 53, para ver o que era de suas vidas. Os resultados foram inequívocos: os 3%
de formandos com metas escritas tinham juntado uma fortuna financeira maior que os outros 97%
somados. É uma descoberta de cair o queixo, e uma poderosa lição para qualquer jovem que sonha
em apenas levar a vida. Não surpreende, portanto, que tenha alcançado status de lenda no mundo
da autoajuda e em muitos setores da vida corporativa. O único problema com ela é que, de fato, é
uma lenda: a Pesquisa de Metas de Yale nunca aconteceu.
Alguns anos atrás, um jornalista da revista de tecnologia Fast Company decidiu retraçar a
origem da suposta pesquisa. Quando ela era mencionada, nenhuma publicação acadêmica era citada
como referência. Então ele começou a indagar aos gurus motivacionais que gostavam de mencionála. De forma desconcertante, quando se lhes pediam as fontes, um apontava para outro. Tony
Robbins sugeriu perguntar a Brian Tracy, que por sua vez sugeriu Zig Ziglar, um veterano do circuito
de palestras motivacionais e presença constante nos seminários do Motive-se!. Fechando o círculo,
Zig Ziglar recomendou perguntar a Tony Robbins.
Resolvi assumir pessoalmente a questão. Liguei para uma antiga arquivista da Universidade
Yale, Beverly Waters. Ela pareceu amigável e disposta a ajudar, mas quando eu mencionei a Pesquisa
de Metas, pude notar um tom de ustração em sua voz. Ela disse: “Fiz uma busca sistemática, anos
atrás, quando esse assunto surgiu, e não havia nada. Então o responsável pelos formandos de 1953
fez outra busca sistemática, e todos com quem ele falou disseram que ninguém nunca pediu para
preencher tal questionário, ou qualquer coisa do gênero”. Ela acrescentou ser altamente improvável
que isso tenha ocorrido em algum outro ano, tampouco, e descrito por engano como tendo ocorrido
em 1953, porque a Associação de Ex-Alunos de Yale teria sido procurada — e ninguém pôde
encontrar quem quer que se lembrasse disso. Waters suspirou. “É bom demais para não ser verdade,
acho”, disse ela.
É claro que a inexistência de uma pesquisa sobre os benefícios da fixação de metas não prova
que fixar metas não tenha benefícios; há várias pesquisas verdadeiras que atestam o fato de que
essa prática pode ser útil. O que essa história sugere, em vez disso, é o quão longe chegou o fascínio
pelas metas. Pode ser que você nunca tenha posto no papel quaisquer “objetivos de vida”, e você
pode discordar da premissa do estudo imaginário de Yale, que riqueza material é o bilhete para a
felicidade. Mas o desejo primordial por trás de tudo isso é quase universal. Em algum momento de
sua vida, e talvez em vários momentos, é provável que você tenha estabelecido alguma meta —

encontrar um companheiro, conseguir um determinado emprego, viver numa certa cidade — e
elaborado um plano para atingi-la. Numa interpretação ampla, estabelecer metas e realizar planos
para alcançá-las é o que fazemos a maior parte do tempo, quando estamos acordados. Usemos ou
não a palavra “metas”, estamos sempre fazendo planos baseados nos resultados que desejamos. O
grande filósofo político ancês Alexis de Tocqueville escreveu: “Pense em qualquer indivíduo em
qualquer período de sua vida, e você sempre o encontrará preocupado com planos novos para
aumentar seu conforto”. O uso da palavra “conforto” por Tocqueville, aqui, não deve desviar nossa
atenção; é claro que somos capazes de estabelecer metas muito mais grandiosas e generosas. Mas
a verdade profunda permanece: muitos de nós estamos perpetuamente ocupados com planos.
É exatamente essa preocupação que é questionada pelos seguidores do “caminho negativo”
para a felicidade, porque estabelecer e perseguir metas, muitas vezes, é um tiro que pode sair pela
culatra de forma terrível. Há bons motivos para acreditar que seria melhor para muitos de nós, e
muitas das organizações onde trabalhamos, perder menos tempo estabelecendo metas e, em vez
disso, concentrar-se mais genericamente e menos intensamente em planejar como queremos o
futuro.
No centro dessa visão está o insight que tiveram tanto Chris Kayes quanto James Lester ao
pesquisar os montanhistas do Everest: o que motiva nosso investimento em metas e planejamento
do futuro, muitas vezes, não é o reconhecimento sóbrio das virtudes da preparação e da antevisão.
Em vez disso, é algo muito mais emocional: o quanto nos causa desconforto o sentimento de
incerteza. Diante da ansiedade de não saber o que reserva o futuro, investimos com ainda mais força
em nossa visão preferida desse futuro — não porque isso vai nos ajudar a alcançá-lo, mas porque
nos ajuda a deixar de lado o sentimento de incerteza do presente. Kayes me disse: “A incerteza nos
leva a idealizar o futuro. Dizemos a nós mesmos que vai dar tudo certo, pelo menos enquanto eu
puder alcançar o futuro que projeto”. Obviamente, escalar o monte Everest demanda muito
planejamento e pressupõe um objetivo específico — atingir o cume. Mas, para Kayes, as evidências
indicam que, em 1996, a aversão ao sentimento de incerteza pode ter feito a balança pender para o
lado do investimento excessivo em metas.
É altíssimo o grau do nosso medo do sentimento de incerteza — a psicóloga Dorothy Rowe
afirma que é maior até que o medo da própria morte — e faremos coisas impensáveis, e até fatais,
para nos livrarmos dele. Como veremos adiante neste capítulo, no entanto, há uma poderosa
possibilidade alternativa: aprender a sentir-se mais confortável com a incerteza, e explorar seu
potencial recôndito, as duas coisas para viver melhor no presente e alcançar maior êxito no futuro.
É alarmante pensarmos em quantas decisões importantes tomamos na vida, antes de tudo,
para minimizar um desconforto emocional momentâneo. Faça o seguinte exercício de autoavaliação,
potencialmente arrasador: pense em qualquer decisão significativa que você já tomou e da qual veio
a se arrepender — um relacionamento no qual você embarcou mesmo sabendo que não era para
você, ou um emprego que você aceitou, embora, olhando para trás, fosse claro que não era
adequado a seus interesses ou habilidades. Se na época a decisão lhe pareceu difícil, é provável que,
antes de tomá-la, você tenha sentido um nó na barriga por causa da incerteza; depois disso, já com
a decisão tomada, essa sensação desapareceu? Em caso afirmativo, isso indica a perturbadora

possibilidade de que a motivação primordial para a decisão não foi nenhuma consideração racional
quanto ao acerto, mas simplesmente a necessidade urgente de deixar para trás a sensação de
incerteza. Assim escreveu o blogueiro David Cain, especializado em psicologia, refletindo sobre como
a intolerância à incerteza dominava suas próprias escolhas:
É um tanto desconcertante fazer um inventário mental para onde [a intolerância à incerteza]
conduziu minha vida. Ela é a razão pela qual gastei três anos e 10 mil dólares aprendendo
programação de computadores, quando eu não queria ganhar minha vida fazendo isso. É a
razão por trás de cada dia que passei trabalhando em profissões que não me inspiravam. [A
incerteza] faz você sentir que está afundando, e [que] é absolutamente imperioso pular para
o próximo pedaço de terra firme, não importa em que direção você esteja indo. Chegando a
ele, você pode respirar.
Agarrar-se com firmeza excessiva aos objetivos é uma das principais formas de expressar a
obsessão de alcançar o próximo pedaço de terra firme.
Para entender uma das muitas razões que fazem as metas darem errado, pense na experiência
de tentar chamar um táxi numa cidade grande, num dia de chuva. Se você já teve que fazer isso, sabe
bem o quanto é desesperador — e talvez entenda por que é tão difícil, já que parece o tipo de
problema econômico que uma criança de cinco anos é capaz de resolver. Quando chove, mais gente
procura táxis; logo, a demanda supera a oferta, e fica mais difícil achar um livre. Certo? Então, quando
o economista Colin Camerer e três colegas decidiram investigar o problema da escassez de táxis em
dias de chuva — usando Nova York como terreno de pesquisa —, dá para imaginar como foram vistos
por seus pares.
Só que, como a pesquisa mostrou, a razão do problema não é tão óbvia quanto parece. A
demanda por táxis de fato aumenta quando chove. Mas algo muito mais estranho ocorre ao mesmo
tempo: a oferta de táxis diminui. Isso contradiz a premissa-padrão da economia, segundo a qual
quando há a possibilidade de ganhar mais dinheiro as pessoas trabalham mais. Você poderia
imaginar que os motoristas de táxi, cujo horário é relativamente flexível, trabalhem mais quando a
demanda é mais alta. Em vez disso, eles paravam de trabalhar mais cedo quando chovia.
Uma investigação mais aprofundada revelou que a culpa é das metas. Os taxistas de Nova York
alugam seus veículos em turnos de doze horas e, em geral, estabelecem a meta diária de ganhar o
dobro daquilo que pagaram pelo aluguel do táxi. Quando chove, eles atingem a meta mais rápido e
voltam mais cedo para casa. Os nova-iorquinos ficam, assim, privados de táxis justamente quando
mais precisam deles, enquanto os motoristas ficam privados de renda extra exatamente na hora em
que seria mais fácil obtê-la.
A questão não é que seja errado um motorista de táxi preferir mais tempo livre a mais renda,
é claro — essa é uma escolha inteiramente defensável —, e sim que não faz sentido tirar tempo livre
quando está chovendo. Longe de se comportarem como o estereótipo dos agentes economicamente

racionais, os taxistas comportam-se mais como os pombos nas experiências realizadas pelo psicólogo
behaviorista B. F. Skinner. Ele observou que pombos que aprendem a
bicar um mecanismo na gaiola para receber uma bolinha de comida se oferecem uma “pausa pósbolinha”: relaxam depois de ter atingido uma meta predeterminada.
A meta de renda diária de um motorista de táxi é uma questão muito diferente da meta de
escalar o Everest, e os pesquisadores não investigaram as motivações emocionais dos taxistas. Mas
é possível ver o problema da escassez de táxis como outro exemplo, menor, de como a incerteza nos
causa desconforto. Aparentemente, os motoristas preferem a regularidade e a confiabilidade de uma
renda diária previsível à incerteza de se abrirem à chance de ganhar mais. Eles investiram em suas
metas a um ponto que vai além do que seria melhor para seus interesses.
Uma professora universitária chamada Lisa Ordoñez tinha em mente os taxistas de Nova York,
em 2009, quando ela e três colegas embarcaram no herético projeto de questionar a fixação de
metas. Em seu campo acadêmico, estudos de administração, a sabedoria da fixação de metas
raramente era questionada, em grande parte graças ao trabalho de dois teóricos da administração
norte-americanos, Gary Latham e Edwin Locke. Ao longo das quatro décadas anteriores, Latham e
Locke se firmaram como os pais da fixação de metas, publicando, somados, mais de vinte livros. O
credo dos dois era uma das primeiras coisas ensinadas aos calouros das escolas de administração:
para ter sucesso como homem de negócios, primeiro você precisa de um plano de negócios, focado
em metas específicas. Qualquer coisa abaixo disso seria inaceitável. Edwin Locke disse numa
entrevista: “Quando se pede às pessoas que façam o melhor que puderem, elas não fazem. É vago
demais”.
Ordoñez e seus colegas deram argumentos ao outro lado em um artigo de 2009 com um
trocadilho infame no título — Goals Gone Wild [Objetivos ensandecidos]* — nas páginas geralmente
sisudas da revista Academy of Management Perspectives. A fixação de metas que dava tão certo nos
estudos de Latham e Locke, segundo ela, tinha vários efeitos colaterais danosos nas experiências
dela. Por exemplo: metas claramente definidas aparentemente incentivam as pessoas a trapacear.
Em uma pesquisa do gênero, pediu-se aos participantes que formassem palavras a partir de um
conjunto aleatório de letras, como no jogo Scrabble; eles podiam informar anonimamente como
estavam se saindo. Aqueles a quem se atribuiu uma meta mentiam com mais equência que aqueles
a quem se pedia meramente para “dar o melhor de si”. Mais importante que isso, porém, para
Ordoñez e sua turma de hereges, é que a fixação de metas funciona de maneira muito pior fora do
laboratório de psicologia onde foram feitos os estudos. Na vida real, a obsessão pelas metas parece
criar problemas para pessoas e organizações com muito mais frequência.
Um exemplo esclarecedor do problema, apresentado em Goals Gone Wild, diz respeito à
General Motors, o colosso da indústria automobilística americana. Na virada do milênio, a GM estava
em sérios apuros, perdendo clientes e lucros para seus rivais mais ágeis, na maioria japoneses.
Seguindo ao pé da letra a filosofia de Latham e Locke, os executivos na sede da GM, em Detroit,
criaram uma meta — e a meta era “29”. Vinte e nove, anunciou a empresa com grande alarde na
imprensa, era a porcentagem do mercado americano que a empresa ia recuperar, reafirmando sua
antiga hegemonia. Vinte e nove também era o número nos pequenos bótons de ouro que os

mandachuvas da GM usavam, para demonstrar seu comprometimento com o projeto. Nas reuniões
corporativas e nos documentos internos da GM, 29 era a meta trombeteada a todos, da equipe de
vendas aos engenheiros, passando pelos relações-públicas.
Mesmo assim, o plano não apenas deu errado — ele piorou a situação. Obcecada pela
recuperação da fatia de mercado, a GM exauriu suas finanças já decrescentes em esquemas de
descontos e propagandas engenhosas, tentando convencer os consumidores a comprar carros
impopulares, em vez de investir em pesquisas mais arriscadas e imprevisíveis, e portanto mais
incertas, que poderiam ter resultado em carros mais inovadores e populares. Certamente há muitas
outras razões para o declínio da GM. Mas o 29 virou um fetiche, pervertendo a empresa de forma
danosa, fomentando o pensamento de curto prazo e a miopia, tudo para que os números nas
manchetes econômicas batessem com o das lapelas dos vice-presidentes. Isso nunca aconteceu. A
GM seguiu na espiral rumo à falência e quebrou em 2009, quando acabou recebendo um pacote de
ajuda de Washington. Na feira de automóveis de Detroit, em 2010, o novo presidente da empresa
para a América do Norte, ansioso para mostrar o quanto a GM tinha mudado, usou a campanha do
29 como um exemplo daquilo que não seria mais feito. Ele disse a um repórter de rádio: “Não vamos
encomendar mais bótons. Não vamos mais fazer essas coisas”.
É seguro dizer que a resposta de Gary Latham e Edwin Locke a Goals Gone Wild foi um dos
ataques mais furiosos já publicados na Academy of Management
Perspectives. Ordoñez e seus colegas foram acusados de ser “extremistas”, usando “a tática do
medo”; de abandonar o “bom método acadêmico” ao enfileirar anedotas; de “espalhar falsidades e
insultos”; de “fazer afirmações sem fundamento”. Quando perguntei a Ordoñez sobre a briga, ela
exclamou: “Ai, meu Deus! Minhas orelhas arderam durante uma semana. Foi tão absolutamente
pessoal. Mas se ponha no lugar deles. Eles passaram quarenta anos pesquisando como as metas
podem ser maravilhosas, e lá vinha eu mostrar as armadilhas.
Não passava de recalque deles”.
Toda essa briga acadêmica interessa porque os dois lados representam duas maneiras
fundamentalmente diferentes de pensar em relação ao planejamento para o futuro. Era injusto da
parte de Latham e Locke insinuar que Ordoñez e seus colegas haviam ignorado dados experimentais
completamente e preferido anedotas. Mas a verdadeira lição de Goals Gone Wild é que na vida real
raramente se repetem as condições simplificadas do laboratório. Na maioria dos estudos artificiais
sobre fixação de metas, se dá aos participantes uma única tarefa ou um conjunto simples de tarefas,
tal como no jogo de palavras mencionado anteriormente; em seguida se pede a alguns que realizem
a tarefa com uma meta clara na mente, e a outros não. Mas, como o caso da GM sugere, fora do
laboratório, seja nos negócios, seja na vida em geral, nenhuma situação é tão simples, nem de longe.
Ao isolar uma única meta, ou um conjunto de metas, e lutar para alcançá-la, você vai invariavelmente
exercer um efeito sobre outros aspectos, interligados, daquilo que você está tentando mudar. Num
fabricante de automóveis, isso pode significar zerar a verba da divisão de pesquisa, no esforço para
alcançar uma fatia de mercado predeterminada. Aplicando isso ao mundo real, pode significar atingir
suas metas ao custo da destruição de sua vida pessoal. Chris Kayes lembra que, em uma de suas
aulas, “um executivo veio falar comigo no final e me disse que sua meta era se tornar milionário aos

quarenta anos. Isso é algo que se ouve o tempo todo nas escolas de administração. E ele conseguiu
— estava com 42, então estava bem dentro da meta. Mas também tinha se divorciado e estava com
problemas de saúde. E os filhos não falavam mais com ele”. Outra aluna estava treinando loucamente
para correr uma maratona quando ele a conheceu. Ela foi bem-sucedida em seu objetivo — mas o
preço foram sérias lesões e várias semanas de molho em casa.
É um problema mais profundo do que se pode imaginar. A respostapadrão, segundo os
defensores da fixação de metas, é que esses são exemplos de pessoas que fixaram as metas erradas
— excessivamente ambiciosas ou excessivamente estreitas. Claro, é verdade que algumas metas são
mais realistas que outras. Mas o risco mais profundo, aqui, afeta virtualmente toda forma de
planejamento futuro. Formular uma visão do futuro exige, por definição, que você isole algum ou
alguns aspectos de sua vida, ou de sua empresa, ou sua sociedade, e foque neles à custa de outros.
O problema é a lei das consequências indesejadas, às vezes definida como “é impossível mudar uma
única coisa”. Mesmo num sistema pouco complexo, é extremamente difícil prever como a alteração
em uma variável vai afetar outras. O naturalista e filósofo John Muir comentou: “Quando tentamos
separar uma única coisa do resto, descobrimos que ela está atrelada a todas as outras no universo”.
É provável que nenhum pensador tenha levado essa ideia tão longe quanto o antropólogo
Gregory Bateson, que passou uma grande parte do início de sua carreira estudando a vida cotidiana
nos vilarejos de Bali. Ele concluiu que a coesão social e o funcionamento eficiente desses vilarejos se
deviam a costumes e rituais que ele definiu como “não maximizantes”. Ele queria dizer que essas
tradições tinham o efeito de dissuadir os habitantes de focar em um objetivo determinado que
poderia vir em detrimento de outros. O estilo de vida ugal dos balineses, por exemplo, era
contrabalançado pelo costume de rituais ocasionais de vistosas exibições de opulência. Isso evitava
que a busca da riqueza prejudicasse outras metas da sociedade e mantinha sob controle a
desigualdade e a competitividade entre os moradores dos vilarejos. Era um contraste óbvio com as
sociedades industrializadas do Ocidente, onde maximizar o crescimento econômico se tornara o
objetivo em nome do qual tudo era sacrificado. Se a vida nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha
podia ser comparada a subir uma escada, a vida na zona rural de Bali se parecia mais com uma
interminável, mas graciosa, caminhada na corda bamba, o que resultava num “estado constante” de
prosperidade social, que não estava associado a nenhum conjunto de metas em particular. Bateson
argumentou: “A existência contínua de complexos sistemas interativos depende da prevenção da
maximização de qualquer variável”. Isso não deve ser encarado como um argumento para abandonar
qualquer planejamento do futuro, mas serve como uma advertência para não lutar com excessivo
ardor por qualquer visão única do futuro. Como apontou Chris Kayes, os montanhistas que morreram
escalando o Everest em 1996 alcançaram, na verdade, seu objetivo: subiram ao topo. A trágica
consequência indesejada foi que eles não voltaram vivos.

O que significaria voltar-se para a incerteza como alternativa — aprender a desenvolver
tolerância por ela ou até assumi-la? Para tentar responder a essa questão, procurei um ex-viciado
em metas que, eu ouvira dizer, tinha ideias radicais sobre esse assunto.

Encontrei Steve Shapiro em um bar mal iluminado no West Village de Nova York, onde ele
estava bebendo um pint de cerveja Samuel Adams, encarando um cheeseburger, e assistindo com o
rabo do olho a uma partida de beisebol no televisor do canto. Em outras palavras, nada na aparência
dele sugeria algo além de um típico americano de 45 anos. Sua profissão poderia dar a mesma
impressão: ele era consultor e viajava pelo país organizando oficinas com homens de negócios.
Passava a vida em salas de conferência, saguões de aeroportos e bares de hotéis, em geral com algum
PowerPoint no meio. Mas, por trás do sorriso fácil e do rosto de traços amigáveis, o verdadeiro
Shapiro era uma espécie de espião inimigo, porque a mensagem que ele disseminava se chocava com
algumas das ideologias mais profundamente caras à vida corporativa americana. Ele propunha
desistir das metas e, em vez delas, assumir a incerteza.
Na verdade, Shapiro começou como um típico empreendedor americano, dedicado à meta de
se tornar um consultor de empresas muito bem pago. O desgastante horário de trabalho destruiu
seu casamento. Anos depois, ele diria: “Não tenho certeza se foram minhas metas que me fizeram
trabalhar em horários tão absurdos, ou se eu usei minhas metas como desculpa para evitar os
problemas em minha vida pessoal”. Ele tentou pular fora dessas crises com ainda mais metas (e
lembrava que em determinado momento chegara a ter um plano quinquenal para se tornar um “líder
em inovação”). Mas nenhum desses planos mudou sua vida. No fim, o que fez a diferença foi uma
conversa com uma amiga, que lhe disse que ele despendera energia demais pensando no futuro. Ela
sugeriu que ele devia pensar em si mesmo mais “como um sapo”. Shapiro estava na dúvida se era
uma ofensa, quando ela explicou: “Você tem que tomar sol numa vitória-régia até cansar. Então, no
momento certo, você pula para outra vitória-régia e fica ali por algum tempo. Faça isso de novo e de
novo, movendo-se na direção que lhe parecer certa”. A imagem do banho de sol na vitória-régia não
deve ser vista como uma insinuação de preguiça. O argumento da amiga de Shapiro era totalmente
compatível com a personalidade dele, batalhador e faminto por conquistas; apenas propunha
canalizá-la de forma mais saudável. Na verdade, propunha ajudá-lo a conquistar mais, ao lhe permitir
des utar do trabalho no presente, em vez de adiar a felicidade para um ponto cinco anos no futuro
— momento em que, em todo caso, certamente o plano quinquenal seria sucedido por outro. Essa
ideia desencadeou em Shapiro uma mudança de perspectiva que, por fim, levou à sua reinvenção
como defensor da abolição das metas.
Não surpreende, talvez, que as empresas que pagaram a Steve Shapiro por seus conselhos
tenham, em algumas ocasiões, se mostrado resistentes a essa ideia (“As pessoas me olhavam
esquisito às vezes”, disse ele). Chris Kayes encontrou a mesma resistência. Ele me disse: “Em
qualquer empresa que eu visitava, sempre tinha algum diretor que dizia: ‘Sabe, aquilo que eles
fizeram no Everest — correr riscos excessivos, ignorar as consequências, seguir em ente sem se
importar — é isso que eu quero que as pessoas façam aqui!’”. O contraargumento de Shapiro a seus
clientes céticos começa com aquilo que ele chama de “o lado da autoestima e da felicidade das
coisas”: a vida sem metas nos torna, simplesmente, seres humanos mais felizes. Numa pesquisa que
ele encomendou, numa amostra de adultos americanos, 41% das pessoas concordaram que atingir
as próprias metas não as tornou mais felizes, ou as desiludira, enquanto 18% disseram que suas
metas destruíram uma amizade, um casamento ou algum outro relacionamento importante. Além

disso, 36% disseram que, quanto mais metas estabeleciam para si mesmos, mais se sentiam
estressados — embora 52% tenham dito que uma de suas metas era reduzir a quantidade de estresse
em sua vida.
Chefes costumam ser convencidos com mais facilidade, porém, por outro argumento de
Shapiro: livrar-se das metas, ou focar menos nelas, muitas vezes também é a melhor maneira de
obter resultados dos empregados. Shapiro os seduz com anedotas sobre a eficiência de operar sem
metas, como a história da equipe de troca de pneus de Fórmula 1 com a qual ele trabalhou. Disseram
à equipe que eles não seriam mais avaliados por metas de velocidade, e sim pelo estilo. Instruídos a
atuar “suavemente”, em vez de superar o recorde anterior, eles acabaram se tornando mais rápidos.
Havia também a história da equipe de vendas que não cumpria metas e passou a superá-las — assim
que a empresa adotou a política de não revelar as metas à equipe de vendas. Shapiro me disse: “Você
pode ter um senso geral de direção, sem uma meta específica ou uma visão precisa do futuro. Eu
comparo isso ao jazz, à improvisação. É como serpentear com um objetivo”.
Mais recentemente, os benefícios de uma abordagem sem metas para os negócios começaram
a ser comprovados por mais que meros episódios. Alguns anos atrás, a pesquisadora Saras Sarasvathy
recrutou 45 empreendedores que correspondiam a uma definição predeterminada de “sucesso”:
cada um deles tinha pelo menos quinze anos de experiência em criar novos negócios e tinha aberto
o capital de pelo menos uma empresa na bolsa. Sarasvathy apresentou a eles uma história fictícia,
detalhada, sobre um so ware novo e potencialmente lucrativo (para confundir as coisas, era um so
ware para ajudar empresários a criar novos negócios). Em seguida, ela realizou entrevistas de duas
horas de duração com cada participante, para saber como eles pretendiam pegar essa ideia
promissora, mas vaga, e ganhar dinheiro de verdade com ela. Ela produziu centenas de páginas de
transcrições das entrevistas — e outras tantas quando, para fins de comparação, fez a mesma coisa
com executivos de empresas maiores e mais antigas.
Nossa tendência é imaginar que o talento especial de um empreendedor reside na capacidade
de ter uma ideia original e poderosa, e depois lutar para transformar essa visão em realidade. Mas o
perfil dos entrevistados de
Sarasvathy raramente correspondia a isso. O objetivo exato, muitas vezes, era um mistério para eles
mesmos, e a maneira como agiam refletia isso. A esmagadora maioria, antes de tudo, rejeitava a
doutrina de metas de Latham e Locke. Praticamente nenhum sugeriu criar um plano de negócios
detalhado ou fazer uma pesquisa de mercado abrangente para refinar os detalhes do produto que
pretendiam lançar (um participante anônimo disse a Sarasvathy: “Eu não acredito em pesquisa de
mercado. Uma vez alguém me disse que a única coisa de que você precisa é um cliente. Em vez de
fazer todas as perguntas, eu tentava vender um pouco”). Os empreendedores não pensam como
chefs da alta gastronomia, elaborando a visão de um prato para depois ir à caça dos ingredientes
perfeitos. Eles se comportavam mais como cozinheiros domésticos comuns, pressionados pelo
tempo, conferindo o que há na geladeira e no armário, resolvendo na hora o que dá para fazer e
como. Um deles disse: “Meu lema sempre foi ‘preparar, fogo, apontar’. Acho que se você perde
muito tempo fazendo ‘preparar, apontar, apontar, apontar’, nunca vai ver tudo de bom que
aconteceria se você começasse logo a agir. Acho que planos de negócios são

interessantes, mas não têm sentido real, porque você não pode prever todas as coisas positivas que
vão acontecer”. O talento mais valioso de um empreendedor bem-sucedido, acredita Kayes, não é a
“visão”, a “paixão” ou uma insistência inquebrantável em destruir todas as barreiras entre ele e o
prêmio pelo qual está obcecado. Em vez disso, é a capacidade de adotar uma abordagem não
convencional do aprendizado: uma flexibilidade de improvisar, não apenas em relação ao caminho a
seguir rumo a um objetivo predeterminado, mas também uma disposição de mudar o destino
propriamente dito. Essa flexibilidade pode ser abafada pelo foco rígido em alguma meta.
Saras Sarasvathy destilou sua abordagem antimetas em um conjunto de princípios que ela
chama de “efetivação”. É uma visão com implicações muito além do mundo do empreendedorismo:
pode servir como uma filosofia válida para a vida. Pessoas de “mente causal”, para usar a
terminologia de Sarasvathy, são aquelas que escolhem ou recebem uma meta específica e daí
decidem elaborar um plano para atingi-la, usando os recursos disponíveis. Pessoas de “mente
efetivadora”, por sua vez, avaliam os recursos e materiais à disposição, e daí imaginam que
resultados, ou direções provisórias, aqueles recursos tornam possíveis. Os “efetivadores” incluem: o
cozinheiro que esquadrinha a geladeira à procura de sobras que sirvam de ingredientes; o químico
que descobriu que a cola pouco adesiva que ele desenvolveu poderia ser usada para criar o post-it;
ou a advogada infeliz que descobre que seu hobby de fotografia nas horas vagas, para o qual ela já
possui o talento e o equipamento, pode virar uma profissão. Um dos fundamentos da efetivação é o
princípio do “pássaro na mão”: “Comece com os seus recursos. Não aguarde a oportunidade ideal.
Comece a agir, baseado no que você tem prontamente disponível: o que você é, o que você sabe e
quem você conhece”. Um segundo fundamento é o “princípio da perda aceitável”: não se deixe guiar
pelo pensamento de como será maravilhosa a recompensa se seu êxito num determinado passo for
espetacular. Em vez disso — e aqui há ecos distantes do foco dos estoicos na pior hipótese possível
—, pense no tamanho da perda se você acassar. Se ela for tolerável, é tudo que você precisa saber.
Dê o próximo passo e veja o que acontece.
“Veja o que acontece”, de fato, poderia ser o lema de toda essa abordagem para o trabalho e
a vida, e é uma mensagem realista, e não nebulosa. O psicólogo social Erich Fromm argumentava: “A
busca pela certeza bloqueia a busca pelo sentido. A incerteza é a própria condição que impele o
homem a desenvolver seus poderes”. É na incerteza que as coisas acontecem. É nela que as
oportunidades — de sucesso, felicidade, de uma vida plena — estão à espera.
Conclui a filósofa americana Martha Nussbaum, aplicando essa perspectiva à ética, sua área
de estudo:
Ser uma boa pessoa é ter um tipo de abertura para o mundo, uma capacidade de confiar em
coisas incertas além do seu controle, que podem despedaçá-lo em circunstâncias muito
extremas pelas quais você não é culpado. Isso diz algo muito importante sobre a vida ética:
ela se baseia na confiança na incerteza, e numa disposição a se expor. Ela se baseia em ser
mais como uma planta do que como uma joia: algo um tanto ágil, mas cuja beleza tão
particular é inseparável dessa fragilidade.

* O trocadilho é com a expressão girls gone wild, algo como “garotas ensandecidas”. (N. T.)
5. Quem está aí?
Como superar o próprio ego

Por que você está infeliz? Porque 99,9% de tudo que você pensa,
e de tudo que você faz, é para você — e “você” não existe.
Wei Wu Wei

Se no final dos anos 1970 você tivesse estado alguma vez no parque que domina a Russell
Square, no centro de Londres, talvez notasse um homem magérrimo de uns trinta anos, com feições
delicadas, quase de elfo, sentado sozinho num banco sem fazer absolutamente nada. A crer na
história que ele conta, durante quase dois anos Ulrich Tolle sentava-se em bancos do parque, exceto
quando nevava ou chovia muito. Nesse caso, ele buscava refúgio em bibliotecas públicas dos
arredores. Ele passava a noite nos sofás de amigos tolerantes — ou, ocasionalmente, quando
acabava a tolerância deles, dormia mal no meio do matagal em Hampstead Heath. Pensando bem,
porém, é improvável que você tivesse percebido a presença dele. Tolle era um joão-ninguém. E não
teria considerado um insulto esse rótulo, já que, do ponto de vista dele, isso era literalmente
verdade, em certo sentido.
Alguns meses antes do início de seu período nos bancos da praça, Tolle vivera sozinho em uma
quitinete em Belsize Park, no noroeste de Londres. Ele acabara de completar uma graduação na
Universidade de Londres, e estava so endo de depressão a ponto de cogitar regularmente o suicídio.
Foi quando, segundo ele, numa noite em que ele estava ainda mais desesperado que de costume,
veio um estalo. Deitado na cama, quase imóvel, no escuro, ele passou por uma experiência espiritual
aterradora e cataclísmica, que, em suas palavras, “apagou [sua] antiga identidade completamente”.

Ele escreveria, muitos anos depois, que foi “um movimento lento no começo. Fui tomado por um
medo intenso, e meu corpo começou a tremer […] Podia sentir como se estivesse sendo sugado para
um vazio. Eu me sentia como se o vazio estivesse dentro de mim mesmo, em vez de fora. De repente,
o medo desapareceu, e eu me deixei cair nesse vazio. Não tenho recordação do que aconteceu depois
disso”. Ele perdeu a consciência.
Quando acordou no dia seguinte, ele sabia, por instinto, que não era mais a pessoa que havia
sido. Mas o ocorrido parecia ainda mais perturbador e elementar que isso: de certa forma, de uma
maneira que ele não conseguia descrever adequadamente com palavras, ele não sentia mais como
se tivesse uma identidade própria claramente delimitada. Seu “eu” fora dado como desaparecido.
No lugar, ele sentiu apenas uma espécie de “êxtase e paz profundos e contínuos”, que diminuiu um
pouco, depois de algum tempo, mas nunca chegaria a desaparecer. “Andei pela cidade
completamente maravilhado com o milagre da vida na Terra, como se eu tivesse acabado de nascer”,
escreveu ele. Depois de algum tempo, ele deixou a quitinete. Sem agenda pessoal, sem lista de
tarefas, sem narrativa mental dizendo a ele para tornar-se alguém ou chegar a algum lugar, a ideia
de passar o dia nos bancos da Russell Square não lhe soava estranha. Não havia motivo contrário.
Assim, num estado de contentamento pacífico, foi o que ele fez.
Algum tempo depois da crise na quitinete, Ulrich Tolle mudou o nome para Eckhart Tolle, e
começou a falar e escrever sobre suas experiências. Muitos anos depois disso, outra força
cataclísmica — Oprah Win ey — ajudou a propulsá-lo à posição que ele ocupa hoje, como o autor
“espiritual” vivo mais vendido do mundo, à exceção, talvez, de Dalai-Lama. Não são fatos que
aumentam sua credibilidade aos olhos de todos, e alguns céticos questionaram a história de sua
transformação. Tolle diz que não se importa com os descrentes, embora você possa argumentar que
ele não tem muita escolha: quando você diz ao mundo que vive em um reino de infinita
equanimidade, não pode ficar melindrado se as pessoas não acreditarem em sua palavra.
Você também pode desconfiar, com bons motivos, que uma figura como Tolle teria pouco a
contribuir para o “caminho negativo” em busca da felicidade. Afinal, os livros que entulham as
prateleiras de corpo/ mente/ espírito, como os dele, equentemente incorporam o pior do pior do
“culto do otimismo”. Não menos incômoda é a divulgação de Oprah, considerando que ela também
abençoou coisas como O segredo, o suprassumo do pensamento positivo mágico, assim como
diversos gurus de autoajuda questionáveis. O primeiro best-seller do próprio Tolle, O poder do agora,
foi fotografado uma vez debaixo do braço da socialite Paris Hilton, quando ela se preparava para
cumprir uma pena de 45 dias de prisão em 2007. Nada disso é bom sinal. Mas o que quer que tenha
ocorrido exatamente com ele naquela noite em Belsize Park vale a pena levar em conta seus insights,
por causa de seu ponto de vista em relação a um tema em que a maioria de nós, em grande parte do
tempo, nem para para pensar: a ideia do “eu”.
Até agora, neste livro, exploramos as maneiras pelas quais as abordagens convencionais para
a felicidade e o sucesso podem ser contraproducentes, pela mesma razão essencial: que existe algo
em relação a tentar fazer de nós mesmos felizes e bem-sucedidos que é exatamente o que sabota a
tentativa. Mas há uma hipótese ainda mais incômoda. E se não for apenas uma questão de técnica?
E se estivermos equivocados não apenas quanto à forma de mudarmos nós mesmos, mas também a

respeito da natureza do eu que estamos tentando mudar? Questionar nossas ideias preconcebidas a
respeito do que significa falar do eu pode levar a uma abordagem inteiramente diferente da
psicologia da felicidade. E O poder do agora — que, na verdade, felizmente é escasso em referências
a “campos de energia”, “ equências vibracionais” e coisas desse tipo — questiona essas premissas já
no título do primeiro capítulo: “Você não é sua mente”.
Pense nisso, se tiver coragem.
Certamente a ideia de que é preciso rever nossas premissas-chavões a respeito do “eu” não
nasceu com Eckhart Tolle. É um pensamento antigo, central no budismo e em inúmeras outras
tradições religiosas e filosóficas — um tema tão recorrente na história da religião e da espiritualidade
que, na verdade, é parte daquilo que Aldous Huxley e outros rotularam como “a filosofia perene”.
Tolle não disse nada de novo. Mas essas reflexões costumam estar escondidas em textos antigos. Eu
queria visitar Tolle, porque ele alegava ter vivenciado em primeira mão o que isso representava. E
estava disposto a falar a respeito.
Meio que presumi, e talvez até meio que esperasse, que eu fosse encontrar um tipo clichê de
guru, vivendo em um ashram, gordo e embriagado pelo próprio poder, usando roupões riquíssimos
e cercado por discípulos adoradores. No fim das contas, porém, ele morava numa cobertura
agradável, mas meio apertada, em um prédio de Vancouver, no Canadá, na mesma rua do campus
da Universidade da Colúmbia Britânica. Ele mesmo atendeu à porta, curvando-se ligeiramente. Aos
sessenta anos, ele tinha um jeito parecido com uma ave, e em vez de vestidos dourados, usava uma
camisa laranja fora de moda e uma calça marrom. Fez sinal para uma poltrona de couro, onde me
sentei. Então se sentou no sofá em ente e esperou que eu dissesse alguma coisa.
Na companhia de Tolle, logo descobri, espera-se bastante. Como nos bancos da Russell Square,
isso não parecia incomodá-lo nem um pouco. Ele não precisava preencher os silêncios, não sentia
pressão para fazer as coisas andarem. Eu estava menos à vontade, porque não me ocorria nada
sensato para dizer. De repente me dei conta de que até um “como vai você?” era uma pergunta
inicial potencialmente problemática, quando a palavra “você” — e o que, exatamente, ela queria
dizer — era justamente o que eu viera discutir.

Poucas coisas parecem tão óbvias, fundamentais e inegáveis quanto o “eu”. Quaisquer que
sejam suas certezas a respeito de como viver — como ser feliz, como se comportar moralmente, que
relacionamentos buscar, que trabalho realizar —, certamente você mantém a premissa pétrea de
que tudo isso acontece a uma entidade única e facilmente identificável chamada “eu”. Parece terra
tão firme, na verdade, que é a base daquela que é provavelmente a ase mais famosa na história da
filosofia ocidental: o lema do filósofo ancês do século XVII René Descartes, Cogito ergo sum — Penso,
logo existo. Descartes percebeu que há pouquíssimos aspectos da nossa experiência de estar vivo a
respeito dos quais podemos realmente estar seguros. Mas podemos confiar que nós somos nós —
que, no sentido mais básico, nós somos aquilo que acreditamos ser.

Neste ponto, vale a pena acompanhar de perto o raciocínio de Descartes. Ele começa assim:
imagine um gênio maligno, decidido a pregar em você tantas peças quanto puder — um gênio “não
menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em [enganá-lo]”.
Até que ponto iriam os truques do gênio? Não esqueça, afirma Descartes, que para compreender o
mundo exterior você conta exclusivamente com seus cinco sentidos: você nada sabe sobre o que
ocorre fora de seu corpo a não ser que possa tocar, ver, ouvir, cheirar ou degustar. Portanto, em
princípio, tudo que você acredita saber sobre o mundo pode, na verdade, ser uma ilusão convincente
e incrivelmente detalhada, elaborada pelo gênio maligno. Olhando para o exterior a partir do interior
de sua mente, pergunta Descartes, como você pode ter inteira certeza de que “o céu, o ar, a terra,
as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores” não são “apenas ilusões e enganos” de que
o gênio “se serve para surpreender a [sua] credulidade”? Você poderia retrucar que é uma hipótese
altamente improvável, mas Descartes não está preocupado com sua verossimilhança. Ele está
usando a técnica filosófica que se tornou conhecida como “dúvida sistemática”, tentando isolar
apenas o conhecimento que ele podia considerar como total e inabalavelmente certo.
O gênio maligno de Descartes poderia ir ainda mais longe (afinal, ele é extremamente maligno). Ao
enviar a seu cérebro o tipo correto de sinais enganosos, ele poderia ser responsável até pela sua
impressão de possuir um corpo físico. Talvez, na verdade, você não tenha um corpo. Talvez você
seja apenas um cérebro num vidro na prateleira do laboratório do gênio. Como ter certeza? Não é
coincidência, aqui, o paralelo com o filme Matrix, de 1999: o longametragem é, essencialmente,
uma meditação do século XX a respeito dos insights de Descartes no século XVII. Como escreveu o
filósofo Christopher Grau: “Quem assiste Matrix é naturalmente levado a pensar: como posso
saber se não estou na Matrix? Como ter certeza de que o mundo não é uma sofisticada charada,
criada por alguma inteligência sobre-humana de maneira tal que eu não tenha como descobrir o
truque?”.
E apesar de todas essas possibilidades de mentira, há uma, e apenas uma, coisa que não pode,
em absoluto, ser uma ilusão, segundo Descartes: o fato de que você está passando por essa
experiência. Até a pessoa que teme estar sendo enganada em relação a absolutamente todo o resto
sabe, com certeza, que existe um “ele” ou “ela” sendo enganado. Isso, o gênio não pode criar. O
“penso, logo existo”, escreve Descartes, “é o primeiro e mais certo [pensamento] que se apresenta
àquele que conduz em ordem seus pensamentos”. Você pode ser incapaz de saber muita coisa com
absoluta certeza. Mas você sabe que você é você. Esse senso do ser não pode ser uma ilusão —
porque “você” é, antes de tudo, aquilo que está vivenciando todas essas coisas que podem ser
ilusórias. É preciso existir alguém para enganar.
Será mesmo? Uma das primeiras pessoas a apontar uma falha potencial nesse raciocínio foi
um contemporâneo de Descartes, o padre e filósofo ancês Pierre Gassendi, que dedicou uma parte
importante de sua carreira a tentar — sem muito sucesso — convencer a intelligentsia europeia de
que seu filósofoestrela estava completamente errado. A intenção do método da “dúvida sistemática”
de Descartes era arrancar pela raiz qualquer premissa duvidosa sobre a natureza da experiência.
Mas, dentro de Cogito ergo sum, segundo Gassendi, estava escondida uma última premissa do gênio.
O fato de existir um pensamento não significa que Descartes tinha razão ao concluir que esse

pensamento seja obra de um agente único e particular — de um “eu”. Como viria mais tarde a definir
o cientista alemão Georg Lichtenberg, Descartes só podia afirmar que “pensamento está ocorrendo”
e não “penso, logo existo”.
Foi o grande filósofo escocês David Hume, escrevendo na primeira metade do século XVIII, que
ilustrou de forma mais vívida essa premissa escondida, propondo uma experiência mental de sua
cepa. Esqueça a dúvida sistemática, sugeriu Hume: tente apenas voltar para dentro sua atenção,
tentando encontrar essa coisa que você chama de “você mesmo”. Hume dizia ter tentado várias
vezes, sem nunca ter conseguido. Em vez de um “eu”, tudo que ele sempre encontrou foram
processos específicos: emoções, sensações e pensamentos. Onde estava o “eu” que sentia essas
emoções, experimentava essas sensações e pensava esses pensamentos? Hume ficou desnorteado:
De minha parte, quando entro mais intimamente naquilo que chamo de “eu mesmo”, sempre
tropeço em uma ou outra percepção particular, de calor ou io, luz ou sombra, amor ou ódio,
dor ou prazer. Em momento algum consigo surpreender-me sem uma percepção, nem consigo
observar coisa alguma a não ser a percepção. Quando minhas percepções desaparecem em
algum momento, como durante o sono pesado, eu fico insensível a mim mesmo, e poder-seia verdadeiramente dizer que cessei de existir […]. Se alguém, depois de uma reflexão séria e
livre de preconceitos, pensa ter uma ideia diferente de si mesmo, devo confessar que não
posso mais acompanhar-lhe o raciocínio.
Hume reconhece que não é inteiramente inconcebível que outras pessoas
— talvez até todas as outras no mundo, exceto ele — possam ter algum tipo de “eu” claramente
identificável e facilmente localizável. Afinal de contas, o único mundo interior a que ele tem acesso
direto é o de David Hume. Logo, que esperança haveria de demonstrar o contrário? Mas ele duvida.
E prossegue: “Posso me arriscar a afirmar ao resto da humanidade que ela [também] não passa de
uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez, e
estão em perpétuo fluxo e movimento”.
A neurociência moderna forneceu fortes evidências em favor da suspeita de que o “eu” não
seja a “coisa” que imaginamos — a suspeita de que, nas palavras do neuropsicólogo Paul Broks, “não
há no cérebro um centro onde todas as coisas se juntam”. Um exemplo ilustrativo disso vem das
experiências envolvendo pacientes com “cérebros divididos” — gente cujo corpo caloso, que liga os
hemisférios esquerdo e direito do cérebro, foi seccionado. Como demonstrou o psicólogo Michael
Gazzaniga, pessoas com “cérebro dividido” comportam-se como se cada hemisfério fosse um “eu
independente”. Em uma pesquisa, a palavra walk [“ande”] foi projetada apenas para o lado direito
do cérebro de um paciente. Ele se levantou e começou a andar. Mas quando lhe perguntaram por
que ele fizera isso, o lado esquerdo do cérebro, responsável pela linguagem, arrumou rapidamente
uma razão convincente: “Para pegar uma coca”. Cada hemisfério parece capaz de agir das formas
que costumamos associar a um “eu”, o que levanta dúvidas sobre a ideia de que haja uma
determinada região do cérebro onde algo do gênero possa residir. O filósofo Julian Baggini ressalva
que isso não equivale a dizer que o “eu” não existe: do simples fato de sermos uma coleção complexa

de coisas, em vez de uma coisa só, não se pode depreender que não somos reais. Um “monte de
percepções”, para usar a expressão de Hume, continua a ser um monte real de percepções. Mas
resta o fato de que estamos usando um termo e um conceito — o “eu” — que, num exame mais
atento, não é nem de longe o que parece.

Eckhart Tolle olhou para mim e piscou amigavelmente.
“Obrigado por me conceder seu tempo!”, comecei, um pouco hesitante, e imediatamente me
penitenciei por não ter lembrado que “tempo” era uma das coisas que Tolle dizia não terem mais
significado para ele. “O tempo não é nem um pouco precioso”, ele escreveu em O poder do agora,
“porque é uma ilusão.” Apenas o presente, “o agora”, é real.
Voltaremos ao assunto — ironicamente — mais tarde.
“É um grande prazer”, ele respondeu, piscando amigavelmente de novo e esperando. Eu já
tinha visto ele fazer esse esperar e sorrir e piscar antes, embora à distância. Alguns anos antes, Oprah
Win ey, enquanto promovia os livros dele em seu programa de entrevistas, o convocou para
participar de uma série de videosseminários on-line de dez semanas, durante as quais ela o
apresentou o tempo todo como um líder espiritual com poder para transformar a consciência do
planeta. Tolle só sorria e piscava. Win ey parecia não se incomodar com a disposição dele de quebrar
uma das regras primordiais da televisão: evite as longas pausas silenciosas.
Minha voz interior — a que estava, naquele exato instante, me criticando por não ter pensado
numa pergunta inicial que prestasse — é algo que a maioria de nós só percebe em momentos de
estresse, como o que eu estava vivendo. Mas a base inicial da filosofia de Eckhart Tolle — como ele
começou a explicar, assim que eu finalmente consegui formular uma pergunta — é que passamos a
vida inteira na companhia dessa voz. A voz avalia e interpreta a realidade, determina nossas reações
emocionais e conversa com tanta constância e em voz tão alta que acabamos por nos identificar com
ela: imaginamos que nós somos o pensamento que conversa sem parar. Se você não acredita nessa
versão de como funciona sua mente, pondere a possibilidade de que a razão seja, talvez, que você
está tão identificado com a conversa que não percebe mais. “Existe essa identificação total com os
pensamentos que passam pela nossa cabeça”, disse Tolle, com um leve sotaque que denunciava sua
origem alemã, quando lhe perguntei qual a maior barreira à felicidade para a maioria das pessoas.
“É uma absoluta falta de consciência, fora os pensamentos que passam continuamente pela sua
cabeça. É a identificação tão total com a voz na sua cabeça”, e ao dizer isso ele deu uma leve risadinha
germânica, “que você acha que você é a voz na sua cabeça.”
Em seu livro Um novo mundo: O despertar de uma nova consciência, Tolle relata um incidente
que, por fora, parece insignificante, ocorrido alguns meses antes de sua aterradora experiência
noturna na quitinete de Belsize Park. Foi a primeira vez que ele percebeu o quão identificado estava
com seu pensamento. Na época, ele estava estudando na biblioteca central da Universidade de
Londres, para onde ia todas as manhãs de metrô, um pouco depois da hora de maior tráfego:

Certo dia, uma mulher de pouco mais de trinta anos sentou-se na minha ente. Eu já a vira
algumas vezes no trem. Era impossível não notá-la. Embora o trem estivesse cheio, os assentos
à esquerda e à direita dela estavam desocupados, provavelmente porque ela tinha a aparência
de alguém fora de si. Ela parecia extremamente nervosa, e falava consigo mesma
incessantemente em voz alta e irritada. Estava tão absorta em seus pensamentos que parecia
não se dar conta da presença de outras pessoas a seu redor […]. Seu monólogo era mais ou
menos esse: “Aí ela me disse […]. Aí, eu disse a ela, você é uma mentirosa como tem coragem
de me acusar de […] quando é você que sempre tirou vantagem de mim […]. Eu confiei em
você e você traiu minha confiança”.
A mulher desceu na mesma estação de Tolle. Curioso, ele decidiu segui-la, até que foi se dando
conta de que ela estava indo para a biblioteca da universidade, igual a ele. Isso perturbou Tolle. Ele
era um aluno da graduação ambicioso e motivado, que acreditava na pesquisa acadêmica como o
ápice da atividade humana, e nas universidades, como a dele, como o abrigo de uma elite de
intelectuais. Ele se lembra de ter pensado: “Como alguém maluco como ela pode fazer parte disso?”.
Eu ainda estava pensando nela quando fui ao banheiro, antes de entrar na biblioteca.
Enquanto lavava as mãos, pensei: “Não quero acabar como ela”. O homem a meu lado deu
uma rápida olhada na minha direção, e eu levei um susto ao perceber que eu não tinha só
pensado, mas balbuciado aquelas palavras em voz alta. “Ai, meu Deus, eu já sou como ela”,
pensei.
Da primeira vez que eu li isso senti um cala io, lembrando meu próprio exercício estoico de
falar em voz alta no metrô de Londres. Naquela ocasião, meu objetivo era compreender que eu
conseguia tolerar o constrangimento e suportar a ideia de que as pessoas me achavam maluco. O
argumento de Tolle era ainda mais radical: que uma linha muito tênue separa essas pessoas
“malucas” do resto de nós. A principal diferença é que, na maior parte do tempo, nós, os não
malucos, conseguimos manter nossa constante conversa mental inaudível para os outros.
Tolle sugere que é quando nos identificamos com essa conversa interior — quando pensamos
nela como nós — que pensar se torna compulsivo. Fazemos isso o tempo todo, sem cessar, sem que
nos ocorra que seja possível passar um momento sem ela. Acabamos por considerar uma coisa só:
nosso pensamento e a continuidade de nossa existência como pessoas. Tolle escreve: “Ser incapaz
de parar de pensar é aflitivo e pavoroso. Mas não nos damos conta, porque quase todos so emos
disso. Então é considerado normal”. O senso de nós mesmos que construímos a partir da
identificação com nossos pensamentos é o que Tolle chama de “ego” (diversos pensadores usaram
esse termo, de formas muito diferentes). E, por definição, viver a serviço do ego não pode nos tornar
felizes.
Por que o ego nunca pode trazer felicidade? O argumento de Tolle reverbera os estoicos, que
concluíram que nossos juízos a respeito do mundo são a fonte de nosso so imento. Mas ele leva a

coisa mais adiante, sugerindo que nossa identificação com esses juízos, junto com todos os nossos
demais pensamentos, é o que consideramos nós mesmos. Nossos pensamentos não nos fazem
apenas so er; nós acreditamos que nós somos esses pensamentos. O ego que resulta disso tem vida
própria. Alimenta-se da insatisfação — do atrito que cria contra o momento presente, ao se opor ao
que está acontecendo, e ao projetar constantemente o futuro, de forma que a felicidade está sempre
em algum outro momento, nunca agora. Tolle gosta de dizer que o ego adora um drama, porque o
drama é um prato cheio para o pensamento compulsivo. O ego também adora focar no futuro,
porque é muito mais fácil pensar compulsivamente no futuro do que no presente (tente e você verá
o quanto é complicado pensar compulsivamente sobre o instante presente). Se tudo isso for verdade,
nós nos condenamos à infelicidade, sem perceber. Nós acreditamos que o pensamento compulsivo
é o núcleo do nosso ser — e, no entanto, o pensamento compulsivo exige que nos sintamos
insatisfeitos.
A saída dessa armadilha não é parar de pensar — Tolle reconhece que pensar é extremamente
útil —, mas “desidentificar-se” com os próprios pensamentos: parar de achar que seus pensamentos
são você; dar-se conta, nas palavras de O poder do agora, que “você não é sua mente”. Ele afirma
que temos que começar a usar a mente como uma ferramenta, em vez de deixar nossa mente nos
usar, como é o estado normal das coisas. Tolle insiste que, quando Descartes disse “penso, logo
existo”, ele não estava descobrindo a “mais fundamental das verdades”. Ele estava expressando, na
verdade, o “mais básico dos erros”.
Tolle afirma que o que aconteceu com ele com tanta força, naquela noite, na quitinete, foi
exatamente uma “desidentificação” com o próprio pensamento. Ele acabara de obter um mestrado
com louvor em idiomas e história, e estava se preparando para um doutorado. “Eu me saí bem
porque estava motivado pelo medo de não ser bom o suficiente”, lembrou ele. “Então dei muito
duro.” Ele se enxergava como um intelectual em formação, e estava “convencido de que todas as
respostas para os dilemas da existência humana poderiam ser encontradas pelo intelecto — isto é,
pelo pensamento”. Mas sua labuta intelectual não o estava tornando feliz — e dar-se conta disso o
deixava ainda pior. “Eu vivia num estado de ansiedade quase permanente”, escreveu. Gradualmente,
e depois não tão gradualmente, a ansiedade tomava conta. Algo ia acabar cedendo. E naquela noite,
pouco depois de seu 29o aniversário, cedeu:
Acordei de madrugada com uma sensação de medo absoluto. No passado, eu despertara
muitas vezes com essa sensação, mas desta vez ela era mais intensa do que nunca. O silêncio
da noite, os contornos indefinidos da mobília no quarto escuro, o ruído distante de um trem
que passava — tudo soava tão estranho, tão hostil e tão terrivelmente sem sentido que gerou
em mim uma profunda aversão ao mundo. A coisa mais repulsiva de todas, porém, era minha
própria existência […]. Eu podia sentir que um desejo profundo de aniquilamento, de não
existência, estava se tornando muito mais forte que meu desejo de continuar a viver. “Eu não
posso viver comigo mesmo por muito mais tempo.” Esse era o pensamento que não parava
de se repetir em minha mente.

“Eu não posso viver comigo mesmo”: a ase é um clichê, mas suas implicações foram um choque
para Tolle. Ele se lembra de ter pensado: “Se eu não posso viver comigo mesmo, deve haver dois de
mim: o ‘eu’ e o ‘mim’ com o qual ‘eu’ não posso viver. Talvez, pensei eu, um deles seja real. Perceber
isso foi uma surpresa tão grande que minha mente parou. Eu estava consciente, mas não havia mais
pensamentos”. E então, antes que ele se desse conta, já tinha amanhecido — a manhã em que ele
se sentiu imbuído de um sentimento de “êxtase e paz profundos e contínuos”.
A acreditar em seu relato, o que ocorrera é que ele não acreditava mais, por engano, que ele
era seu pensamento; em vez disso, ele se viu como testemunha dele. Essa é uma experiência que
você pode vivenciar por si mesmo, sem dificuldade: basta decidir assistir a seu próprio pensamento.
Tolle aconselha: sente-se como um gato à espreita do rato, esperando qual será seu próximo
pensamento. “Quando você ouve um pensamento”, explica ele, “você não apenas está consciente
desse pensamento, mas também de você mesmo como testemunha do pensamento. Uma nova
dimensão de consciência apareceu. Ao ouvir um pensamento, você sente uma presença consciente
— seu ‘eu’ mais profundo — por trás ou por baixo do pensamento. Esse pensamento deixa, então,
de ter poder sobre você, e logo desaparece, porque você já não está energizando sua mente por
meio da identificação com ele. Esse é o começo do fim do pensamento involuntário e compulsivo.”
Todos nós já sentimos algo “por trás ou por baixo” do pensamento, esses momentos em que o
pensamento parece, temporariamente, desaparecer: quando suspiramos em reverência a um belo
cenário, depois de uma atividade física intensa, ou quando fazemos amor. O truque é manter essa
atitude em relação ao pensamento o tempo todo, mesmo quando você está pensando. Se parte disso
lhe soa familiar, pode ser porque remete ao budismo. Assistir aos próprios pensamentos desse jeito
é uma forma de meditação.
É neste ponto que a visão de Tolle se torna especialmente dura de engolir para um cético. Ele
parece considerar que, quando você para de se identificar com seu ego, descobre quem você
realmente é — que você descobre seu “eu mais profundo” ou seu “verdadeiro ser”, aquele que
estava escondido o tempo todo atrás do “falso eu”. Mas esse tipo de conversa, justificadamente,
enerva os filósofos mais mainstream. Não é porque você conseguiu desmontar a compreensão
convencional do “eu” que você vai encontrar o “verdadeiro”. Talvez sejamos apenas um “monte de
percepções”, como definiu Hume. Talvez não exista um significado “mais profundo”, “mais real” para
o conceito de quem somos. Mais uma vez, porém, essa não é uma pergunta que exige uma resposta
conclusiva. O que importa, simplesmente, é perguntar. Por enquanto, basta fazer uma pergunta:
você sente certa tranquilidade quando tenta ser testemunha de seus pensamentos, em vez de se
identificar completamente com eles?
A abordagem da felicidade focada no otimismo, obcecada por metas, do pensamento positivo
é exatamente o tipo de coisa que o ego adora. O pensamento positivo é uma questão de identificarse com seus pensamentos, em vez de “desidentificar-se” com eles. E o “culto do otimismo” é questão
de desejar um futuro feliz ou bem-sucedido, reforçando, assim, de forma sutil a mensagem de que a
felicidade está em outro momento, não no presente. Projetos e planos para melhorar as coisas
alimentam nossa insatisfação com o único lugar onde a felicidade pode ser achada — o presente.
Tolle me disse: “O importante não é ficar continuamente perdido nessa projeção mental distante do

agora. A maioria dos homens nunca está integralmente presente no agora, porque
inconscientemente eles acreditam que o momento seguinte deve ser mais importante que este. Mas
então você desperdiça sua vida inteira, que nunca é ‘não agora’”. Outra risadinha em staccato. “E
isso, para algumas pessoas, é uma revelação. Dar-se conta de que sua vida inteira é sempre vivida
agora. Muitas pessoas se dão conta de repente de que viveram a maior parte de suas vidas como se
isso não fosse verdade — como se o contrário fosse verdade.” Sem perceber, tratamos o futuro como
intrinsecamente mais valioso que o presente. E, no entanto, parece que o futuro nunca chega.
Em vez de buscar formas de resolver seus problemas no futuro, pode ser esclarecedor tentar
perguntar a si mesmo se você tem algum problema neste momento. A resposta, a menos que você
esteja so endo de alguma dor física, é muito provavelmente “Não”. A maior parte dos problemas,
por definição, envolve pensamentos a respeito de como as coisas podem dar errado no futuro, seja
daqui a cinco minutos ou cinco anos, ou pensamentos sobre coisas que aconteceram no passado.
Pode ser curiosamente difícil identificar qualquer problema que o aflija neste exato momento, no
presente — e sempre se está no presente.
Ou pense no tema da autoestima. Tendemos a achar que ter boa autoestima é uma coisa
ótima, mas alguns psicólogos suspeitam há muito tempo que possa haver algo errado com esse
conceito como um todo — porque ele se apoia na premissa de um “eu” único, simples, individual,
facilmente identificável. Propor-se a dar a seu “eu” uma nota universal positiva pode, na verdade,
ser extremamente perigoso. O problema reside no fato de que você está entrando no jogo da
autoavaliação; implicitamente, você está pressupondo que você é um único “eu”, ao qual se pode
dar uma nota geral. Quando você dá uma nota alta a seu “eu”, na verdade você cria a possibilidade
de avaliar mal a si mesmo; você está reforçando a ideia de que seu “eu” é algo que pode, antes de
tudo, ser “bom” ou “mau”. E essa sempre será uma generalização ruim. Você tem forças e fraquezas;
comporta-se tanto bem quanto mal. Encobrir todas essas nuances com um conceito genérico de
autoestima pode se tornar uma receita para a infelicidade. Paul Hauck, um psicólogo que se opõe ao
conceito de autoestima, afirma: inculcar autoestima elevada em seus filhos é ensinar a eles
“arrogância, prepotência e superioridade” — ou então, quando essa autoestima elevada falha,
“culpa, depressão, [e] sentimentos de inferioridade e insegurança” tomam o lugar. Melhor deixar de
lado as generalizações. Dê notas a seus atos individuais como bons ou maus, se quiser. Tente realizar
mais ações boas, e menos ações más, o quanto puder. Mas deixe seu “eu” fora disso.
Uma última implicação de pensar dessa forma sobre o “eu mesmo” — e talvez a mais
importante de todas — diz respeito à ideia do altruísmo. Sabemos, por experiência própria, e hoje
em dia por décadas de estudos psicológicos, que ajudar outras pessoas é uma receita muito mais
confiável para a felicidade do que focar apenas em si mesmo. Um dos aspectos mais desagradáveis
do pensamento positivo — e das abordagens convencionais para a felicidade em geral — é a forma
como ele parece incentivar o egoísmo. Nesse ponto, também, abordagens “altruístas” para a
felicidade podem nos levar a uma confusão conceitual: se você começar a praticar o voluntariado
uma vez por semana, por exemplo, com a intenção de se sentir mais feliz, você está realmente sendo
altruísta? Você tem que se sentir triste para se sentir realmente altruísta? Seria possível fazer mais e
mais perguntas assim. Talvez a resposta para todos esses dilemas não seja agir de modo egoísta ou

altruísta, mas questionar a própria noção de “eu” em que essas distinções se baseiam. Tanto os atos
“egoístas” quanto os “altruístas” são suscetíveis de acabar meramente alimentando o ego, que
prospera na insatisfação. Dê menos importância ao “eu” propriamente dito, afirma Tolle, e
aumentará muito a chance de você cultivar a felicidade — a sua própria e a dos outros — no
momento presente, que é o único lugar onde ela pode ser encontrada.
*
É bem possível que nada disso comova você — que não encontre eco algum na sua própria
experiência. Se for o caso, há mais um ângulo a partir do qual se pode demonstrar que a
individualidade não tem tanta importância assim. O argumento existe sob forma de uma extensa
experiência mental, que adaptei neste livro a partir do trabalho do autointitulado “animador
espiritual” Alan Watts. Watts, um inglês barbudo e de voz suave, que adotou como lar a costa oeste
dos Estados Unidos e morreu em 1973, não teve nenhum insight inédito e revolucionário. Ele era um
vulgarizador, dedicado a explicar as filosofias orientais aos povos ocidentais. Poucos filósofos
profissionais da atualidade o considerariam digno desse título. Mas os insights de Watts — que se
baseiam apenas em pensamento racional, e não em new age nem em qualquer tipo de pseudociência
— podem, de uma maneira agradável e surpreendente, mexer com a sua cabeça.
Watts começa com uma pergunta que parece estupidamente direta: o que
você considera como a onteira de você mesmo — o lugar onde você termina e começa o “resto do
mundo” que não é você? Para a maioria de nós, a resposta, nas palavras dele, é que pensamos em
nós mesmos como “pacotes de pele”. É o envelope da pele que encerra o corpo físico que define a
fronteira de nosso “eu”.
Um problema nessa ideia pode ser identificado de imediato. Às vezes, quando usamos a
palavra “eu”, parece que estamos usando uma definição diferente — em que “eu” não se refere ao
corpo inteiro, mas apenas a alguma coisa dentro da cabeça. Conforme essa definição, o resto do
corpo não é “eu” no mesmo grau da cabeça. Suponha que fosse preciso amputar um de seus pés:
você consideraria ter se tornado menos “você”? (Provavelmente não — mas se sua cabeça fosse
amputada, a coisa seria radicalmente diferente.) Aí já temos, aparentemente, duas definições rivais
de qual matéria física, precisamente, estamos falando quando nos referimos a “mim”. Mas, por
enquanto, vamos ficar com a definição dos “pacotes de pele”.
Suponha que você tenha dado um zoom, usando um microscópio ultrapoderoso, em uma
parte de sua mão esquerda, até que tudo que você consiga ver seja uma minúscula região de seu
dedo indicador e uma minúscula parte do ar que o rodeia. Com uma ampliação suficiente, a única
coisa que você veria através do microscópio seria uma cacofonia de moléculas: algumas pertencentes
a seu dedo; e outras, ao ar adjacente. O que nos leva à próxima pergunta — que na verdade é a
mesma anterior, formulada de outro jeito: Qual é, exatamente, a sua lógica para traçar uma onteira
entre algumas dessas moléculas e outras, de modo a definir algumas delas como “você”, e outras
delas como o mundo fora você? Nesse grau de ampliação, fica imediatamente aparente que só

estamos falando de moléculas, no fim das contas. O que tornaria algumas delas tão especiais para
contá-las como “você”?
Uma resposta óbvia que vem à mente tem a ver com controle consciente. Você parece ser
capaz de decidir mover o dedo indicador, por exemplo, de uma forma que simplesmente não
funciona com as coisas fora de sua pele. Talvez por isso, então, a onteira da pele seja tão importante:
de um lado dela, você tem controle consciente; do outro, não. Mas Watts tem uma resposta pronta
para isso. Ele pondera: você realmente exerce controle consciente sobre sua respiração? Você
bombeia ativa e conscientemente o sangue em suas veias ou envia anticorpos para en entar
infecções virais? Não: são coisas que acontecem, simplesmente. Até pensar — como eu vim a
compreender de forma tão aguda na Sociedade Vipassana de Meditação — não é tão voluntário
quanto gostaríamos de imaginar. Na maior parte do tempo, o pensamento parece simplesmente
acontecer.
Você pode responder: tudo bem, talvez eu não devesse ter dito controle consciente. O controle
inconsciente parece fazer parte também. Consciente ou inconscientemente, controlo tudo dentro
da minha pele e nada fora dela. O problema é que, é claro, isso também não é verdade: você
exerce controle sobre várias coisas que estão fora da sua pele. Com as ferramentas adequadas,
você pode construir uma piscina em seu jardim; com seus poderes de persuasão, você pode
convencer centenas de milhares de pessoas a depor um ditador. Você pode argumentar que isso é
diferente — que isso é uma forma indireta de controle, enquanto o controle que você exerce sobre
seus membros parece ser mais direto. Mas Watts não deixaria você escapar com essa objeção,
porque ela se baseia num raciocínio circular: pressupõe uma resposta ao próprio dilema que
estamos tentando resolver. Afinal de contas, a distinção entre controle “direto” e “indireto” é
definida por nada mais, nada menos que a onteira que você definir entre “você mesmo” e o resto
do mundo. E é exatamente essa onteira — e se estamos realmente certos em defini-la onde
tradicionalmente a definimos — que está em questão.
A essa altura, a bizarrice de sua situação deve estar aparente. Qualquer que seja o critério que
você propuser como base para definir a onteira entre “você” e “não você”, parece haver um contraargumento que, no mínimo, põe tudo em questão. É nesse ponto que Watts revela a parte mais
desorientadora de sua argumentação. Encontrá-la pela primeira vez — e eu digo por experiência
própria — pode ser um pouco como caminhar até o topo de uma colina suave apenas para descobrir
que no topo há o precipício de um penhasco alto e abrupto, e embaixo há apenas as ondas que
quebram.
A argumentação é a seguinte: não importa onde você defina a onteira — como se pudéssemos
chegar a um acordo sobre onde estabelecê-la —, você não estaria realmente definindo onteira
nenhuma, no sentido convencional. Porque (eis a questão) a própria noção de fronteira pressupõe
que há dois lados. Quando você pensa nisso, não faz muito sentido descrever uma onteira como algo
que separa duas coisas. Faz mais sentido descrevê-la como o lugar onde elas se encontram — ou,
mais precisamente, o lugar onde elas são exatamente a mesma coisa. A própria existência da parte
de dentro da onteira depende da parte de fora, e vice-versa; elas são, por definição e

inseparavelmente, parte do mesmo todo. Uma onda não pode ter crista sem vale; não há escuridão
sem luz.
Esse é o insight por trás do antigo símbolo chinês do yin e do yang, mas não há nada religioso,
nem particularmente “espiritual” a respeito dele. Para Watts, é simplesmente a conclusão aonde o
raciocínio rigoroso acaba levando. Não pode existir um “você” sem um “todo o resto”, e tentar
pensar em um isolado do outro não faz sentido. Essa não é, tampouco, uma dessas observações
vagas, insípidas do tipo “somos todos uma coisa só”, na linha “flores e incenso”. Ela se sustenta em
todos os níveis, do mais abstrato ao mais concreto. Sim, é verdade, que você não seria você sem os
relacionamentos em que está envolvido ou a comunidade à qual você pertence. Mas você também
não seria você, se não fosse por todos os objetos físicos do mundo que não são você.
Passamos a vida inteira sem nos darmos conta dessa verdade óbvia, e buscando ansiosamente
fortificar nossas onteiras, construir nossos egos e afirmar nossa superioridade sobre os outros, como
se pudéssemos nos separar deles, sem nos darmos conta de que é a interdependência que faz de nós
o que somos. Watts escreveu: “Na verdade, o mistério derradeiro e fundamental — a única verdade
que se precisa conhecer para entender os mais profundos segredos metafísicos — é este: para cada
fora, há um dentro, e para cada dentro há um fora; e embora eles sejam diferentes, eles se casam”.
A palavra “diferente” é importante. Aqui não se está argumentando que as onteiras não
existam — que o “correto” seria uma percepção do mundo como uma enorme confusão de coisas
sem onteiras, como sorvete derretido. O fato de “você” e “todo o resto” estarem intrinsecamente
interconectados não significa que você não exista. Nossa sanidade depende de mantermos um senso
coerente de nós mesmos e estabelecermos onteiras saudáveis entre nós mesmos e os demais — e
nem Alan Watts nem Eckhart Tolle querem pôr sua sanidade em risco. Pelo contrário, o raciocínio de
ambos leva à conclusão de que é melhor pensar no eu como um tipo de ficção, ainda que
extremamente útil — e que entender isso, em vez de fazer tudo ao nosso alcance para negar, pode
ser o caminho para a realização pessoal.

Há quem tenha dito que a presença silenciosa de Eckhart Tolle parece destruir o ceticismo das
pessoas. Isso aconteceu comigo também. Embora eu tenha relutado em admitir, ele realmente
parecia exalar uma calma palpável, que se infiltrava nos cantos do pequeno apartamento de
Vancouver e, por fim, ao cabo da conversa daquela tarde, em mim também. Os silêncios que
pareciam tão embaraçosos quando eu cheguei aos poucos se tornaram mais toleráveis, e depois até
agradáveis, à medida que diminuía meu impulso de preenchê-los com conversa. Por períodos de
longos segundos, Tolle piscava e sorria, e eu me surpreendi sorrindo de volta, à vontade.
Mesmo assim, eu não conseguia me forçar a acreditar que sua vida interior fosse tão
maravilhosamente tranquila quanto ele dizia. Pensei: qual foi a última vez que ele se sentira
realmente irritado? “Não me lembro da última vez que isso aconteceu”, respondeu ele. “Acho que a
última vez que aconteceu foi…” Naquele mesmo dia? Na véspera? “Acho que foi uns meses atrás”,
disse ele, depois de uma pausa. “Lembro que eu estava na rua, e aí apareceu um cachorro enorme,
que o dono não conseguia controlar — importunando um cachorro menor. Senti uma onda de

irritação. Mas [a irritação] não perdura, porque não é perpetuada pela atividade mental. Durou só
uns instantes.” Em O poder do agora, Tolle escreve em tom admirativo a observação dos patos em
um lago próximo a sua casa, e o que acontece quando eles brigam. Eles lutam, mas, quando acaba o
con onto, batem as asas e anzem as penas, como se estivessem sacudindo a lembrança do encontro.
E voltam a nadar pacificamente. Os patos não guardam rancor. As pessoas, com egos, guardam. De
fato, quando Tolle acerta o passo, não há atrocidade humana que ele não esteja disposto a atribuir
a nosso esforço para defender e reforçar nossos egos. Guerras, tiranias e injustiças de toda sorte se
expõem como pouco mais que esforços de egos inseguros para se fortificar: para endurecer suas
onteiras, para se separar e impor ao resto do mundo os padrões mentais dos quais vieram a crer que
sua própria vida — seus próprios egos, porém, na verdade — depende.
Quando, por fim, me levantei para ir embora do apartamento, vacilei por um instante — por
algum motivo, apertar-lhe a mão parecia impropriamente formal —, quando, de repente, ele deu um
passo à ente e me envolveu num abraço de urso. Aí eu peguei o elevador até o térreo, liguei para
chamar um táxi e sentei-me num banco de ferro forjado para esperá-lo. Senti-me curiosamente leve
e em paz, e me veio à mente que talvez não fosse tão ruim ficar sentado no banco, no escurecer, por
horas e horas, sem fazer nada em particular. Mas eu não tinha escolha. Eu — seja lá o que “eu”
signifique — tinha de estar no aeroporto a tempo de pegar o voo para casa.
6. A armadilha da segurança
As vantagens ocultas da incerteza

A segurança é uma forma de morte, creio eu.
Tennesse Williams, A catástrofe do sucesso

Em 13 de janeiro de 2002, durante os meses de temor e vigilância que se seguiram aos ataques
terroristas de Onze de Setembro, um piloto chamado Elwood Menear — “Woodie”, para os amigos
— chegou ao aeroporto internacional da Filadélfia. Woodie, de 46 anos, estava escalado para pilotar

um voo doméstico de rotina até Minneapolis, para seu empregador, a U.S. Airways, e não tinha
nenhum motivo para imaginar que seu nome estaria dali a pouco nas manchetes, ao lado da outra
notícia memorável daquele fim de semana: o presidente Bush engasgando com um pretzel.
Os procedimentos de revista de segurança na Filadélfia, semelhantes aos do resto dos Estados
Unidos e do mundo, estavam cada vez mais estritos. Fazia menos de um mês que Richard Reid, o
chamado “homem do sapato-bomba”, fora agarrado e dominado a bordo de um voo de Paris a
Miami, dando início à era da revista compulsória de sapatos para todos os viajantes. Nem os pilotos
estavam isentos dessa nova e rigorosa revista e, quando chegou a vez de Woodie Menear, o
segurança manifestou preocupação em relação à presença de um par de pinças em sua bagagem de
mão. Ocorre que pinças — ao contrário de sacarolhas ou tesouras de metal, por exemplo — não
estavam na lista de itens proibidos; Menear não estava violando nenhuma norma ao tentar levá-las
a bordo. Mas o segurança fez uma pausa longa o suficiente para deixar o piloto irritado, que, como
seus colegas, andava cada vez mais exasperado a cada nova restrição. Menear não explodiu de raiva;
só fez uma pergunta sarcástica. Mas foi uma pergunta que provocou sua prisão imediata, uma noite
na cadeia, sua suspensão pela U.S. Airways e meses de querelas jurídicas até que ele fosse, por fim,
absolvido da acusação de “fazer ameaças terroristas” e autorizado a voltar ao trabalho.
“Você está preocupado com pinças”, Menear teria perguntado, “quando, se eu quiser, posso
derrubar o avião?”
Considerando época e lugar, foi uma estupidez dizer isso. Mas o insight cristalizado nessa ase
era tudo, menos estúpido. À medida que as restrições de segurança na aviação foram se tornando
maiores, nos anos que sucederam a prisão de Menear — culminando na proibição, em 2006, de
praticamente qualquer quantidade de líquido na bagagem de mão —, aumentou a estridência dos
críticos, para quem a lógica da política de segurança como um todo parecia torta. Evidentemente,
fazia sentido proibir pistolas e outros tipos de armas dentro de aviões. Mas elas já estavam proibidas
havia anos. Além disso, parecia inevitável que as novas regulamentações provocariam enormes
inconvenientes a milhões de passageiros inocentes e, ao mesmo tempo, ajudariam muito pouco a
eliminar o risco que um sequestrador obstinado representa. Segundo os críticos, o que o Onze de
Setembro mostrou não foi que estiletes eram a nova onteira do terrorismo. Mostrou, isto sim, que
um terrorista em paz com a ideia do suicídio sempre terá ascendência sobre pessoas que não estão
dispostas a morrer — sejam quais forem os objetos proibidos.
Bruce Schneier, um consultor de segurança americana que é um dos adversários mais
ferrenhos ao endurecimento pós-Onze de Setembro, angariou reputação — e alguns inimigos — ao
explicar as várias maneiras de sequestrar ou explodir um avião nos dias de hoje, apesar de todas as
medidas recentes. Pode-se, por exemplo, improvisar um garrote com uma linha de pesca ou fio
dental, enquanto a alça de uma mala de rodinhas, arrancada, dá uma “lança bastante eficiente”.
Senão, você pode comprar cola epóxi de aço numa loja de ferramentas: ela vem em dois tubos —
um deles, o adesivo; e o outro, o endurecedor — que você pode misturar em pleno voo, moldando
uma faca curta, usando como cabo uma colher de chá de metal (nem a cola epóxi de aço, nem
colheres de chá são proibidas em aviões — ao contrário de, por exemplo, globos de neves, banidos
pelas normas americanas). Schneier não está argumentando, claro, que malas de rodinhas e fios

dentais devam ser acrescentados à lista de itens proibidos em voo. Ele quer dizer que não vamos
tornar as viagens aéreas muito mais seguras proibindo qualquer objeto novo que um terrorista
pensar em usar, ou que receamos que ele possa usar, a menos que você esteja disposto a proibir
qualquer objeto — e talvez também obrigar os passageiros a viajar amarrados em seus assentos, já
que sequestradores sempre podem atacar com mãos nuas. Pouco tempo depois dos atentados de
Onze de Setembro, perguntei a Schneier se havia alguma medida que pudesse ser tomada para
assegurar que nunca mais uma tragédia assim voltasse a ocorrer. Schneier respondeu: mantenha em
terra todos os aviões.
“Há exatamente duas coisas que tornaram mais seguras as viagens aéreas depois do Onze de
Setembro: as trancas nas portas dos cockpits e a recomendação aos passageiros para que reajam”,
disse-me Schneier. Homem de 49 anos com um rabo de cavalo, Schneier fala no tom baixo de alguém
que tem confiança na justeza de suas opiniões e não está particularmente preocupado em convencêlo. “Você pode argumentar que há uma terceira medida — policiais à paisana a bordo. Mas na
verdade, a partir do momento que você informa as pessoas da existência deles, eles se tornam
desnecessários. É a ideia dos policiais à paisana a bordo que nos torna mais seguros, não os policiais
propriamente ditos.”
Se Schneier tiver razão, uma pergunta óbvia vem em seguida: por que os governos continuam
a impor essas restrições, que são caras e provocam perda de tempo? Por que continuar com esse
jogo de gato e rato com os terroristas, se eles estarão sempre um passo à ente? Há muitas respostas
possíveis a essa pergunta. Elas têm a ver com a pressão que os políticos e as autoridades de segurança
sentem para mostrar que estão fazendo algo e impressionar quem paga seus salários. Mas Schneier
afirma que na raiz de tudo está o desejo fundamental do ser humano por uma sensação de segurança
— embora essa sensação possa ter uma relação apenas indireta, na melhor das hipóteses, com uma
segurança real. Schneier cunhou o termo “teatro da segurança” para se referir a todas as medidas
adotadas, antes de tudo, para aumentar a sensação de segurança, sem tornar as pessoas realmente
mais seguras. Na verdade, é perfeitamente possível argumentar — como faz com equência Schneier
— que o teatro da segurança na verdade nos torna menos seguros. Consome recursos que poderiam
ser gastos em medidas antiterrorismo mais eficazes, como a espionagem, e torna os passageiros e o
pessoal de segurança menos alerta ao tipo de comportamento suspeito em que deveriam reparar.
Afinal de contas, se a bagagem de todo mundo for examinada de forma tão detalhista que até os
globos de neve sejam interceptados, dá para imaginar que a guarda de todos se torna baixa.
Comece a reparar na segurança pelos olhos de Bruce Schneier, e algumas das maneiras pelas
quais a sociedade ataca a questão começarão a parecer profundamente ridículas. Em 2007, por
exemplo, o então primeiro-ministro britânico Gordon Brown anunciou um arsenal de medidas para
reforçar a segurança nos aeroportos, estações ferroviárias e outros terminais de transporte, em todo
o país — inclusive a construção de barreiras anti-impacto. Um post no blog de Schneier explicava que
as barreiras seriam construídas em Lime Street, a principal estação ferroviária de Liverpool, mas que
elas não seriam construídas em estações suburbanas menos movimentadas, na mesma linha, a
alguns quilômetros de distância. O título do post era: “Reino Unido gasta bilhões para obrigar
terroristas ferroviários a ir um pouquinho mais longe”. O anúncio de Brown foi uma típica peça de

teatro de segurança: uma maneira cara de fazer os passageiros se sentirem mais seguros — pelo
menos se eles não pensassem muito nos detalhes — sem fazer nada para deter um terrorista apenas
um pouco menos preguiçoso.
Até agora, neste livro, vimos como algumas das doutrinas mais básicas que dominam nosso
pensamento a respeito da felicidade não funcionam, porque nos esforçamos demasiadamente para
que elas deem certo. É fácil ver a semelhança superficial entre esse postulado e a crítica que Bruce
Schneier faz à segurança aérea: na verdade, muito daquilo que acreditamos tornar as viagens aéreas
mais seguras não as torna. Mas a conexão é ainda mais profunda — porque, no contexto das viagens
aéreas, “segurança” não passa de uma faceta a mais de uma questão muito maior, que nos leva à
abordagem “negativa” da felicidade. O desejo de sentir-se seguro não apenas nos leva à
irracionalidade no campo do contraterrorismo. Nos leva à irracionalidade o tempo todo.
Como veremos neste capítulo, uma proporção impressionante da atividade humana — na
política, nos negócios, nas relações internacionais, assim como em nossa vida pessoal — é motivada
pelo desejo de sentir-se seguro. Ainda assim, essa busca por sentir-se seguro nem sempre leva à
segurança, muito menos à felicidade. É uma curiosa verdade da psicologia: aquele que se encontra
em situações em que a maioria de nós consideraria condições de insegurança máxima — pobreza
extrema, por exemplo — descobre insights sobre a felicidade dos quais o resto de nós teria muito a
aprender. E, a acreditar nos defensores mais radicais do “caminho negativo”, ao nos voltarmos para
a insegurança acabamos por compreender que a segurança é, em si, uma espécie de ilusão — e que
estivemos o tempo todo enganados a respeito do que achávamos estar buscando.
É fácil achar, hoje em dia, que vivemos numa época particularmente insegura, e que as coisas
só tendem a piorar. Muitos anos atrás, o Projeto 2020, uma iniciativa dos serviços de inteligência
encarregados de fazer previsões amplas sobre o futuro, publicou um relatório com um capítulo de
título anco: “Insegurança difusa”. Em 2020, escreveram os analistas do projeto, “prevemos uma
sensação mais difusa de insegurança, que pode se basear tanto em ameaças físicas quanto em
percepções psicológicas”. Entre as principais causas de ansiedade, previram eles, estariam
“preocupações com a segurança do emprego”, “medos relativos à imigração”, “terrorismo e conflitos
internos” e até “conflitos entre grandes potências”. E tudo isso foi escrito um pouco antes do colapso
financeiro do final da década de 2000, que trouxe uma nova onda de insegurança para milhões de
pessoas.
Apesar disso, é fácil encontrar evidências de que as pessoas sempre acreditaram estar vivendo
em uma época particularmente insegura. Em 1951 — um momento relativamente feliz e próspero,
no fim das contas, depois da fase mais dolorosa da retomada do pós-guerra e antes do pior da Guerra
Fria —, Alan Watts capturou bem a sensação de insegurança de sua era. Escreveu ele:
Havia o sentimento de viver em uma época de insegurança incomum. Nos cem anos
anteriores, tinham caído muitas tradições estabelecidas fazia muito tempo — tradições de
família, de vida social, de governo, de ordem econômica e de crença religiosa. À medida que
os anos passam, parece haver cada vez menos coisas às quais se segurar, menos coisas que
podemos considerar absolutamente certas e verdadeiras, e para sempre imutáveis.

E era assim que muita gente também se sentia em 634 a.C., em Roma, quando tinham certeza
de que o destino da cidade, depois de 120 anos de existência, era a destruição. Também deve ter
sido assim que os povos se sentiram em incontáveis momentos históricos, desde então. Tente dar
uma busca na biblioteca do Google por manuscritos digitalizados com a expressão “estes tempos
incertos”, e você verá que ela é recorrente, em centenas de livros e diários, em quase todas as
décadas que a base de dados abrange, dos dias de hoje até o século XVII. “Na verdade”, insistiu
Watts, “nossa era não é mais insegura que nenhuma outra. Pobreza, doenças, guerras, mudanças e
morte não são nada de novo.”
As pessoas, então, sempre quiseram se sentir mais seguras do que se sentem hoje. No entanto,
como o trabalho de Bruce Schneier no campo da segurança ajuda a demonstrar, há uma enorme
armadilha à nossa espera — porque as estratégias criadas para nos dar uma sensação de segurança,
na verdade, constantemente não nos tornam mais seguros. Podem até ter o efeito contrário. Como
coloca Schneier: “A segurança é ao mesmo tempo uma sensação e uma realidade, e as duas coisas
não são iguais”.
A sensação e a realidade da segurança são divergentes em maneiras específicas e previsíveis. Já se
escreveu muita coisa, nos últimos anos, sobre os “vieses cognitivos” — as formas pelas quais nosso
juízo tende a se descolar da realidade propriamente dita — e muitos deles ajudam a explicar os
equívocos crônicos que cometemos, quando se trata de segurança. Por exemplo, costumamos
temer ameaças de outros seres humanos mais do que ameaças da natureza. Receamos ameaças
que podemos trazer de forma viva à mente mais do que aquelas que nos é difícil imaginar — o
chamado “viés de disponibilidade”. Tememos situações em que achamos não ter controle, tais
como viajar como passageiro em um avião, mais do que situações em que temos a impressão de
ter controle, como quando estamos ao volante de um automóvel. Por isso, não admira que, na
busca pela sensação de segurança, às vezes corramos o risco de estarmos menos seguros. É muito
mais provável morrer num acidente de automóvel que na queda de um avião, e muito mais
provável morrer de um problema cardíaco que pela mão de um assaltante violento. Mas se você
reage às notícias sobre terrorismo aéreo viajando de carro, quando normalmente você teria ido de
avião, ou se você perde tempo e energia protegendo seu lar de assaltantes, em vez de melhorar
sua dieta, você está deixando seus preconceitos o levarem a uma sensação maior de segurança à
custa de sua segurança real.
Não há unanimidade, entre os psicólogos, a respeito da origem desses vieses, mas Schneier
postula, de forma plausível, que a explicação esteja na evolução — para ser mais exato, na
discrepância entre a velocidade das mudanças evolucionárias e a velocidade em que se desenvolveu
a sociedade moderna. Pensando em nossa espécie no longo prazo, na escala de tempo da evolução,
é fácil perceber que esses preconceitos podem ter sido úteis à nossa sobrevivência — mas que, hoje,
eles nos prejudicam, porque en entamos situações para as quais não fomos feitos. Alguns animais,
quando são surpreendidos pelos faróis de um carro, pulam loucamente de um lado para outro, em

um esforço instintivo para que um predador não os fareje, o que não funciona quando o predador é
um 4 × 4. Schneier observa:
Como um esquilo cujas técnicas de fuga dos predadores não funcionam quando ele se vê
diante de um automóvel, ou como um pombo migratório que descobre que a evolução o
preparou para sobreviver ao gavião, mas não à arma de fogo, nossa capacidade inata de lidar
com o risco falha quando nos encontramos diante de coisas como a sociedade humana
moderna, a tecnologia e os meios de comunicação.
Tomemos, por exemplo, o viés de disponibilidade. No passado, fazia mais sentido preocupar-se
mais com as ameaças que são possíveis imaginar de maneira viva: muito provavelmente, era
possível imaginar essas ameaças porque elas ocorreram no vilarejo onde se vivia, a poucos metros
de distância e pouco tempo antes. Eram ameaças que realmente representavam um risco mais
sério; o viés, assim, era um atalho útil para uma avaliação precisa do risco. Mas se hoje a ameaça
está mentalmente “disponível” para você sob a forma de um telejornal, cujo objetivo primordial é
varrer o planeta em busca das cenas mais fortes de caos, você será indevidamente induzido a focar
sua preocupação em ameaças que não terá de encarar na realidade. Depois de assistir a uma
reportagem de TV sobre um ataque terrorista em solo estrangeiro, você pode cancelar seu projeto
de tirar férias no exterior, agarrando-se assim à sua sensação de segurança — quando, na verdade,
passar muito tempo no sofá assistindo à TV pode ser uma ameaça muito maior à sua
sobrevivência.

Se os vieses cognitivos fossem o único problema da busca pela segurança, a solução seria
simples, ainda que não necessariamente fácil de implantar: seria apenas uma questão de estar
consciente dos vieses, e fazer o possível para corrigir nosso comportamento em função disso. Assim,
evitaríamos ser induzidos a erro por nossas respostas emocionais evolutivas; conseguiríamos nos
proteger do perigo, e o resultado seria a felicidade perfeita. Desnecessário dizer que não é tão
simples assim. A hipótese mais radical — aquela que nos leva ao centro da abordagem “negativa”
para a felicidade — é que haja algo muito mais fundamentalmente problemático em relação ao
objetivo de sentir segurança; e que a felicidade real possa depender da disposição de encarar, e
tolerar, a insegurança e a vulnerabilidade.
Esse é um tema espinhoso. Só um louco argumentaria que é preferível viver em condições de
grande perigo, ou que não é saudável ter certa sensação básica de segurança psicológica (a
terminologia contribui para a confusão; afinal de contas, pode-se alegar que qualquer pessoa capaz
de tolerar tranquilamente sentimentos de insegurança e vulnerabilidade já deve estar, por definição,
em segurança). Mas um tema recorrente no estudo da felicidade é o fato de que muitas das maneiras
pelas quais tentamos nos sentir “seguros”, no fim das contas, não nos tornam felizes. Buscamos
segurança financeira, mas acima de certo patamar, dinheiro a mais não se traduz em mais felicidade.

Nós nos protegemos do perigo físico nos mudando para um bairro mais seguro, ou até nos trancando
em comunidades protegidas por portões, mas já se demonstrou que essas tendências na vida
comunitária têm efeito negativo no nível coletivo de felicidade. Buscamos a realização que amizades
e relacionamentos amorosos firmes proporcionam, mas lutar em excesso para ter segurança nesses
relacionamentos acaba por solapá-los; o florescimento desses relacionamentos, de certa forma,
depende de que não sejam protegidos, ou que estejam abertos a experiências tanto negativas
quanto positivas. Como disse Schneier, é possível obter proteção similar do terrorismo, desde que
você não se incomode de cancelar toda possibilidade de tráfego aéreo. O que há de comum em todos
esses exemplos é o fato de que atingir a segurança perfeita vai contra nosso interesse. Mesmo que
acreditemos desejar a segurança acima de tudo, na hora H, não desejamos.
Os psicoterapeutas Hal e Sidra Stone afirmam: “Ser vulnerável é estar sem armadura de defesa,
é ser autêntico e presente […]. Quando conseguimos sentir nossa vulnerabilidade, conseguimos
vivenciar todo o leque de nossas reações em relação ao mundo que nos cerca”. A questão, segundo
Brené Brown, professora de serviço social que estudou os benefícios psicológicos da vulnerabilidade,
é que “você não pode fazer a emoção adormecer seletivamente. Não dá para dizer: isso aqui é ruim;
tem vulnerabilidade, tem dor, tem vergonha, tem medo, tem decepção: isso aqui eu não quero”. No
fim das contas, a única forma de se proteger do que é negativo é se proteger igualmente do que é
positivo — e é aí que você percebe que na verdade não queria essa proteção. Ou, como C. S. Lewis
colocou, de forma mais lírica:
Amar não é senão ser vulnerável. Ame e teu coração será apertado, e talvez seja partido. Se
quiseres certeza de mantê-lo intacto, não dá teu coração a ninguém, nem sequer a um animal.
Embala-o cuidadosamente com teus passatempos e pequenos caprichos; evita todo
enredamento; tranca-o na segurança do caixão de teu egoísmo. Mas nesse caixão — seguro,
escuro, imóvel, desprovido de ar — ele mudará. Não será partido; tornar-se-á inquebrável,
impenetrável, irrecuperável.
As pesquisas de Brown ilustram que tornar-se insensível às emoções negativas não serve para
protegê-lo das emoções negativas propriamente ditas — por motivos que Thomas Merton, monge
católico e escritor, explicou em sua autobiografia, A montanha dos sete patamares. Ele escreveu: “A
verdade que muita gente nunca entende é que, quanto mais você tenta fugir do so imento, mais so
e, porque coisas menores e mais insignificantes passam a torturá-lo, na mesma proporção do seu
medo de se machucar”. Desse ponto de vista, fica claro que a busca da segurança representa uma
grande parte do problema com o “culto do otimismo”. Nós buscamos, através do pensamento
positivo e abordagens do gênero, a segurança e o solo firme da certeza, de saber como será o futuro,
de um futuro em que nossa felicidade não terá fim, nem teremos mais que recear emoções negativas.
Mas ao buscar tudo isso, abrimos mão das próprias faculdades que viabilizam a felicidade com que
sonhamos.

Para a monja budista americana Pema Chödrön, a insegurança é a natureza essencial da
realidade — e toda a nossa dor nasce da tentativa de alcançar um solo firme que, na verdade, não
existe. “Tornar-se budista”, diz ela, “é uma questão de tornar-se sem-teto.” Encarar a realidade é
perceber que existimos num estado de “falta de chão fundamental”. Mesmo assim, a maioria de nós
“luta para não sentir essa falta de chão […]. Todo o meu treinamento [consiste em mostrar] que não
existe forma de amarrar essas pontas soltas”. Ela prossegue: “Não dá para eliminar a falta de chão.
Você nunca terá um quadro limpo, bonito, sem desarrumação”. O livro mais famoso de Chödrön é
When Things Fall Apart [Quando as coisas desmoronam], título que soa como um manual para
retomar um passo confiante quando as coisas dão errado de forma catastrófica. Na verdade, o
argumento dela é que, quando as coisas desmoronam, por mais dolorosa que seja a experiência, isso
é bom; o desmoronamento de sua aparente segurança representa um encontro com a vida como ela
é. “As coisas não são permanentes, não duram, não há segurança final.” O que nos entristece não é
essa verdade, mas nosso esforço para fugir dela.
Neste momento, porém, uma objeção de peso a tudo isso pode estar perturbando você tanto
quanto me perturbou. Para aqueles de nós que se encontram em situações relativamente
confortáveis, é fácil apreciar a insegurança e a vulnerabilidade. Com sorte, podemos passar a vida
inteira sem encontrar a insegurança em suas formas mais agudas. Mas o que você aprende a respeito
da felicidade quando a insegurança é, realmente, a condição básica e inescapável de sua vida
cotidiana?

Era uma manhã de domingo em janeiro, quente e sem nuvens, e muitos dos habitantes da
segunda maior favela urbana da Á ica estavam arrumados para ir à igreja: homens em ternos bem
passados, mulheres em brilhantes vestidos verdes e fúcsia, crianças agarradas a suas Bíblias. Ali, na
área mais pobre de Kibera — em meio aos trilhos cobertos de lixo que dividem a favela, propriamente
dita, do resto de Nairóbi —, não é fácil manter limpas as roupas de ir à igreja, no caminho enlameado
que chamam de estrada. Em muitos trechos, o piso era formado por sacolas plásticas descartadas e
outros detritos. Em meio aos barracos de zinco e de barro, cães e galinhas vagam por valetas por
onde o esgoto corre a céu aberto.
A maioria dos fiéis subia o morro em direção ao enorme templo metodista, ou, em ente, à
principal igreja católica. Havia ainda várias outras portinhas de igrejas, escondidas em meio aos
casebres — barracos escuros, de um cômodo, em que se viam pastores pregando para duas ou três
pessoas, ou tocando hinos em teclados Casio. Mas na opinião de Frankie Otieno, um jovem de 22
anos, morador de Kibera, que não passava os domingos rezando, mas cuidando de seus diversos
interesses empresariais, essas pequenas igrejas não passavam de contos do vigário. “Em Kibera,
igreja é um negócio”, disse ele, com um sorriso fácil e eivado de cinismo. Ele estava sentado em um
sofá detonado, na sala sombreada da casa de sua mãe em Kibera, e bebia coca direto da garrafa.
“Uma igreja é a forma mais fácil de receber ajuda das entidades assistenciais. É só encher a igreja de
crianças — que estejam sem banho ou com fome — e a ONG vem, vê a igreja cheia, tira fotos para
mostrar aos financiadores e lhe dá dinheiro.” Otieno riu. “O importante são as fotos, entendeu?”

Em outra parte de Kibera, aonde só se chega por caminhos ainda mais estreitos, entrando
ainda mais na favela e dando a volta numa clínica de saúde, três moradores de Kibera estavam dando
início ao expediente numa fábrica de reciclagem de ossos de bode. Era um galpão ao ar livre,
organizado de forma simples: de um lado, uma pilha de ossos de bode recém-limpos, diversas
ferramentas de serrar e moer; e, do outro lado, o resultado do labor: abridores de garrafas, colares
e outras bugigangas, aguardando transporte até o centro de Nairóbi, onde seriam vendidas a turistas.
Rock clássico tocava num enorme gravador de fita, movido a pilha, mas prestando atenção dava para
ouvir a cantoria na igreja do morro. O cheiro de carne de bode, nyama choma, grelhando nas
proximidades, invadia a oficina, mascarando o cheiro de esgoto.
Comercialmente falando, o domingo em Kibera era um dia como qualquer outro, ou seja, um
dia movimentado. Passando pela fábrica de ossos e pelas churrasqueiras de rua, passando por uma
viela coberta de plástico azul, um portão indicava a entrada oficial do enorme mercado da favela.
Mas a onteira não era óbvia, porque Kibera inteira parecia um mercado. Ao longo de qualquer rua
esburacada, camelôs em barraquinhas improvisadas vendiam rádios, abacaxis ou roupas de bebê de
cores fluorescentes; condutores de carrinhos de mão abarrotados de materiais de construção ou lixo
eletrônico andavam para lá e para cá, evitando colidir com outras pessoas e outros carrinhos de mão.
Enquanto isso, na viela que saía do mercado, depois de uma loja mostrando jogos do
campeonato inglês transmitidos por satélite, George Otengu estava em casa, malhando na academia
que ele improvisou em seu pequeno quintal. Como barra, ele usava um cano de metal reciclado; em
cada extremidade, concreto derramado em cubas d’água cilíndricas fazia as vezes de peso. “Cento e
cinquenta quilos!”, garantiu, quando lhe perguntaram quanto estava levantando acima de seus
ombros largos, fazendo latejar as veias em sua testa. Crianças esticavam o pescoço, do lado de fora,
por trás do pano que protegia a sala da casa. Elas riam dele.
Para os padrões de qualquer pessoa, de praticamente qualquer lugar, as condições en entadas
pelos moradores de Kibera — que totalizam algo entre 170 mil e 1 milhão de pessoas, segundo
diferentes recenseamentos — são quase inimaginavelmente penosas. Na favela não há água
encanada nem eletricidade, à exceção daquela que os moradores “pegam emprestado” ligando
gambiarras aos cabos que passam sobre suas cabeças e levam energia aos cidadãos mais abastados
de Nairóbi. A violência sexual grassa. Sequestros-relâmpago e latrocínios são ocorrências semanais.
Sem saneamento básico, o meio principal de descarte de dejetos humanos em Kibera é o que os
favelados chamam, ironicamente, de “vasos voadores”: a prática de defecar em um saco plástico e
jogá-lo o mais longe possível de sua casa. Vasos voadores acrescentam a diarreia e a febre tifoide ao
catálogo de males da região, que também inclui um índice de infecção pelo HIV estimado por algumas
agências em 20% da população.
Por todas essas razões — e também por ficar a curta distância de carro do centro de Nairóbi,
com seu aeroporto internacional e seus confortáveis hotéis de negócios —, Kibera tornou-se uma
referência de so imento mundialmente famosa. Primeiros-ministros e presidentes a visitam para tirar
fotos publicitárias; equipes de televisão vêm de tempos em tempos filmar, boquiabertas; e a favela
tornou-se o foco desproporcional de centenas de entidades de ajuda, muitas delas religiosas, a
maioria dos Estados Unidos e da Europa. Seus nomes refletem o sentimento de desespero agoniado

que acabou associado ao nome “Kibera”: Grupo Fonte da Esperança, Sementes de Esperança,
Esperança Brilhante para Comunidades, Centro Kibera de Esperança, Kibera Necessitada.
Mas pergunte a Norbert Okodai, um assistente social alto, magro, de uns trinta anos, nascido
e criado em Kibera, se ele teve uma infância de tristeza e so imento, e ele vai rir na sua cara, incrédulo.
“É claro que não! Acontece que, no fim das contas, o problema não é a sua situação. Você pega o
que tem e usa da melhor forma possível, com os vizinhos. Em Kibera, você só vai conseguir se virar
junto com seus vizinhos.” Ou pergunte a Irene Mueni, que também vive ali, e que fala em tom
sombrio de acontecimentos traumatizantes de sua infância, e mesmo assim afirma: “A felicidade é
subjetiva. Você pode ser feliz numa favela e infeliz numa cidade. As coisas necessárias para a
felicidade não são aquelas de que você acha que precisa”.
Essa é a verdade incômoda que toca muitas pessoas que visitam Kibera.
Elas têm dificuldade de achar as palavras corretas para expressá-la, sabedores de que se presta a
mal-entendidos. Francamente, os moradores de Kibera simplesmente não parecem infelizes ou
deprimidos como se poderia esperar. Jean-Pierre Larroque, um documentarista que passou muito
tempo ali, observa: “É claro que a pobreza prejudica Kibera, mas isso não engendra o tipo de grito
merecedor de pena que as ONGs, as missões religiosas e as entidades de caridade gostariam que
você imaginasse”. Em vez disso, ele aponta, o que se vê são “ruas fervilhando de atividade”. Kibera
parece menos uma terra sem esperança e mais um viveiro de empreendedorismo.
Essa compreensão inesperada — que gente vivendo em circunstâncias extremamente ágeis
possa parecer surpreendentemente ativa e não deprimida — não se aplica, é claro, apenas a Kibera.
É tão conhecida que se tornou um lugar-comum, principalmente falando da Á ica subsaariana. E está
carregada de problemas: tangencia certo número de generalizações de mau gosto, e talvez até o
racismo, assim como mitos venenosos sobre povos “primitivos”, que a modernidade não corrompeu.
Também pode levar a conclusões politicamente questionáveis: se gente que so e de extrema pobreza
e falta de condições de saúde é tão feliz, alguns analistas poderiam ser tentados a sugerir que talvez
eles não precisem de ajuda externa. E nos assustamos, com boa razão, quando ouvimos celebridades
bem-nascidas falar apaixonadamente das alegrias simples de quem nada tem — por exemplo, a
apresentadora de TV e esposa de atleta Coleen McLoughlin disse a um repórter: “Acho tão inspirador
quando a TV mostra gente de países mais pobres: eles parecem tão felizes com sua vida, apesar da
falta de bens materiais […]. No futuro, eu planejo visitar um lugar como a África”.
No entanto, o problema de simplesmente desprezar por inteiro essa visão, considerando-a
errada ou mal direcionada, é que ela parece ser pelo menos em parte verdadeira. Pesquisas
internacionais de felicidade — incluindo vários projetos de pesquisa respeitáveis, como a Pesquisa
Mundial de Valores — indicaram de forma consistente alguns dos países mais pobres do mundo entre
os mais felizes (a Nigéria, onde 92% da população vive com menos de dois dólares por dia, já
apareceu em primeiro lugar). Dados do projeto de pesquisa Afrobarometer, que monitora uma dúzia
de países a icanos, inclusive o Quênia, detectou “níveis incomuns de otimismo entre os entrevistados
mais pobres e com menos segurança” nesses países. Algumas medições específicas, como a do
otimismo dos pais em relação ao futuro dos filhos, parecem, na verdade, estar inversamente
relacionadas à riqueza e à educação: os menos privilegiados relatam sentir-se mais bem-humorados.

De acordo com pesquisadores de saúde mental, distúrbios de ansiedade e depressão são bem menos
comuns nos países mais pobres (os estudos descontam a diferença da probabilidade de diagnóstico).
Em um levantamento recente de problemas de saúde mental no mundo inteiro, a Á ica subsaariana
ficou nas últimas posições, em termos de prevalência; todas as primeiras posições pertenciam a
regiões ricas e industrializadas.
Quando fiz minha segunda visita a Kibera, Norbert me disse: “Olha, essa é uma coisa que
cientistas sociais apontam constantemente”. Estávamos sentados em cadeiras dobráveis, na sombra
de seu prédio de escritórios, de apenas um andar, bem próximo à favela. “Não é porque você tem
problemas sociais que você não tem felicidade. Os ricos têm menos problemas? Será mesmo?
Políticos vão para a cadeia por corrupção, e eu não acho que eles sejam mais felizes que eu. Em
qualquer nível existem problemas, como doenças cardíacas ou pressão
alta, se você vive estressado.” Ele deu de ombros. “Isso não é evidente?”
Esse é um fenômeno psicológico que exige explicação. Mesmo que haja controvérsia sobre as
metodologias das pesquisas internacionais de felicidade; mesmo que as impressões de Jean-Pierre
Larroque e outros não deem conta da realidade como um todo… Por que lugares como Kibera não
estão, de forma incontestável e permanente, nas piores posições de qualquer estudo sobre níveis de
felicidade? Várias explicações foram sugeridas, mas nenhuma delas é completamente satisfatória.
Uma dessas explicações é que as expectativas dessas pessoas seriam menores. Outra, relacionada à
primeira, se baseia na observação (correta) de que a felicidade é relativa: gente que não tem à volta
exemplos de estilos de vida mais prazerosos não consideraria tão ruim sua própria situação. O
problema com esses argumentos é que eles derivam rapidamente para a sugestão condescendente
de que favelados não conhecem outra vida — que eles simplesmente desconhecem que é possível
viver com água encanada, privadas que funcionam e taxas reduzidas de doenças. Mas certamente
esse não é o caso em Kibera, cujos habitantes vivem lado a lado com os bairros mais chiques de
Nairóbi; alguns até trabalham neles como empregados domésticos. A imponente mansão de um dos
principais políticos de Nairóbi fica a pouco mais de um quilômetro dali, na estrada que liga a favela a
Nairóbi. Em uma escola no coração de Kibera, meninas de cinco anos aprendem a ler diante de uma
imensa fotografia da Times Square, em Nova York; é comum assistir a filmes de Hollywood em
videocassetes. Norbert Okodai até cunhou um termo — “a sede” — para chamar a ambição que ele
tentou instilar nos jovens de Kibera, levandoos, justamente, a regiões melhores de Nairóbi para
mostrar-lhes como eles poderiam viver. Nesse caso, pelo menos, o desconhecimento de uma vida
melhor não explica o mistério.
Eu não tenho tampouco a resposta para esse quebra-cabeça. Mas ele fica um pouco menos
misterioso se visto no contexto da psicologia da segurança e da insegurança. Já vimos como perseguir
o desejo de uma sensação de segurança pode nos levar a caminhos muito errados; e que a
vulnerabilidade pode ser justamente uma precondição para as coisas que trazem a maior felicidade
— acima de tudo, fortes relações sociais. O que a população de Kibera e outras em situações
semelhantes têm todas em comum é a falta de acesso àquelas coisas que o resto de nós tenta, de
forma contraproducente, usar para reprimir nossa sensação de insegurança. A questão, certamente,
não é que é melhor não ter dinheiro, por exemplo, do que ter. Mas é seguramente inegável que, para

quem não tem, é muito mais difícil depositar nele todo o nosso investimento emocional. O mesmo
vale para cargos de prestígio, bens materiais ou uma impressionante formação profissional: quando
você tem pouca chance de obtêlos, não será levado a crer que eles trazem mais felicidade do que
trazem. De uma forma mais geral, viver em condições tão desesperadoras significa que negar os
sentimentos de insegurança não é uma opção viável. Em vez disso, você tem que se virar para encarar
a realidade da insegurança. O povo de Kibera é vulnerável, goste ou não.
Uma americana que trabalha em Kibera, Paige Elenson, me disse que ficou profundamente
abalada ao se dar conta disso. Ela me disse:
Odeio esse romantismo todo — “Oh, como eles são felizes”. Em muitos aspectos, eles não são,
na verdade […]. Mas quando você não tem acesso a roupas legais e bons empregos, quando
você não tem nada disso para se agarrar, você tem que mostrar quem você é pela sua maneira
de ser, não pela sua roupa ou pelo seu cargo. Na verdade, você tem que ser gentil com as
pessoas, para elas gostarem de você! Você tem que olhá-las nos olhos! Nos Estados Unidos
não é muito assim, porque é mais, tipo, olha o que eu estou vestindo; olha o que está escrito
no meu cartão de visitas — eu não preciso ser gentil com você. Então tem essa
vulnerabilidade, que é outra forma de dizer que há menos pretensão. Eu não sei
necessariamente o que faz você feliz… mas quando há menos a que se prender, quando há
escolhas que você não tem, isso muda as coisas. Você tem de cortar tudo que for uma bosta.
E por falar em bosta: um dia, em Kibera, Norbert me levou para ver um projeto ao qual ele se
associara, ligado à reciclagem de dejetos humanos em biogás negociável. Era uma possível nova
solução para o problema dos vasos voadores. Ele pensou: as pessoas parariam de jogar sacos daquilo
na rua quando começassem a perceber que poderiam ganhar dinheiro com aquilo. Típico
pragmatismo kiberiano, ajudado, neste caso, por uma entidade assistencial americana. Quando
Norbert falou da importância de trabalhar com os vizinhos e de trabalhar com aquilo de que você
dispõe, ele não estava citando ases feitas. As atividades comunitárias a que ele se referia incluíam a
reciclagem de dejetos humanos.
Quando perguntei a Frankie Otieno, que estava tomando coca no sofá da mãe, a respeito de
tudo isso, ele respondeu:
Olha, Kibera não é um lugar legal. Problemões e 1 milhão de ONGs que não servem para nada.
Tremendos, tremendos problemas. Mas você tem de dar um jeito, porque tem. Então, você
pega o que tem e se vira. E dá para ser feliz assim, porque a felicidade vem de sua família, e
das outras pessoas, e de se tornar uma pessoa melhor, e de novos horizontes… Certo? Por que
se preocupar com algo que você não tem?
Acima de tudo, viver numa situação de insegurança tão inerente, ainda que muito distante do
preferível, é esclarecedor. Ninguém invejaria isso. Mas viver com menos ilusões significa encarar a

realidade bem de perto. Não ter a possibilidade de tentar se proteger de maneiras que acabam sendo
contraproducentes cria uma resiliência diante das privações que pode ser considerada, no fim das
contas, como uma modesta, mas extremamente duradoura, forma de felicidade.

Vimos que a segurança nem sempre é a vantagem que imaginamos que seja, e que a
insegurança pode ser compatível com a felicidade — ou talvez até, de certa forma, leve a ela. Mas
uma sugestão ainda mais radical é que a nossa busca pela segurança pode estar baseada em um malentendido fundamental — que a segurança, nas célebres palavras de Helen Keller, “é, sobretudo,
uma superstição”. Para entender as imensas implicações dessa ideia, temos de voltar, pela última
vez, ao trabalho de Alan Watts.
Watts começa seu pequeno tratado de 1951, A sabedoria da insegurança, apontando que há
uma explicação irresistível para o sentimento de insegurança de sua época: o progresso da ciência.
Cada vez menos pessoas conseguem se convencer, se é que algum dia puderam, de que estamos
destinados a uma vida de eterno êxtase após a morte; ou que haja um Deus que olha por nós; ou
que as regras morais ditadas pelo papa ou pelo arcebispo de Cantuária são aquelas que devemos
seguir inquestionavelmente. “É evidente por si mesmo”, escreve ele, “que ao longo dos últimos cem
anos a autoridade da ciência tomou o lugar da autoridade da religião na imaginação popular, e que
o ceticismo, pelo menos nas coisas espirituais, se tornou mais generalizado que a fé”. É verdade que
Watts escreveu isso antes do renascimento do cristianismo fundamentalista nos Estados Unidos. Mas
até esse fato poderia ter sido visto por ele como uma reação inevitável à própria hegemonia da
ciência que ele descreveu.
Nem seria preciso dizer que a pesquisa científica trouxe benefícios imensuráveis. E Watts
concorda com isso. Mas, ao mesmo tempo, ela deixou em muitos um sentimento de vazio espiritual.
Ao eliminar deuses e a vida após a morte, a visão científica do universo parece ter esvaziado de
qualquer significado espiritual as vidas individuais; nós só cabemos nela como meros organismos,
vivendo nossas breves vidas por razão nenhuma e perecendo ao fim. Essa, sugere ele, é uma
insegurança final e existencial, aquela que está por trás de todas as outras. No entanto, para a
maioria de nós, voltar para a asa confortável das antigas religiões doutrinárias não é uma alternativa;
você não pode se “reconvencer” de afirmações que você sabe serem inverdades. Estaríamos, assim,
presos entre a escolha de viver vidas sem sentido, mas cientificamente autênticas, ou vidas baseadas
na superstição e no autoengano? Watts insiste que há uma terceira alternativa, e é sobre ela que seu
pequeno livro fala.
O ponto inicial dessa discussão é a observação de que a impermanência é a natureza do
universo: que “a única constante é a mudança”. Foi Heráclito, que viveu entre os séculos VI e V a.C.,
que disse que “nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio”; e seu contemporâneo Confúcio,
na China, teria apontado para um rio e dito “ele sempre corre, dia e noite”. Pessoas, animais, plantas,
comunidades e civilizações, todos crescem, mudam e morrem: é o fato mais óbvio do mundo, e quase
todos, defensores da ciência ou da religião, concordam com isso.

No entanto, observa Watts, apesar de toda a obviedade desse insight, parecemos viver num
constante estado de beligerância contra ele, lutando para encontrar segurança, permanência, rigidez
e estabilidade. A intenção de Watts não é repreendê-lo para que você desista da luta contra a
impermanência — ele escreveu: “Xingar um desejo não nos livra dele”. Em vez disso, ele quer abrir
seus olhos para um erro fundamental. Tentar consertar a mudança é uma contradição; você não
pode consertar a mudança da mesma forma que você não pode esquentar o io, ou esverdear o roxo.
“Há uma contradição entre querer ser perfeitamente seguro em um universo cuja natureza é, por
definição, instantaneidade e fluidez”, escreveu ele. Até discutir o assunto, ele afirma, beira uma
contradição semelhante, porque é da natureza da linguagem a tentativa de fixar e definir. Assim, a
característica mais fundamental do universo é aquela sobre a qual é mais difícil falar.
Mas é pior que uma simples contradição — porque, argumenta Watts, ao tentar atingir a
rigidez em meio à mudança, o que realmente estamos fazendo é tentar nos separar de toda essa
mudança, tentando impor uma distinção entre nós mesmos e o resto do mundo. Buscar a segurança
é tentar se afastar da mudança e, assim, daquilo que define a vida. “Se eu quero ficar seguro, ou seja,
protegido do fluxo da vida”, escreve Watts, “eu quero me separar da vida.” Isso nos traz ao X da
questão: pelo fato de querermos nos sentir seguros é que construímos as barreiras do ego, para nos
defendermos. Mas são essas barreiras que criam a sensação de insegurança: “Estar seguro significa
isolar e fortificar o ‘eu’, mas é justamente esse sentimento de ser um ‘eu’ isolado que nos faz sentir
sozinhos e com medo”. Essa é uma noção incrivelmente contraintuitiva: contemplá-la implica uma
mudança mental semelhante àquele momento, na famosa ilusão de óptica, em que em vez de uma
bela jovem, vemos uma bruxa velha. Erguemos castelos para manter o inimigo do lado de fora, mas
é a ereção dos muros, em si, que engendra a existência do inimigo, antes de tudo. É só porque
existem os muros do castelo que há alguma coisa para atacar. “O desejo de segurança e o sentimento
de insegurança são a mesma coisa”, conclui Watts. “Segurar a respiração é perder o fôlego. Uma
sociedade que se baseia na busca pela segurança não passa de um concurso de prender a respiração,
em que todos ficam tensos como cordas esticadas e roxos como beterrabas.” Mesmo que
obtenhamos temporária e parcialmente a sensação de segurança, acrescenta ele, não é uma
sensação boa. A vida dentro dos muros do castelo acaba se tornando solitária e isolada.
“Descobrimos [não apenas] que não há segurança, [e] que buscá-la é doloroso, [mas] que quando
achamos tê-la encontrado, ela não nos agrada.”
Para entender o último cartucho no arsenal de Watts, pense no final do capítulo anterior, e no
desafio que ele colocava a nossos conceitos sobre a natureza do “eu”. Ali estávamos diante do fato
de que parece não haver um lugar claro onde estabelecer a onteira entre “eu” e o “outro” — e que
a própria onteira em si, ainda que possamos decidir marcá-la em algum lugar, é mais um ponto de
encontro que uma divisória. O “eu” e o “outro” são mutuamente dependentes para existir. Se
considerarmos que isso é verdade, deve-se concluir que a “segurança” é um erro — porque
pressupõe a ideia de um “eu” separado, que não faz muito sentido. O que, aliás, significa separar-se
de um ecossistema que é, no fundo, o que constitui você? Não é uma questão de “encarar” a
insegurança, mas de compreender que você é a insegurança. Watts escreve:

Entender que não existe segurança é muito mais que concordar com a teoria de que todas as
coisas mudam, muito mais até do que observar a transitoriedade da vida. A ideia de segurança
se baseia no sentimento de que há algo dentro de nós que é permanente, algo que persiste
através de todos os dias e mudanças da vida. Lutamos para nos assegurar da permanência, da
continuidade e da segurança desse núcleo persistente, esse centro e alma de nosso ser, que
eu chamo de “eu”. Pois nós o reconhecemos como o verdadeiro homem — o pensador de
nossos pensamentos; quem sente nossos sentimentos; o conhecedor de nosso conhecimento.
Não há como realmente entendermos que não há segurança até nos darmos conta de que
esse “eu” não existe.
Quando você capta a ideia desse trecho fantástico — e eu levei algum tempo —, está explicado
da forma mais completa por que nossos esforços para encontrar a felicidade são solapados, com
tanta equência, pelos efeitos “irônicos”, que nos entregam exatamente o oposto daquilo que
buscamos obter. Todo o pensamento positivo, todo o estabelecimento de metas, a visualização, o
olhar o lado bom das coisas, todo o esforço para que as coisas aconteçam do nosso jeito, e não de
outro jeito, está enraizado na presunção de uma separação entre “nós” e essas “coisas”. Mas, diante
de um exame mais atento, essa presunção não fica de pé. Tentar fugir da insegurança para a
segurança, da incerteza para a certeza, é uma tentativa de encontrar uma saída do próprio sistema
que nos torna, antes de tudo, o que somos. Podemos influenciar o sistema do qual fazemos parte, é
claro. Mas se o que nos motiva é esse mal-entendido a respeito do que somos, e do que é a
segurança, sempre vamos correr o risco de ir longe demais, de nos esforçarmos em demasia, de
forma contraproducente. Watts conclui:
A verdadeira razão pela qual a vida humana pode ser tão terrivelmente exasperante e ustrante
não é a existência dos fatos chamados morte, dor, medo ou fome. A loucura do negócio é que,
quando esses fatos estão presentes, nós nos contorcemos, damos voltas, gememos,
rodopiamos, tentando tirar o “eu” dessa experiência […]. A sanidade e a integridade residem
na compreensão de que não estamos divididos, esse homem e essa experiência presente são
um só, e que não se encontra separado nenhum “eu” ou mente […]. [A vida] é uma dança, e,
quando você está dançando, você não tem a intenção de chegar a algum lugar. O significado
e o objetivo da dança é a dança.
Essa, então, é a verdade profunda a respeito da insegurança: é outra palavra para “vida”. Isso
não significa que não seja uma boa ideia se proteger, o quanto possível, de alguns perigos específicos.
Significa que o desejo de sentir-se seguro e o de viver de verdade são, num sentido definitivo,
opostos. E que, assim como uma onda não consegue sair do oceano, você não conseguirá alcançar a
segurança perfeita.

7. O Museu do Fracasso
Argumentos para assumir seus erros

Não dá para transformar uma orelha de porco numa vitela Orloff.
Mas dá para fazer coisas muito boas com uma orelha de porco.
Julia Child

Em um centro empresarial sem nada de interessante, perto do aeroporto da periferia de Ann
Arbor, no estado americano de Michigan, há um comovente memorial aos sonhos despedaçados da
humanidade. Não que dê para notar pela arquitetura. De fora, parece uma revendedora de
automóveis, e é exatamente o que foi até 2003, quando se mudou para lá uma empresa com o nome
enigmático de GfK Custom Research North America. Mesmo depois que você entra — o que
raramente ocorre com o público em geral —, leva alguns instantes para que seus olhos se adaptem
ao que veem. Não há saguão, nem recepção, nem lista de departamentos, ninguém à sua espera
para cumprimentálo. Em vez disso, você se vê dentro do que parece um enorme supermercado,
organizado ao acaso. Não há egueses, mas ao longo de cada seção as prateleiras de metal cinzento
estão abarrotadas com dezenas de milhares de embalagens de comida e produtos para o lar. Há uma
cacofonia anormal nessas vitrines. Não demora para que você entenda a razão. Ao contrário de um
supermercado real, há apenas um item de cada produto; não há fileiras uniformes de ascos de molho
de tomate, caixas de detergente para louça ou latinhas de bebidas gasosas. O mais importante em
relação aos produtos nessas prateleiras, porém, é que você não vai encontrá-los em um
supermercado de verdade. Todos eles são acassos: produtos retirados das vendas depois de algumas
semanas, ou meses, porque ninguém quis comprá-los. No mercado de design de produtos, o
armazém de fiascos da GfK Custom Research foi apelidado de “museu de produtos acassados”. É o
cemitério do consumo capitalista — o lado sombrio da cultura incessantemente alegre e focada no
sucesso do marketing moderno. Ou, em palavras menos grandiloquentes: é muito provavelmente o

único lugar do planeta onde você encontra o xampu Um Toque de Iogurte, da Clairol, ao lado do
igualmente impopular Apenas para Cabelos Oleosos, da Gillette, e a alguns metros de uma garrafa,
agora vazia, de Pepsi AM Cola Café da Manhã (nascida em 1989, falecida em 1990). O museu abriga
marcas descontinuadas de cerveja cafeinada; pratos prontos com o logo do fabricante de pasta de
dentes Colgate; latas de sopa autoaquecidas que tinham o péssimo hábito de explodir na cara dos
compradores; e pacotes de pastilhas para o hálito que saíram de circulação porque se pareciam com
as pequenas embalagens de crack vendidas pelos traficantes das ruas americanas. É lá que vão
morrer coisas como os ovos mexidos para micro-ondas — pré-mexidos e embalados em um tubo de
papelão, com um mecanismo de abertura para facilitar o consumo dentro do carro.
Se algum desses produtos o fizer rir, porém, a proprietária do museu, uma empregada da GfK
elegante, mas discreta, chamada Carol Sherry, vai apertar os lábios e erguer as sobrancelhas sobre
seus óculos Dolce & Gabbana, em tom de repreensão. Em parte, é sério. O trabalho de Sherry é atuar
como acompanhante dos designers de produtos e outros executivos que pagam quantias elevadas
pelo direito de inspecionar a coleção de acassos da GfK. E ela trata os produtos sob seus cuidados
como crianças problemáticas, mas ainda assim fundamentalmente amáveis. Numa manhã luminosa
de dezembro, enquanto me conduzia em um tour pelo prédio, ela parou diante de um asco cor de
creme de loção para o corpo, e uma expressão quase de tristeza passou por seu rosto. “Ah, é, isso,
agora”, disse ela, afetuosamente. “Retirado repentinamente do mercado. Infelizmente, aumentava
o risco de infecção por fungos.”
Em japonês existe uma expressão, mono no aware, que pode ser traduzida grosseiramente
como “o pathos das coisas”. Esse termo capta um tipo de melancolia tocante em relação à
impermanência da vida — aquela beleza adicional que recai sobre as flores de cerejeira, as formações
de nuvens ou os traços humanos, como resultado de sua inevitável fugacidade sobre a Terra. Basta
espichar ligeiramente esse conceito para sugerir que Sherry sente o mesmo a respeito, por exemplo,
das caixas de Suco de Banana Matinal sob sua atenção ou a respeito dos Fortune Snookies, uma linha
de biscoitos da sorte para cães, que teve vida curta. Todo acasso, na visão dela, encarna sua própria
e triste história de esforço sincero da parte de projetistas, marqueteiros, vendedores e outros. Ela
nunca esquece que gente de carne e osso dependia — para suas hipotecas, prestações de carro e
férias familiares — do sucesso de Um Toque de Iogurte. Ou Hueblein Wine and Dine Dinners, uma
linha de refeições prépreparadas que vinha com meia garrafa de vinho para cozinhar, mas que os
compradores, compreensivelmente, achavam que era para beber (então experimentavam o vinho e
paravam de comprar Hueblein Wine and Dine
Dinners).
“Eu sinto muito mesmo pelo criador deste aqui”, disse Sherry, apontando para as pastilhas
bucais que involuntariamente pareciam crack. “Quero dizer, eu conheço o cara. Por que ele iria
pensar em passar algum tempo na rua, conhecendo a cultura do tráfico? Ele fez tudo certo, só não
foi à rua ver se seu produto se parecia com drogas.” Ela sacudiu a cabeça. “Para mim, ser um criador
de produtos exige uma coragem inacreditável. Há mil maneiras de dar tudo errado. É gente real, que
acorda toda manhã e quer sinceramente dar o melhor de si. Então, bem… Acontece alguma coisa.”

O próprio museu de produtos acassados é uma espécie de acidente, ainda que um acidente
mais feliz. Seu criador, um homem de marketing chamado Robert McMath (hoje aposentado), queria
apenas juntar uma “biblioteca de referência” de produtos de consumo, e não acassos per se. A partir
dos anos 1970, ele começou a comprar e guardar uma amostra de cada produto novo que ele
encontrava (esvaziando as embalagens de produtos perecíveis, para não ficar tão nojento). Em pouco
tempo, a coleção ficou maior que seu escritório no interior do estado de Nova York, e ele foi obrigado
a alugar um galpão numa propriedade vizinha. Tempos depois, a GfK — as iniciais derivam do nome
alemão da empresa-mãe — comprou sua empresa e mudou tudo para o Michigan. McMath não tinha
se tocado até ali, disse-me ele por telefone de sua casa na Califórnia, de uma verdade de seis palavras
que viria a definir sua carreira: “A maioria dos produtos dá errado”. De acordo com algumas
estimativas, a taxa de acasso pode chegar a 90%. Ao colecionar produtos novos indiscriminadamente,
McMath acabou garantindo que seu estoque consistisse, na grande maioria, de acassos. Ele me disse:
“Sabe, eu nunca gostei muito do termo ‘museu de produtos acassados’. Mas está aí. Pegou. O que
eu podia fazer?”.
Desconfiei que McMath estava fazendo tipo, já que todas as evidências indicavam que ele
adorava a reputação de guru do acasso. No começo, ele se tornou presença constante no circuito de
palestras, e depois na TV a cabo americana; até David Letterman o entrevistou a respeito daquilo
que McMath chamou alegremente de “ acassoteca”. Ele escreveu um livro de marketing — Onde eles
estavam com a cabeça? — que passa a maior parte do tempo troçando de produtos como o
antitranspirante Sem Suor, da Revlon, e o Cara de Soro de Leite, um produto da mesma linha do Um
Toque de Iogurte, da Clairol (como McMath observa, nunca se deve mencionar o suor ao
comercializar produtos antissuor, porque alguns consumidores o consideram nojento. Não se sabe
ao certo, por sua vez, o que significa “cara de soro de leite”, muito menos por que você iria querê-lo
em seu cabelo). Mas Sherry parecia contra a abordagem leviana de seu antecessor em relação ao
trabalho. “Sim, no início o gancho para a imprensa era o fato de ele ser o dono do museu de acassos”,
suspirou ela. “Mas acho isso uma pena. Acho que é da natureza humana apontar o dedo e se deleitar
com a miséria alheia. Mas eu me apeguei muito a tudo isso aqui.” O argumento dela fazia sentido. É
bem verdade que eu dei risada ao topar com a comida de gato Baixo Teor de Cinzas Goff’s, que se
gabava de conter “apenas 1% de cinzas” (como escreveu o jornalista Neil Steinberg, seria o mesmo
que promover uma linha de cachorros-quentes chamada Pouco Pelo de Rato). Mas o fato é que
diversas pessoas supostamente dedicaram meses de sua vida a criar aquela comida de gato. Espero
que, olhando para trás, elas deem risadas hoje, mas quem vai saber?
O que mais chama a atenção no museu de produtos acassados, porém, tem a ver, acima de
tudo, com o fato de ele próprio ser um negócio viável e lucrativo. Era de esperar que qualquer
fabricante de produtos comerciais digno desse nome tivesse sua própria coleção, um recurso
cautelosamente cuidado para ajudá-lo a evitar repetir os erros que seus rivais já tivessem cometido.
E, no entanto, os executivos que batem toda semana à porta de Carol Sherry são a evidência do quão
raro isso é. Os criadores de produtos estão tão focados na próxima esperança de sucesso — e tão
pouco dispostos a dedicar tempo ou energia a pensar nos acassos da indústria no passado — que só
reconhecem tardiamente o quanto precisam e estão dispostos a pagar para ter acesso à coleção da

GfK. O mais surpreendente de tudo é o fato de que muitos designers que descobriram o museu de
produtos fracassados, ao longo dos anos, foram até lá para avaliar — ou, em alguns casos, tiveram a
surpresa de descobrir — produtos que suas próprias empresas criaram para depois deixar de lado.
Essas empresas, aparentemente, tinham tanta aversão a pensar no desagradável negócio do acasso
que não se importaram sequer em guardar amostras de seus próprios produtos fracassados.
“Geralmente é assim”, disse McMath. “Um produto é criado por um gerente de produto, não
funciona, e ele provavelmente vai guardar algumas unidades no armário do quarto, pelo valor
sentimental, até que um dia ele sai da empresa.” O produto já não existirá em parte alguma, exceto
no quarto do gerente. Tampouco, é claro, ele levará a seu próximo local de trabalho amostras de
seus acassos: quem gosta de se associar, voluntariamente, ao que deu errado? “As pessoas se
inspiram com os sucessos e realizações, e o pessoal do marketing é humano como qualquer outro”,
diz Carol Sherry. “Você quer poder contar uma história agradável sobre suas conquistas.” É
improvável que, na empresa anterior do gerente, haja alguém disposto a discutir o que deu errado.
O acasso, simplesmente, não é um tema no qual pessoas ambiciosas gostam de perder muito tempo.
No mínimo, é deprimente; no máximo, soa como algo contagioso — como se o germe do desastre
pudesse infectar seu próximo projeto. Lembre a mensagem do dr. Robert H. Schuller, do Motive-se!,
mandando a plateia cortar a palavra “impossível” de seu vocabulário e recusando-se a admitir a
possibilidade de acasso. É exatamente o que fizeram muitos designers de produtos e executivos de
marketing, a julgar pelo fato de a indústria de produtos de consumo precisar de um museu de
produtos fracassados.
McMath ficou um pouco ressabiado quando lhe pedi para contar que executivos, exatamente,
se sentiram obrigados a visitar sua coleção, com o rabo entre as pernas, para observar produtos de
suas próprias empresas. Mas depois de insistir um pouco ele soltou que alguns deles podem ter
trabalhado para uma multinacional cujo nome começa com “P” e termina com “rocter & Gamble”.
Em seguida ele se lembrou claramente de um projetista de produtos que o abordou com um projeto
para comercializar duas linhas-irmãs de aldas, uma para cada sexo, com almofadas de configurações
diferentes para cada uma. Essa é uma inovação que foi muito tentada e muito abandonada: os pais,
em geral, não veem a necessidade, enquanto os comerciantes não gostam de ter que reservar mais
espaço nas prateleiras, para evitar ficar sem um dos dois tipos. Foi com alegria que Robert McMath
encaminhou os designers para uma ala de sua coleção e mostrou que não apenas essa ideia já tinha
sido tentada — mas que tinha sido sua própria empresa que a tentara.
O acasso está em toda parte. Só que na maior parte do tempo a gente prefere evitar encarar
esse fato.

O acasso — e nossa relação difícil com ele — tem servido como pano de fundo para boa parte
deste livro até agora. É aquilo que a cultura do pensamento positivo luta a todo custo para evitar.
Então não surpreende que seja tão importante em uma abordagem alternativa para a felicidade. A
técnica estoica da visualização negativa é, exatamente, uma questão de encarar a possibilidade do
acasso. O que os críticos do estabelecimento de metas fazem, na verdade, é propor também uma

atitude diferente em relação ao acasso, uma vez que uma abordagem de improviso e de tentativa e
erro implica estar disposto a acassar com equência. As ruminações espirituais de Eckhart Tolle e Alan
Watts, por sua vez, apontam para um tipo mais profundo de acasso: o derradeiro — e, no fim das
contas, libertador — acasso dos esforços do ego para manter-se separado e seguro.
Mas também vale a pena pensar diretamente no tema do acasso para ver como o esforço
desesperado do “culto do otimismo” para evitá-lo é tantas vezes contraproducente e como seria
melhor aprendermos a abraçá-lo. A primeira razão para encarar o acasso é que nosso esforço para
não pensar nele nos deixa com uma compreensão seriamente distorcida daquilo que é necessário
para ter sucesso. A segunda é que uma abertura para a experiência emocional do acasso pode ser
um passo em direção a um tipo muito mais rico de felicidade, que pode ser alcançado simplesmente
focando no sucesso. Está na moda, em alguns círculos, insistir na importância de “abraçar o acasso”:
nenhuma autobiografia de empresário, inventor ou político importante pode ser considerada
completa sem vários trechos em que o autor atribui seu êxito à disposição de acassar (Sir Richard
Branson é recalcitrante nessa questão). Mas abraçar o acasso de verdade implica uma mudança de
perspectiva muito maior do que o que fazem essas personalidades ao falar da boca para fora sobre
essa ideia. E, em todo caso, uma grande parte do problema é dar ouvidos apenas aos conselhos dos
bemsucedidos.
Nossa resistência ao pensamento a respeito do acasso é particularmente à luz do fato de que
o acasso está em toda parte. “O acasso é a característica distintiva da vida corporativa”, escreve o
economista Paul Ormerod, no início de seu livro Why Most Things Fail [Por que a maioria das coisas
dá errado], mas nesse sentido a vida corporativa é meramente um microcosmo da vida como um
todo. A evolução, em si, é guiada pelo acasso; nós pensamos nela como uma questão de
sobrevivência e adaptação, mas faz igualmente sentido pensar nela como uma questão de não
sobrevivência e não adaptação. Ou talvez faça ainda mais sentido: de todas as espécies que já
existiram, afinal de contas, menos de 1% estão vivas hoje. As demais acassaram. Em nível individual,
igualmente, não importa quanto sucesso você tenha em sua vida, no fim das contas sua história —
com todo respeito — será um acasso. Seus órgãos falirão, e você morrerá.
No entanto, embora o acasso seja onipresente, os psicólogos reconhecem há muito tempo que
a ideia é aterradora, e que nós faremos o possível e o impossível para evitar pensar nela. No limite
da patologia, esse medo do acasso é conhecido como “cacorrafiofobia”. Os sintomas podem incluir
palpitações cardíacas, hiperventilação e tontura. Poucos chegam a sofrer disso de forma tão aguda.
Mas, como veremos, isso pode ser apenas porque temos um dom natural para “editar” nossos
acassos, de forma a guardar uma memória de nossas ações muito mais lisonjeadora que a realidade.
Assim como gerentes de produtos que abarrotam o armário de acassos, somos capazes de qualquer
coisa para dar uma versão bem-sucedida de nossa vida. Isso leva, entre outras consequências, ao
divertido fenômeno psicológico conhecido como
“superioridade ilusória”. A superioridade ilusória explica, por exemplo, por que a vasta maioria das
pessoas responde aos pesquisadores que se considera no grupo de 50% das pessoas que dirigem
melhor — embora isso seja impossível.

Como muitos especialistas que se inquietam com nossa relutância em encarar o acasso, Robert
McMath gosta de propor que nós devemos nos comportar “mais como cientistas”. O que ele quer
dizer é que os cientistas, ao contrário do resto de nós, têm, por necessidade, que se sentir mais à
vontade com o acasso. Cientistas profissionais, previsivelmente, tendem a compartilhar essa visão
lisonjeadora. O objetivo de todo bom cientista é descobrir a verdade. Por isso, ele não pode ficar
escolhendo se os resultados de suas experiências confirmam ou desmentem suas hipóteses.
Pesquisas científicas exigem elaborar uma hipótese, testá-la e então lidar com quaisquer resultados
obtidos — mesmo que isso arruíne suas esperanças de uma descoberta digna de prêmio. Certo? Na
verdade, talvez não. Uma série fascinante de estudos de cientistas em atividade, liderados pelo
pesquisador de origem irlandesa Kevin Dunbar, apresenta um quadro muito diferente — e confirmo
o quanto é profunda e universalmente humana a tendência de evitar encarar o acasso. Cientistas, ao
que tudo indica, podem ser tão malvados quanto qualquer pessoa.
Dunbar negociou para ter acesso a quatro grandes laboratórios de biologia molecular, e
começou a observar o trabalho realizado neles. Durante meses, ele gravou entrevistas e registrou as
reuniões semanais nos laboratórios, em que os cientistas discutiam suas descobertas (é raro esse
tipo de exame do que os cientistas fazem no dia a dia, em grande parte porque os próprios cientistas
consideram isso irrelevante). A primeira descoberta de Dunbar foi que os pesquisadores topavam o
tempo todo com o acasso. “Se você for um cientista e estiver realizando uma experiência”, ele
afirmaria depois, “cerca de metade das suas experiências, na verdade, dá errado.” Qualquer que seja
a razão — procedimentos inadequados ou uma hipótese falha —, os resultados obtidos não
correspondiam às conclusões de que os cientistas achavam estar se aproximando. Como um dos
pesquisados por Dunbar disse em uma reunião, ao descrever mais um fracasso: “Eu vi os resultados
e quis me jogar da ponte”.
Ficou ainda mais interessante quando Dunbar examinou como os pesquisadores reagiram a
esse dilúvio de acassos. Ele relatou ao escritor de neurociência Jonah Lehrer que as reações seguiram
uma sequência previsível.
Primeiro, o cientista punha a culpa no equipamento ou nas técnicas, suspeitando que um aparelho
medidor tivesse funcionado mal, ou que ele próprio tivesse cometido um erro bobo. Quando não era
tão fácil explicar o problema, o pesquisador tentava repetir a experiência, geralmente diversas vezes,
na esperança de que a anomalia desaparecesse. Se isso não adiantasse, muitas vezes ele
simplesmente deixava de lado a experiência. Laboratórios são lugares movimentados; cientistas
costumam estar sobrecarregados; nunca houve tantos caminhos em potencial para a pesquisa. Por
isso, os cientistas têm de tomar decisões a respeito do próximo foco da atenção deles. Kevin Dunbar
descobriu que, constantemente, os cientistas preferiam negligenciar os resultados inexplicáveis,
concentrando-se em seus êxitos, para não ficarem presos a seus fracassos.
Usando ressonâncias magnéticas do cérebro, Dunbar analisou a parte do cérebro humano que
parece mais envolvida na filtragem dos acassos: o córtex pré- ontal dorsolateral ou DLPFC. Essa região
desempenha um papel crucial na filtragem de informação indesejada ou irrelevante, o que é
essencial quando você quer se concentrar, por exemplo, em uma conversa isolada numa festa
barulhenta (pessoas que so em danos no DLPFC têm dificuldade com esse tipo de tarefa). Mas um

processo de filtragem semelhante parece ser desencadeado quando nos apresentam informações
que agridem nossas expectativas, mesmo quando elas estão longe de ser irrelevantes. Em uma
experiência, Dunbar mostrou vídeos a uma plateia de estudantes de física, em que dois objetos de
diferentes tamanhos, soltos do alto de uma torre, pareciam violar as leis da gravidade: caíam a
velocidades diferentes. Estudantes de física sabem que não é isso que acontece, e seus DLPFCs se
acenderam — muito mais que em espectadores dos vídeos que não conheciam tanto essa lei da
física. O palpite de Dunbar é que os cérebros dos estudantes de física estavam reagindo à informação
indesejável e claramente inexplicável, tentando apagá-la de suas consciências.
De volta a Ann Arbor, no museu de produtos acassados, não foi difícil imaginar o quanto uma
aversão semelhante ao con onto com o acasso possa ter sido responsável pela própria existência de
muitos dos produtos expostos nas prateleiras. Afinal de contas, cada um deles deve ter passado por
uma série de encontros em que ninguém percebeu que o tal produto estava condenado. Talvez
ninguém quisesse encarar a perspectiva do acasso; talvez alguém tenha encarado, mas não tenha
querido levantar o debate. Mesmo quando o provável acasso do produto foi reconhecido, explicou
McMath, os responsáveis pelo marketing podem ter reagido botando ainda mais dinheiro nele. É
uma reação comum quando um produto parece destinado a virar um mico, porque com uma verba
de marketing grande o suficiente um gerente de marketing consegue pelo menos garantir alguma
venda, poupando a empresa da humilhação total. Quando cai a ficha da realidade, observa McMath
em Onde eles estavam com a cabeça?, é bem possível que “os executivos já tenham sido transferidos
para outra marca ou contratados por outra empresa”. Graças a uma indisposição generalizada a
encarar o acasso, mais dinheiro terá sido investido no produto condenado, e pouca energia terá sido
dedicada a avaliar o que deu errado. Todos os envolvidos terão conspirado — talvez sem se dar conta
do que estão fazendo — para nunca mais falar ou pensar nisso.

O primeiro grande problema com nossa relutância em pensar na análise dos acassos — sejam
nossos próprios, ou de outros — é que ela leva a um quadro totalmente distorcido das causas do
sucesso. Alguns anos atrás, Jerker Denrell, um teórico da administração da Universidade de Oxford,
estava assistindo a uma conferência acadêmica em Estocolmo, em sua Suécia natal, e suportando o
tipo de discurso que torna difícil permanecer acordado. No púlpito, um colega pesquisador estava
apresentando suas descobertas a respeito dos traços de personalidade dos empreendedores
altamente bem-sucedidos. De acordo com várias pesquisas recentes, anunciou o palestrante,
executivos de alto desempenho apresentavam duas características-chave: estavam dispostos a
perseverar em caso de revés e possuíam carisma suficiente para convencer os outros a segui-los.
Tudo isso é chato e óbvio, e é fácil imaginar que pálpebras por todo o salão de conferências
começaram a cair. Mas Denrell se viu prestando atenção. Ele se deu conta de que a palestra a que
ele estava escutando incorporava um erro que ele via fazia tempo; ele só nunca ouvira alguém
expressá-lo de forma tão clara. E era um erro tão básico que ameaçava solapar uma grande
proporção do trabalho de seus colegas.

É claro que pode ser verdade que empreendedores de sucesso possuam talentos de
perseverança e liderança. O que é menos óbvio — e bem menos chato — é algo que o palestrante se
esqueceu de mencionar: que esses traços, provavelmente, também são característicos de pessoas
extremamente malsucedidas. “Pense nisso”, observaria posteriormente Denrell. “Perder muito
dinheiro exige tanta persistência […] quanto capacidade de convencer os outros a jogar dinheiro pelo
ralo.” Gente sem muita perseverança ou carisma tem mais tendência a ficar no meio do caminho,
não vivenciando nem o grande sucesso nem o grande acasso (se você nunca persiste em nada e se
você não consegue convencer os outros a segui-lo, você nunca conseguirá conduzir um exército de
almas gêmeas à vitória total — mas tampouco os levará ao abismo). Faz todo sentido que os
extremamente bem-sucedidos e os extremamente malsucedidos, na verdade, tenham
personalidades semelhantes. A única diferença indiscutível entre os dois é que os extremamente
malsucedidos são muito, muito menos entrevistados pelos acadêmicos de administração que
estudam as causas do sucesso. Afinal de contas, eles acassaram. E mesmo que os pesquisadores
quisessem entrevistá-los — o que, na esmagadora maioria, não querem —, é difícil imaginar como
eles conseguiriam encontrar um número significativo deles. O sucesso acontece em público; na
verdade, alcançar a celebridade é parte da definição do que constitui o sucesso para muitas pessoas.
O acasso, ocasionalmente, é espetacular no começo, mas a maioria das pessoas que fracassam vai
parar na obscuridade.
Esse problema, conhecido como “viés do sobrevivente” ou “subamostragem do acasso”, já é
muito bem conhecido em várias áreas acadêmicas e na vida. A maioria de nós consegue captá-lo
intuitivamente, em certos contextos. O exemplo típico são as apostas. No fundo de nós, sabemos
que, se tivemos um dia de sorte no cassino, não devemos concluir que possuímos um poder mágico
de adivinhar o comportamento da roleta. Sabemos que ganhar na roleta é uma questão de sorte, e
que as probabilidades determinam que, de vez em quando, alguém terá um dia de sorte. Dias de azar
são mais comuns, é claro. Só que eles não tendem a provocar cochichos de espanto dentro do
cassino. Você nunca ouve falar de todos os homens e mulheres que não quebraram a banca em
Monte Carlo.
O discurso que Jerker Denrell ouviu em Estocolmo foi um exemplo evidente de como nossas
conversas a respeito do sucesso sempre cometem o erro da subamostragem do acasso. Mas há
incontáveis outros. Pegue o bestseller O milionário mora ao lado, do pesquisador americano Thomas
Stanley. O objetivo anunciado do livro é pesquisar e retratar a personalidade do milionário. Embora
a orelha descreva como “surpreendentes” suas conclusões, na verdade elas não são. O milionário
típico, revela Stanley, é disciplinado e determinado, esperto mas não necessariamente intelectual, e
ugal a ponto de ser pão-duro. O milionário mora ao lado, afirmam seus editores, “destruiu um dos
mitos mais estabelecidos da América contemporânea: que os ricos pertencem a um grupo de elite
altamente educado e extremamente sortudo, que em geral herdou seu dinheiro e o gasta em
compras caríssimas e estilos de vida mimados”. O pressuposto permanente — e, por certo, a
explicação para o sucesso comercial do livro — é que se você também fosse disciplinado, esperto e
ugal, poderia igualmente ganhar 1 milhão. Tirando que, sabendo o que sabemos sobre o viés do
sobrevivente, esse raciocínio não fica de pé. A julgar pelo relato do próprio Stanley sobre sua

pesquisa, ele não passou tempo algum estudando as personalidades daqueles que tentaram mas não
conseguiram se tornar milionários, ou aqueles a quem nunca ocorreu essa ideia (para ser justo, ele
chega a mencionar pessoas que fizeram fortuna, mas não conseguiram mantêla). Assim, ele tem
pouca base para concluir que a ugalidade ou a disciplina — ou qualquer outra característica — seja
parte da receita para se tornar um milionário. Outras pessoas, igualmente ugais ou disciplinadas,
podem nunca ter chegado nem perto da “milionariedade”.
“Suponha que você vai estudar diretores de empresas bem-sucedidos e descobre que todos
eles escovam os dentes”, disse-me Denrell. “Bom, você sabe que essa não é uma característica
exclusiva dos diretores de empresas, porque todo mundo escova os dentes. Você sabe disso porque
você também escova os dentes. Por isso, você descarta esse detalhe. Mas digamos que eles possuam
alguma característica estranha, que você não conheça direito. Bom, vai lhe parecer que é essa alguma
coisa que explica o sucesso deles. Afinal, parece fazer sentido.” E intuitivamente parece correto focar
nos bem-sucedidos, e não nos que acassaram: “Se você quer aprender a voar, você vai olhar para os
pássaros, e não para as baratas”. Mas focar apenas no sucesso nos leva para um caminho totalmente
errado.
Uma das consequências mais peculiares do viés do sobrevivente é que ele lança dúvida não
apenas sobre o trabalho dos acadêmicos que estudam o sucesso, mas sobre as explicações que os
bem-sucedidos dão para suas próprias conquistas, mesmo acreditando sinceramente nelas. As
livrarias estão abarrotadas de autobiografias dando conselhos, como a que foi lançada em 2006 pelo
editor multimilionário Felix Dennis, intitulada Fique Rico! Você pode!: Um caminho verdadeiro e
alternativo para alcançar o sucesso financeiro. O livro de Dennis é muito menos chato que a maioria
das obras do gênero, graças, em parte, ao senso de humor surpreendente do autor a respeito de
possuir 700 milhões de libras, e sua bem-vinda anqueza a respeito do quanto aprecia os iates, as
férias no Caribe e a comida estrelada no Michelin que seu estilo de vida lhe proporciona. Mesmo
assim, apesar da gabolice, a mensagem do livro é semelhante à de muitos outros: para fazer fortuna,
você precisa de obstinação, não pode se importar com o que os outros acham de você e deve estar
disposto a correr riscos. Essas qualidades, sugere Dennis, fizeram dele o que ele é. Ao que Jerker
Denrell poderia retrucar: como ele pode saber? Dennis, obviamente, viveu apenas a vida dele, e não
tem a experiência de uma vida alternativa que tenha acabado em acasso financeiro para efeito de
comparação. Talvez milhares de outras pessoas tenham mostrado a mesma determinação, a mesma
cara de pau, e não tenham chegado a lugar nenhum. Talvez não. Talvez a ascensão de Dennis se deva
a mera sorte ou a algum outro traço de caráter, e ele tenha chegado lá apesar de sua teimosia ou
gosto pelo risco. Seu autodiagnóstico pode estar correto, é claro; só que ele não é necessariamente
a pessoa em melhor posição para afirmar.
O foco de Dennis na tomada de riscos levanta um ponto a mais: a disposição de acassar, em si,
é um dos traços de caráter que tendemos a supervalorizar, como resultado do viés do sobrevivente.
Esse é o problema de lições como aquelas de Richard Branson, que escreve: “Não ter medo do acasso,
acredito eu, é uma das qualidades mais importantes de um campeão”. Ele pode ter razão a respeito
da importância de não temer o acasso. Porém, insisto, você não ouve discursos ou lê autobiografias
de pessoas que não tiveram medo do acasso e então simplesmente acassaram. A disposição para

acassar pode não ter relação alguma com o sucesso; em vez disso, como afirma Denrell, a disposição
para cortejar o acasso assumindo riscos elevados pode ter relação tanto com o grande sucesso
quanto com o grande acasso. Afinal de contas, por definição, “risco elevado” inclui uma
probabilidade significativa de que as coisas deem errado.
Uma lição paralela emerge da pesquisa de Denrell com analistas da imprensa que fazem
previsões sobre o futuro da economia. Denrell e sua colega Christina Fang concluíram que aqueles
que fizeram as previsões mais radicais, que dão boas manchetes, tinham a mesma probabilidade de
errar espetacularmente quanto de acertar espetacularmente. Eles não faziam previsões melhores;
eles faziam previsões mais arriscadas — enquanto a imprensa, que trombeteava essas previsões e as
louvava quando eram confirmadas pelos acontecimentos, raramente reexaminava as previsões
erradas. Isso é algo que você deve levar em conta antes de confiar nesses analistas na hora de decidir
onde investir seu dinheiro.
Vale a pena ter em mente, além disso, que quase todo conselho sobre como ter sucesso, na
vida ou no trabalho, corre o risco constante de ser solapado pelo viés do sobrevivente. É tão comum
ignorarmos ou fugirmos do acasso que raramente paramos para pensar em todas as pessoas que
podem ter seguido um determinado conjunto de instruções para a felicidade ou o sucesso —
inclusive as apresentadas nestas páginas — e então acassaram no esforço para atingir esse resultado.

Acho que é um bom momento para lhe falar do meu piolho pubiano.
Eu comprei o piolho — um só, embora fosse excepcionalmente grande — em fevereiro de
2001, em Greenwich, a leste de Londres, no Millennium Dome, o famoso monumento que a GrãBretanha ergueu para comemorar a chegada do ano 2000. A famigerada história do Dome é uma
sequência de acassos: uma catástrofe financeira, um desastre em termos de número de visitantes e
a sentença de morte da carreira de vários políticos importantes. No começo de 2001, terminou a
Experiência do Milênio, uma exposição que ocupara ao longo de todo o ano anterior a tenda de 365
metros de largura. O jornal onde eu trabalhava me enviou para testemunhar o leilão dos objetos do
Dome, uma forma de seus já então falidos operadores recuperarem uma parte dos milhões que
haviam perdido. Meus patrões me deram cem libras de verba para comprar alguma coisa, em nome
do jornalismo de entretenimento. O dinheiro de verdade, claramente, seria gasto na compra dos
computadores da empresa, dos sistemas de iluminação de última geração e do equipamento de
restaurante, mas todo o resto estava à venda — inclusive os itens da exposição que havia ocupado
as catorze “zonas” do Dome, dedicadas a temas como Corpo, Mente, Fé, Trabalho, Dinheiro e
Diversão. A Zona do Corpo era uma réplica gigante do corpo humano — maior, como cansaram de
dizer, que a Estátua da Liberdade —, por dentro da qual os visitantes (em número insuficiente)
podiam caminhar. Corajosamente, negando-se a recuar diante das realidades intragáveis do assunto,
os projetistas do corpo o equiparam com vários piolhos pubianos mecânicos. Com minhas cem libras,
eu comprei um. Os demais foram para um comerciante de antiguidades de Surrey, que me disse que
queria usá-los para assustar a mulher e os filhos. Todo homem precisa de um hobby.

Um funcionário do Dome chamado Geoff veio me ajudar a tirar meu piolho do almoxarifado.
“É meio triste, na verdade”, disse ele, com o que parecia ser emoção genuína. “Eu trabalhei com esse
cara.” Tirei a criatura da mesa de despacho, como exigido, onde outra empregada a pegou para mim
e me deu um pedaço de papel. Eu só poderia levá-la das instalações, ela explicou, depois do final do
leilão, dali a alguns dias. Regras são regras.
Voltei para a redação, sem piolho e pensativo. O leilão soava como uma admissão pública da
derrota do Dome, e, portanto, um final apropriado para toda aquela saga: triste, mas também
engraçado e, acima de tudo, adequado. Talvez a triste história do Dome seja mais bem resumida por
Dan Howland, um especialista em feiras e parques de diversões, que a contou da seguinte forma em
uma monografia intitulada Dome and Domer:
Desde o instante em que abriu, ficou claro que o Millennium Dome seria um dos maiores e
mais espetaculares acassos da história das exposições. Era impopular tanto com a imprensa
quanto com o público, inacessível, mal concebido, mal planejado, mal administrado, e de
maneira geral simplesmente chato. Tanto dinheiro foi gasto no Dome, e tanto a mais foi
desperdiçado à medida que o desastre continuava, que a carreira do primeiro-ministro
trabalhista Tony Blair chegou a balançar, enquanto as de outros líderes trabalhistas ficaram
em angalhos. A história do Millennium Dome é uma parábola de erros bem-intencionados,
um projeto ruim, arrogância, estupidez, ganância, corrupção — mas, acima de tudo, é a
história de algo tão monumentalmente horroroso que adquire uma espécie de grandeza
involuntária.
Não é preciso repisar cada um desses equívocos. Entre os pontos mais baixos esteve a
cerimônia de abertura do réveillon de 1999, quando milhares de convidados, incluindo políticos
influentes e editores de jornais de distribuição nacional foram obrigados a tremer de io, ao ar livre,
durante horas, para passar por um número absolutamente insuficiente de detectores de metais; a
ameaça de bomba que quase levou à evacuação do prédio naquela noite; e a tentativa de assalto,
meses depois, em que uma equipe de ladrões usou uma pá escavadora para entrar e chegou perto
de roubar o segundo maior diamante perfeito do mundo, que eles acreditavam estar ali dentro
(tecnicamente, este não conta como um ponto baixo para o Dome, já que o assalto foi desbaratado;
um informante alertou a polícia, que substituiu um diamante por uma réplica e ficou à espreita). Os
problemas tinham começado muito antes, porém: nos anos que antecederam o milênio, muitos dos
principais funcionários e consultores do projeto pediram demissão, e vários diretores foram
mandados embora. Um deles, depois, contaria a uma comissão parlamentar que gente do alto
escalão do Dome chegou à beira de um colapso de nervos à medida que o ano 2000 se aproximava,
forçando-o a contratar uma equipe de consultores. Ficamos sabendo que o Dome era tão grande que
cabiam dentro dele 18 mil ônibus londrinos de dois andares. Mas o consenso entre os analistas
parecia ser que encomendar uma grande quantidade de ônibus de dois andares teria sido um uso
muito melhor para os 8 milhões de libras que o projeto engoliu.

O Millennium Dome, em outras palavras, dificilmente poderia ter sido uma catástrofe maior.
E, no entanto, ele ilustrou o extraordinário poder do acasso para unir as pessoas. O clima no leilão
era surpreendentemente cordial — refletindo não apenas o espírito irônico dos jornalistas, mas uma
atitude que parecia ter acompanhado a história do Dome desde o comecinho: uma espécie de
afeição popular que adotou o empreendimento em toda a sua inviabilidade. “É um souvenir de um
desastre nacional”, um participante do leilão me contou, explicando sua presença ali. “Fazer isso é
very British, não é?” Nos meses que sucederam o leilão, enquanto políticos e analistas debatiam o
que devia ser feito do domo agora vazio, o colunista Ros Coward capturou com precisão o carinho
ambíguo dos britânicos pelo acasso do domo. Não era apenas o gozo pela infelicidade alheia, mas
também um orgulho perverso de pertencer à nação do fracasso do domo:
O Dome tem uma marca evidente, e essa marca se chama Desastre. Parece estar escrito que
será explorado como uma grande loucura, um emblema de trapalhadas, exageros e completa
loucura, com enorme potencial para nos divertir. Passamos a gostar do edifício que amamos
odiar, a grande loucura, com toda a diversão que nos proporcionou, passando da crise ao
desastre. Alguma coisa nele toca a alma britânica. Somos bons de desastres, de não nos
levarmos a sério e de nos deliciarmos quando as coisas dão estúpida e maravilhosamente
errado. Essa é a chave de seu futuro. O Dome precisa se tornar um museu de desastres e
loucuras, uma história de projetos condenados ou acidentes infelizes.
Isso nunca ocorreu, é claro. Hoje em dia, o Dome é a O2 Arena, uma sala de espetáculos que
ocasionalmente abriga seminários motivacionais do tamanho de estádios.
Alguns dias depois do leilão, voltei a Greenwich para buscar meu piolho pubiano, mas ele tinha
desaparecido. O funcionário que me ajudou a procurá-lo pediu desculpas, mas não estava surpreso.
Até ao tentar se desfazer de seu conteúdo, o Dome se mostrou um acasso. Nos anos seguintes, recebi
cartas esporádicas dos auditores da PricewaterhouseCoopers, que estavam administrando a massa
falida, dando a entender que um dia — supostamente depois que credores mais importantes
tivessem sido ressarcidos — eu receberia de volta as cem libras do meu jornal.
Estou esperando até hoje.

Essa quase aceitação do acasso, como sugere Coward, é algo que os britânicos adoram ver
como algo distintamente britânico. Nós celebramos o esforço acassado e mortal do capitão Scott
para se tornar o primeiro a alcançar o polo Sul; nós valorizamos mais o espírito da evacuação de
Dunquerque que a vitória na guerra. “A todos aqueles que escreveram livros horrorosos sobre o
sucesso, dedico este livro horroroso sobre como não há absolutamente nada de errado em ser
incompetente […] porque eu sou, e todo mundo que eu conheço também é”, escreveu o jornalista
(britânico) Stephen Pile em seu best-seller (na Grã-Bretanha), de 1979,
.
Para os cidadãos dos Estados Unidos, país voltado para o sucesso, o gosto pelo acasso pode parecer

uma excentricidade da Europa em geral, atribuída equentemente ao fim dos impérios coloniais. O
jornalista Neil Steinberg escreveu:
Refletir sobre o acasso não é uma atividade particularmente americana. Certo, é popular na
Europa, onde todo país, em algum momento, teve um momento de grandeza, e acabou por
desperdiçá-la sufocando-a em palácios monstruosos, folheados a ouro, e encomendando
dúzias de ovos Fabergé cravejados de joias. A Inglaterra teve seu império; a Espanha, sua
Armada; a França, seu Napoleão; a Alemanha, seu zênite indizível. Até a Bélgica teve seu
momento de glória — embora, é bem verdade, as coisas não tenham sido as mesmas depois
da morte de Carlos, o Audaz, em 1447. Para essas nações, lembrar e analisar amargamente a
grandeza é [praticamente] a única conexão com ela que lhes resta. Por que você acha que eles
têm todos aqueles bares e cafés ao ar livre?
Mas não devemos desprezar a aceitação do acasso como uma peculiaridade específica de uma
cultura; no contexto do “caminho negativo” para a felicidade, há mais a ser dito. Já vimos como uma
disposição para acassar, e analisar os acassos do passado, pode ser crucial para compreender as
conquistas e o sucesso. Mas uma possibilidade muito mais profundamente antiintuitiva é de que seja
possível encontrar a felicidade aceitando o acasso como acasso, e não apenas como um caminho
para o sucesso — que acolhê-lo pode fazer você se sentir melhor do que lutando perpetuamente
para evitá-lo.
No acasso há abertura e anqueza, um con onto “pé no chão” com a realidade que faz falta nas
elevadas altitudes do sucesso. Para obter uma conquista impressionante — como poderia ter
ocorrido caso o Dome tivesse se tornado, como previu Tony Blair, “um farol para o mundo” — é
necessário erguer uma espécie de barreira entre você mesmo e todo mundo. Impressionarse com
alguma coisa, por sua vez, pressupõe sentir-se em presença de algo diferente de você, e melhor que
você. Em compensação, o acasso derruba essas onteiras, ao demonstrar como são falíveis aqueles
que poderiam se apresentar como imunes à derrota. Ele traz as pessoas de volta a suas dimensões
humanas. A vulnerabilidade revelada pelo acasso pode alimentar a empatia e o senso de comunhão.
Você se sente mais ou menos ligado aos responsáveis pelo Dome quando fica sabendo que eles
estiveram à beira de um ataque de nervos? A resposta, obviamente, é sim. Se o Dome tivesse sido
um sucesso triunfal, seria impensável que um repórter tivesse as conversas que me peguei tendo
com seus funcionários, que poderiam ter sido prudentes e reservados, instruídos a não falar com a
imprensa exceto se fosse para promover a empresa. “Suponho que seja saudável psicologicamente”,
disse um segurança, que estava vigiando quatro manequins de tamanho real, vestidos com roupas
cirúrgicas e que acabariam vendidos por 320 libras. “Chegamos ao enterro, sepultamos o corpo e
estamos de luto.” O fracasso é um alívio. Pelo menos você pode dizer o que pensa.
Mesmo assim, pode ser incrivelmente difícil adotar essa atitude em relação a seus próprios
acassos. Como sugere o conceito de “metodiceia” de Christopher Kayes, com excessiva equência nós
transformamos nossas metas em parte de nossa identidade, de tal forma que o acasso se torna um
ataque a quem somos nós. Ou, na visão de Albert Ellis, nós nos decidimos por um determinado

desfecho — ser feliz no casamento, realizar-se no trabalho — e o erigimos em algo que achamos ter
que alcançar, de modo que o acasso se torna não apenas triste, mas catastrófico. Usando a
terminologia budista do apego e desapego, nós nos apegamos ao sucesso.
Todas essas formas contraproducentes de pensar no fracasso se manifestam de maneira mais
aguda no fenômeno do perfeccionismo. Ele é uma das características que muitas pessoas parecem
ter orgulho de possuir, em segredo e às vezes nem tanto em segredo, já que nem parece um defeito
— e, no entanto, o perfeccionismo, no fundo, é um esforço guiado pelo medo para evitar a todo
custo a experiência do acasso. Quando levado ao extremo, é uma forma de viver cansativa e
permanentemente estressado (pesquisas mostram que há mais correlação entre o perfeccionismo e
o suicídio do que entre sentimentos de desespero e o suicídio). Assumir integralmente a experiência
do acasso, em vez de meramente tolerá-la como um passo na rota do sucesso, é abandonar essa luta
constante para nunca dar um passo em falso. É relaxar. A zen-budista americana Natalie Goldberg
escreveu: “A queda nos traz para o chão, de cara para o que há de essencial, as coisas como elas são,
sem maquiagem. O sucesso não pode durar para sempre. O tempo acaba para todos”. Ela prossegue:
“As realizações nos solidificam. Acreditando sermos invencíveis, queremos mais e mais”. Para ver e
sentir as coisas como elas são, “temos de cair. Só então podemos passar a um ‘eu’ mais autêntico. O
zen transmite seu legado desse lugar mais profundo. É um tipo diferente de acasso: o Grande
Fracasso, uma rendição incondicional. Nada a que se prender, e nada a perder”.
Felizmente, é possível cultivar parte dessa atitude em relação ao acasso sem atingir a altitude
rarefeita da iluminação budista. O trabalho da psicóloga Carol Dweck, da Universidade de Stanford,
indica que nossas experiências com o acasso são esmagadoramente influenciadas por nossas
convicções implícitas sobre a natureza do talento e da habilidade — e que podemos, talvez até com
certa facilidade, forçar nós mesmos a avançar em direção a uma situação mais saudável.
Dweck alega que cada um de nós pode ser situado em uma escala, conforme nossa “visão
interior” — ou atitude não declarada — em relação à definição de talento, e de onde ele vem.
Aqueles com uma “teoria fixa” pressupõem que as habilidades são inatas; aqueles com uma “teoria
incremental” acreditam que as habilidades evoluem por meio de desafios e trabalho duro. Se você é
o tipo de pessoa que luta com todas as forças para evitar a experiência do acasso, é provável que
você se situe perto da extremidade “fixa” da escala de Dweck. Os adeptos da “teoria fixa” tendem a
encarar os desafios como ocasiões em que são chamados a demonstrar suas habilidades inatas. Por
isso, veem o fracasso como algo particularmente terrível: para eles, é um sinal de que tentaram
mostrar o quanto seriam bons, mas não estiveram à altura. O exemplo clássico de uma pessoa de
“teoria fixa” é o jovem astro do esporte que é levado a pensar em si mesmo como um “talento
natural” — mas que deixa, então, de treinar o suficiente para realizar seu potencial. Afinal de contas,
esse é seu raciocínio não declarado, se o talento é inato, por que se preocupar?
Pessoas com a “teoria incremental” são diferentes. Como elas veem as habilidades como
oriundas de desafios a ultrapassar, a experiência do acasso tem um significado completamente
diferente para elas: é a evidência de que estão chegando a seus limites atuais. Se não estivessem,
não acassariam. A analogia relevante, aqui, é com a musculação; os músculos crescem quando são

levados até o limite de sua capacidade atual, fazendo as fibras se romperem e se regenerarem. Entre
os halterofilistas, “treinar até o acasso” não é uma admissão de derrota — é uma estratégia.
Felizmente, os estudos de Dweck indicam que não estamos condenados a ter apenas um jeito
de ver as coisas na vida. Pode parecer confuso, mas a visão “fixa” não é, em si mesmo, fixa, mas pode
ser levada na direção da extremidade “incremental” da escala. Algumas pessoas conseguem alterar
sua forma de ver as coisas simplesmente sendo apresentadas à distinção entre “fixa” e
“incremental”. Também pode ser bom lembrar-se dela quando ocorre o acasso: da próxima vez que
você levar bomba em uma prova, ou lidar mal com uma situação social, pense que isso só está
ocorrendo porque você esticou até o limite a sua habilidade atual — e assim, no longo prazo, você
está fazendo avançar esse limite. Dweck aconselha, caso você queira incentivar em seus filhos a visão
incremental em vez da fixa, que você os elogie pelo esforço, e não pela inteligência. Focar neste
último vai provavelmente exacerbar a visão fixa, tornando-os mais relutantes a se arriscar a
encontrar o acasso no futuro. A visão incremental é a que tem mais chances de levar ao sucesso —
mas um argumento mais profundo é que possuir uma visão incremental torna a pessoa mais feliz,
mesmo que nunca resulte em qualquer sucesso particularmente notável. Isso permite que você
abandone a luta estressante e cansativa do perfeccionismo. É uma proposta sem risco de derrota: a
única precondição é uma disposição genuína para perder.
É interessante notar que no passado talvez tenhamos sido muito mais capazes de pensar no
acasso dessa forma. O historiador Scott Sandage afirma que antes do século XIX era raro ouvir a
palavra “ acasso” em relação a um indivíduo. Certos empreendimentos, como uma candidatura
eleitoral ou a abertura de uma empresa, podiam revelar-se acassos, mas dizia-se que o indivíduo por
trás desse esforço tinha “feito um acasso”, e não “sido um acasso”. Fazer um acasso podia ser
deprimente, sem dúvida, e até catastrófico em alguns casos. Mas não era uma condenação de uma
vida inteira em todos os aspectos.
No trabalho de pesquisa para seu fascinante livro Born Losers [Perdedores natos], Sandage
teve que bolar formas criativas de driblar o viés do sobrevivente, que faz com que apenas histórias
de sucesso cheguem aos arquivos históricos. Ele teve a ideia esperta de usar as cartas com pedidos
enviadas ao magnata do petróleo John D. Rockefeller no final do século XIX. Esmiuçar essas e outras
fontes reforçou a impressão de Sandage de que a ideia de que uma pessoa podia ser “um acasso”
nasceu diretamente do crescimento do capitalismo empresarial nesse período. Um desdobramento
crucial, para ele, foi o surgimento das agências de classificação de crédito, cujo papel era estabelecer
juízos a respeito de indivíduos em busca de empréstimos bancários. Isso ajudava os bancos a
determinar o risco que estariam assumindo ao conceder o empréstimo. Em uma sociedade cada vez
mais dominada pelos negócios, tornou-se fácil encarar uma nota de crédito baixa como um veredicto
condenando integralmente uma pessoa — e Sandage observa que várias expressões modernas para
se referir ao valor moral de alguém vêm da linguagem da classificação de crédito, como “imprestável”
e “de primeira linha”. O acasso, segundo ele, foi transformado de uma pedra no caminho da vida
para o lugar onde “a história acaba”. De meados do século XIX em diante, começou-se a pensar no
acasso “não apenas [como] um cataclismo que faz parte da história da sua vida, mas [como] algo que
congela sua vida, porque você perde o senso de futuro”. Em suma, o acasso passou a ser visto como

uma forma de morte. A mensagem dos defensores mais radicais da aceitação do acasso, como
Natalie Goldberg, é que ele é exatamente o oposto: o caminho para uma vida muito mais
interessante, natural e vivida de forma especial.
A maioria das pessoas bem-sucedidas da maneira convencional que apregoam os benefícios
da aceitação do acasso é bem menos radical que Goldberg: elas falam apenas em aprender a tolerar
o acasso como forma de alcançar mais adiante o sucesso. Uma rara exceção é J. K. Rowling, a autora
estratosfericamente bem-sucedida dos livros de Harry Potter. Em 2008, na Universidade Harvard, ela
fez um discurso de formatura, hoje famoso, sobre o acasso. Claro, é impossível saber ao certo como
Rowling se sentiria em relação ao acasso se ele não tivesse sido sucedido, no caso dela, por um êxito
espetacular. Mas ela deu a impressão clara de que teria se sentido da mesma forma mesmo se tivesse
continuado desconhecida, pobre e não se realizasse criativamente. Suas palavras ecoam muitos
insights dos estoicos, dos budistas e de outros em relação aos benefícios da negatividade. Vale a
pena citá-los extensamente:
Acho que é justo dizer que, sob qualquer medida convencional, apenas sete anos depois da
minha formatura eu havia fracassado em proporções épicas. Meu casamento,
excepcionalmente curto, implodiu; eu estava sem emprego, mãe solteira e tão pobre quanto
é possível ser na Grã-Bretanha atual com um teto para morar. Os medos que meus pais tinham
em relação a mim, e os que eu tinha em relação a mim mesma, tinham se realizado, e sob
qualquer ponto de vista eu era o maior acasso que eu conhecia. Bom, eu não vim aqui dizer
para vocês que o fracasso é legal. Foi um período negro na minha vida, e eu não tinha a menor
ideia de que ia ocorrer o que a imprensa, de lá para cá, batizou de desfecho de conto de fadas.
Eu não tinha a menor ideia do tamanho do túnel a atravessar […]. Então por que eu estou
falando dos benefícios do acasso? Simplesmente porque acassar significa livrar-se de tudo que
não é essencial. Eu parei de fingir para mim mesma que eu era alguma outra coisa a não ser
eu mesma, e comecei a direcionar toda a minha energia a finalizar o único trabalho que me
importava […]. Eu me libertei, porque meu maior medo tinha se tornado realidade, e eu ainda
estava viva. [O acasso] me deu uma segurança interior que eu nunca tivera ao passar em
concursos […]. Essa sabedoria é um verdadeiro dom, por toda a dor que se passa para obtêla, e valeu mais do que qualquer diploma que eu já havia obtido.
8. Memento mori
A morte como estilo de vida

Se eu pudesse viver de novo, teria adquirido o hábito de me acostumar a pensar na morte.
Eu treinaria, se pudesse, a lembrança da morte […]. Sem sentir a presença constante da morte, a
vida é sem sabor. É como viver só de clara de ovo.
Inspetor Mortimer, em Memento mori, de Muriel Spark

Em um trecho das 200 mil linhas do Mahabharata, o épico espiritual indiano, o príncipe
guerreiro Yudhisthira está sendo interrogado sobre o sentido da existência por um espírito da
natureza nas margens de um lago. “Qual é a coisa mais maravilhosa deste mundo?”, quer saber o
espírito. A resposta de Yudhisthira tornou-se um dos versos mais conhecidos do poema: “A coisa
mais maravilhosa neste mundo é que, a cada momento, inumeráveis seres vivos morrem, mas,
apesar disso, o homem ainda se julga imortal”.
Maravilhosa é uma boa forma de defini-la. Vimos várias vezes como não basta, para eliminar
determinados pensamentos ou certas emoções, não querer pensar nelas ou senti-las. É por isso que
ninguém ganha o “desafio do ursopolar” de Daniel Wegner, e é por isso que as ases de autoajuda
muitas vezes fazem as pessoas se sentirem pior, e é por isso que encarar a pior hipótese é quase
sempre preferível a fingir que ela não pode acontecer. Mas a mortalidade parece uma exceção
desconcertante a essa regra. A morte está em toda parte, inevitável, e singularmente assustadora.
No entanto, enquanto ela não nos atinge diretamente — por meio de um luto recente, ou de uma
doença potencialmente fatal, ou um acidente ao qual quase não sobrevivemos —, muitos de nós
conseguimos evitar quaisquer pensamentos sobre nossa própria mortalidade durante meses ou até
anos a fio. Quanto mais se reflete sobre isso, mais estranho nos parece. Somos perfeitamente
capazes de sentir profunda autocompaixão a respeito de problemas bem menores, em casa ou no
trabalho, todos os dias. Mas o maior dos problemas, a maior parte do tempo, não nos preocupa
conscientemente. Freud escreveu — genericamente, como de costume, mas neste caso de forma
convincente: “Ninguém acredita na própria morte”.
Esse descaso aparente diante da mortalidade parece ainda mais estranho à luz do fato de que
nós falamos sobre a morte, o tempo todo, mas como se nunca estivéssemos realmente falando dela.
Quem lê essas reportagens com listas de “cem coisas para fazer antes de morrer” — lugares para
viajar, comidas para experimentar, CDs para ouvir — e presta alguma atenção na parte do “antes de
morrer”? Se você prestasse, sua reação bem poderia ser um grito de desespero existencial: “Por que
me importar, se eu vou morrer mesmo no fim?”. (E nem é preciso dizer que o desespero existencial
não é a reação que o editor da revista, em geral, quer despertar em seus leitores.) Contos de ficção
sobre assassinatos nos atraem, mas o “assassinato” em um mistério policial raramente tem algo a
ver com a realidade da morte. Até as mortes reais, nas reportagens, podem provocar horror, simpatia
ou indignação sem jamais levar o leitor a refletir que o mesmo destino essencial, dentro de no
máximo algumas décadas, também o aguarda. A ideia de pensar voluntariamente na própria
mortalidade, no sentido pessoal, como assunto da conversa cotidiana, nos soa ridícula — uma piada
em que se baseia, por exemplo, boa parte do humor do filme A última noite de Boris Grushenko,
dirigido por Woody Allen, em 1975:

BORIS: O nada. A não existência. O vazio negro.
SONJA: O que você disse?
BORIS: Oh, eu estava só planejando meu futuro.
Uma das explicações mais convincentes para esse quebra-cabeça psicológico é proposta em
1973 por Ernest Becker, em sua obra-prima A negação da morte (outro personagem de Woody Allen
obcecado pela morte, Alvy Singer, usa um exemplar para cortejar Annie Hall, a heroína de Noivo
neurótico, noiva nervosa). Becker nasceu em Massachusetts, em 1924, e como recruta deparou com
a pior realidade da morte ainda na juventude, ajudando a libertar um campo de concentração nazista
aos 21 anos. Para Becker, a falta de uma reflexão séria sobre nossa mortalidade não é um acidente
ou um lapso: é exatamente porque a morte é tão terrível e significativa, afirma ele, que não pensamos
nela. Seu livro começa assim: “A ideia da morte, ou o medo dela, assombra o animal humano mais
do que tudo”. Mas a consequência disso é que dedicamos nossa vida a suprimir esse medo, erguendo
enormes fortalezas psicológicas para evitar encará-lo. De fato, uma enorme proporção de toda a
atividade humana, na visão de Becker, é “criada, em grande parte, para evitar a fatalidade da morte,
para superá-la negando, de certa maneira, que ela seja o destino final do homem”.
Ele explica que somos capazes de sustentar essa negação porque possuímos tanto um eu físico
quanto um eu simbólico. E embora seja inevitável que o eu físico pereça, o eu simbólico — aquele
que existe em nossa mente — é perfeitamente capaz de se convencer de que é imortal. Em toda
parte, em torno de nós, há evidências; na verdade, isso é tão onipresente que nem percebemos. Na
visão de Becker, todas as religiões, todos os movimentos políticos e as identidades nacionais, todos
os empreendimentos de negócios, toda a atividade caritativa e toda busca artística não passam de
“projetos de imortalidade”, esforços desesperados para se livrar da atração gravitacional da morte.
Almejamos pensar em nós mesmos não como humanos mortais, mas como “heróis” imortais. A
própria sociedade é, na essência, um “sistema de heróis codificado” — uma estrutura de costumes,
tradições e leis que criamos para nos ajudar a nos sentirmos parte de alguma coisa maior, e mais
duradoura, que uma mera vida humana. Graças a nossa capacidade de criar símbolos, escreve ele,
“o organismo singular pode se expandir em dimensões de mundos e tempo sem mover um membro
físico; ele pode tomar a eternidade para dentro de si, mesmo quando está morrendo sem ar”. Desse
ponto de vista, não são apenas as pessoas religiosas convencionais que dependem da ideia de uma
vida após a morte. Inconscientemente, todas as pessoas normais fazem isso — e “toda sociedade é,
assim, uma ‘religião’, quer pense assim ou não”. Para Becker, a doença mental é um mau
funcionamento da aparelhagem interna de negação da morte. Pessoas com depressão estão
deprimidas porque, mesmo tentando o tempo todo, não conseguem se escudar, como fazem os
demais, da verdade de que não são, na verdade, heróis cosmicamente significativos — e que logo
vão morrer.
Projetos de imortalidade podem ser a razão de muitas coisas boas — grande arquitetura,
grande literatura, grandes atos de filantropia, grandes civilizações —, mas na visão de Becker
também são, simultaneamente, a causa das piores coisas. Nossa ânsia de nos sentirmos heróis é

indiscriminada: ela ajuda a explicar por que competimos no esporte, na política ou no comércio, mas
também por que fazemos guerras. As guerras representam o derradeiro con onto de projetos de
imortalidade concorrentes: se meu senso de imortalidade depende do triunfo de minha nação, e o
seu da sua, vamos lutar por mais tempo, e com mais força, que se estivermos apenas em busca de
território ou poder. O filósofo Sam Keen escreveu, parafraseando Becker: “Matar, nos negócios ou
no campo de batalha, constantemente tem menos a ver com a necessidade econômica ou a realidade
política do que com a necessidade de termos certeza de que alcançamos algo de valor durável […].
[Os conflitos humanos] são lutas de vida ou morte — meu deus contra os seus deuses, meu projeto
de imortalidade contra o seu projeto de imortalidade”. Em outras palavras, lutaremos tanto para
preservar nossa imortalidade simbólica que sacrificaremos nossa vida física. Para negar a morte,
morreremos. Pior, até: negaremos que é isso que estamos fazendo, até o ponto em que não
pudermos mais negá-lo. “Uma das principais razões da facilidade com que os homens marcham para
a guerra”, observa Becker, sombriamente, “é que no fundo cada um deles sente pena do homem ao
lado dele, que vai morrer. Cada um se
protege nessa fantasia até o choque de se ver sangrando.”
Se Becker tiver razão, o fato “maravilhoso” de que nos comportamos como se fôssemos
imortais não é tão maravilhoso assim. Você não deixa de pensar na imortalidade. Em vez disso, sua
vida é uma tentativa incessante de evitar fazê-lo — uma luta tão elementar que, ao contrário do caso
do “desafio do urso-polar”, na maior parte do tempo você consegue.
Alguns anos depois da transformação de A negação da morte num best-seller, vários
psicólogos experimentalistas perceberam que as conjecturas de Becker (por mais poderosas que
fossem, eram apenas conjecturas) poderiam ser facilmente submetidas a um teste mais científico.
Se Becker tiver razão ao dizer que passamos a vida inteira tentando ativa, mas subconscientemente,
fugir dos pensamentos sobre a própria morte, conclui-se que ao lembrar alguém da própria
mortalidade, explicitamente — ou se, no jargão das experiências psicológicas, “preparar” alguém
para pensar nela —, essa pessoa instintivamente reagiria agarrando-se com ainda mais força a suas
crenças e comportamentos negadores da morte. Essa é a hipótese subjacente de um campo
apropriadamente chamado de “teoria da gestão do terror”, que nos últimos vinte anos gerou
diversos exemplos convincentes de até que ponto a negação da morte nos afeta.
Outro conjunto típico de experiências de gestão do terror, em 2003, na Universidade Rutgers,
em New Jersey, desenrolou-se da seguinte forma: inicialmente, contou-se aos participantes uma
falsa história para explicar como eles tinham sido escolhidos — informou-se que o estudo abordava
“a relação entre atributos de personalidade e opiniões sobre questões sociais”. Não se mencionou a
mortalidade. Em seguida pediu-se que preenchessem questionários extensos e na maior parte
banais, idênticos para todos os participantes, à exceção de duas perguntas específicas. Uma parte
dos pesquisados respondeu perguntas sobre algo também trivial: seus hábitos como
telespectadores. Para os outros — descritos como o grupo da “saliência da mortalidade” — as
perguntas se concentravam na morte. Uma delas era: “Por favor, descreva em poucas palavras as
emoções que o pensamento na própria morte desperta em você”. A outra pedia ao participante:

“Anote, o mais detalhadamente possível, o que acha que lhe acontecerá quando você morrer
fisicamente, e depois que você estiver fisicamente morto”.
Em seguida vinha um segundo exercício, que era o verdadeiro objetivo do estudo: pedia-se aos
participantes que lessem um artigo curto fortemente a favor da política externa de George W. Bush
e decidissem até que ponto concordavam com o texto. O artigo dizia: “Pessoalmente, eu apoio os
atos do presidente Bush e dos integrantes de seu governo, que tomaram atitudes corajosas no
Iraque. Eu aprecio a sabedoria de nosso presidente em relação à necessidade de tirar do poder
Saddam Hussein […]. Precisamos ficar ao lado de nosso presidente e não nos deixar distrair por
cidadãos que não são patriotas”.
Repetidas vezes, nas experiências de gestão do terror, gente que foi levada à condição da
“saliência da mortalidade” — levada a pensar na morte — demonstra atitudes fortemente diferentes
em relação àqueles que não o foram. Suas respostas às perguntas reforçam a hipótese de que elas
estão se agarrando a seus projetos de imortalidade com muito mais força que de costume, em reação
contrária à lembrança de que vão morrer. Os cristãos mostram mais negatividade em relação aos
judeus. Os conservadores se tornam mais conservadores. Onde há dinheiro no meio, as pessoas se
tornam menos dispostas a partilhar ou confiar, e mais ansiosas a proteger quaisquer riquezas que
possuam. Em Rutgers, em 2003, quando perguntaram até que ponto compartilhavam as ideias do
artigo sobre o presidente Bush, as pessoas em estado de “saliência da mortalidade” ficaram
significativamente mais predispostas a apoiar o tom belicista do autor. Outros estudos mostraram
preferência semelhante, em condições de saliência da mortalidade, por personalidades autoritárias,
em detrimento daquelas “orientadas para relacionamentos”. Parece claro que Bush também se
beneficiou enormemente dos efeitos da saliência da mortalidade no mundo real. Os atentados
terroristas de Onze de Setembro teriam funcionado como uma versão radical das perguntas sobre
morte em um questionário de gestão do terror, levando todos que souberam deles ao choque da
compreensão de que também eles poderiam ir para o trabalho em uma manhã qualquer e morrer.
Escreveu Becker: “É o [medo] que torna as pessoas tão predispostas a seguir demagogos impetuosos,
de aparência forte, com dentes cerrados e falando grosso”. Líderes “que parecem talhados para livrar
o mundo dos indecisos, dos acos, dos incertos, dos maus.
Ah! Abandonar-se em favor deles — que calma, que alívio”.
A saliência da mortalidade se faz sentir de diversas outras formas, algumas delas inesperadas.
Participantes de experiências a quem se pediu para pensar na morte demonstraram reações mais
intensas de nojo em discussões sobre dejetos humanos. Eles concordam mais com ases como: “Ver
alguém vomitar me dá enjoo no estômago”. Eles são mais suscetíveis a avaliar certos cenários
hipotéticos como “muito repugnantes”, como encontrar um verme em um pedaço de carne. Os
pesquisadores alegam que essa reação mostra que os participantes estão se esforçando para se
proteger do con onto com coisas que os lembrem de sua “criaturidade” — do fato de que são mortais,
como outros animais. Um dos artigos afirma: “A repugnância [permite] ao ser humano se elevar
acima dos demais animais e, assim, defender-se da morte”. (Essa reação à mortalidade, pela lógica
de Becker, também ajuda a explicar os tabus de algumas culturas em relação à menstruação, e por
que em geral não se defeca ou se urina em público.) Quem está na condição de saliência da

mortalidade, conclui-se, também fica mais simpático à teoria criacionista do “design inteligente”,
talvez por razões parecidas: se você consegue convencer a si mesmo de que a vida não surgiu sem
sentido de um pântano primordial, é mais fácil sentir que ela tampouco acabará numa extinção sem
sentido.
Diante de tudo isso, o argumento de que poderia ser benéfico viver com uma conscientização
maior da morte no cotidiano parece, na melhor das hipóteses, impraticável. Para começo de
conversa, o argumento de Becker parece sugerir que a negação da morte está enraizada fundo
demais em nós, além de qualquer esperança de nos livrarmos dela. Além disso, se ela é a motivação
para todo tipo de conquista extraordinária do homem, por que iríamos querer fazer isso? No entanto,
desde os tempos da Grécia antiga, alguns pensadores radicais adotaram a posição de que uma vida
infundida pela consciência da própria mortalidade — como um hábito cotidiano, não apenas quando
somos forçados por encontros diretos com a morte — pode ser uma existência muito mais
proveitosa. Também é, certamente, mais autêntica. A morte é um fato da vida, por mais que
tentemos negá-la. Na verdade, o “culto do otimismo”, com seu foco na positividade a todo custo,
pode, ele próprio, ser visto como um tipo de “projeto de imortalidade” — um projeto que promete
uma antevisão da felicidade e do sucesso tão poderosa e abrangente que poderia, de certa forma,
transcender a morte. É verdade que os pensadores positivos, da boca para fora, elogiam a
consciência da mortalidade, em suas pregações sobre “viver cada dia como se fosse o último”. Mas
em geral isso é apenas um conselho motivacional, um estímulo para mexer-se, para começar a tornar
realidade suas grandes ambições. E se essas ambições, em si, não passam de outros projetos de
imortalidade, não nos aproximamos nem um pouco de viver com conscientização da morte.
O encontro de Ernest Becker com a mortalidade ocorreu tragicamente cedo:
um ano antes da publicação de A negação da morte, ele recebeu o diagnóstico de câncer do cólon,
aos 47 anos. Dois anos mais tarde, Sam Keen o visitou, literalmente no leito de morte, na ala de um
hospital de Vancouver, em um dia chuvoso de 1974. Keen foi até lá entrevistar Becker para a revista
Psychology Today. “Bem”, disse-lhe Becker, “agora você vai ter a chance de ver se eu vivi como
pensei.” Ele explicou que pediu apenas uma dose mínima de analgésicos, para continuar “limpo” em
suas interações finais com a família e na hora da morte. A negação da morte pode ter estruturado
toda a civilização humana, mas não era a forma ideal, na visão de Becker, para um indivíduo lidar
com a própria morte. “Gradual e relutantemente”, escreveria Keen tempos depois, “estamos
começando a reconhecer que o remédio amargo que [Becker] prescreve — a contemplação do horror
de nossa própria morte — é, paradoxalmente, a tintura que dá doçura à mortalidade.” A entrevista
foi publicada um mês depois do encontro, em março. Alguns dias depois, Becker morreu.

Pode ser difícil engolir a ideia de que devemos passar mais tempo contemplando a morte, mas
há alguns argumentos poderosos e pragmáticos a favor. Pense, por exemplo, na técnica estoica da
“premeditação dos males”. Sêneca diria: a morte vai ocorrer, então é preferível estar mentalmente
preparado para sua aproximação, em vez de so er o choque da súbita descoberta de sua iminência.
De qualquer forma, nossos esforços subconscientes para não pensar na morte nunca são

inteiramente bem-sucedidos: muito antes de sua própria morte se tornar uma probabilidade, você
se surpreenderá tomado pelo pânico noturno tão bem capturado por Philip Larkin no poema
“Aubade”: “Morte incansável, agora um dia mais próxima […] reluz e ressurge para dominar e
amedrontar”. É certamente melhor evitar esse terror, se possível encarando normalmente a
possibilidade.
Mas como fazer isso? A negação da morte não é um problema como os outros, que pesam
tanto sobre nós que no fim acabamos levados a encontrar uma solução para eles. Toda a questão é
que, na maior parte do tempo, nem parece um problema. Supor conscientemente que você é imortal
facilita muito a vida, enquanto você conseguir. Então, como en entar esse instinto e escolher, como
um fato da vida cotidiana, o confronto com a morte?
Resolver essa charada parece uma tarefa para alguém que tenha sido tanto filósofo quanto
psicoterapeuta. Em busca de repostas, procurei Lauren Tillinghast, mulher cujo cartão de visitas e
cujo site descrevem como “conselheira filosófica”. Ela fez parte de um movimento contemporâneo,
entre filósofos que achavam estar levando a disciplina de volta a suas raízes socráticas, como uma
prática terapêutica destinada a aliviar a alma, e não apenas um exercício acadêmico em torno de
teorias. Tillinghast até teve sua dose de teoria: publicou artigos em revistas de filosofia com títulos
como “O que é um adjetivo atributivo?” e “O senso classificatório de ‘arte’”. Mas ela também tinha
um consultório, no coração de Manhattan, uma sala clara e bem mobiliada, escondida num vetusto
edifício de escritórios que abrigava diversos terapeutas, psiquiatras e aconselhadores mais
convencionais. Ela tinha pouco mais de quarenta anos e a neutralidade treinada e amigável de uma
mulher acostumada a escutar acriticamente os problemas dos outros. Ela me serviu chá de hortelã
numa xícara de porcelana chinesa, apontou-me uma poltrona e não se mexeu quando eu lhe disse
que queria falar da morte — e, especificamente, de como se aprende a viver com mais
conscientização da própria mortalidade.
“Bem, é um tema meio vasto”, disse ela. Mas tínhamos que começar de algum jeito, e
decidimos começar com Epicuro.
O primeiro passo para tentar viver com maior conscientização da mortalidade envolve tentar
reduzir o terror provocado pelo mero pensamento na morte (se você não conseguir isso, dificilmente
irá muito mais longe). Tillinghast explicou que muitos filósofos tentaram conseguir isso por meio de
um argumento racional: se você pode se convencer de que o medo da morte é ilógico, é mais
provável que você consiga abandoná-lo. Na Grécia antiga, o filósofo Epicuro — contemporâneo de
Zenão de Cítio, o estoico original — fez uma das primeiras tentativas. Antes dele, o consenso
filosófico em relação à morte, de maneira genérica, era de que ela não era, de fato, final: o melhor
argumento para não ter medo dela é que uma vida gloriosa se seguiria, após a morte. O argumento
de Epicuro era o inverso. Se a vida não continua depois da morte, afirmou ele, é um excelente
argumento para não ter medo dela, tampouco. Diz ele: “A morte não é nada para nós, porque,
quando existimos, a morte ainda não veio; e quando ela vem, nós não existimos”. Você pode recear
morrer de forma dolorosa. Você pode temer a dor de perder outros para a morte; nosso foco, aqui,
não é na terrível dor do luto. Mas temer que você próprio esteja morto não faz sentido. A morte
representa o fim da vivência individual e, portanto, o fim de qualquer capacidade de vivenciar aquilo

que tememos. Ou, nas palavras de Einstein: “O medo da morte é o mais injustificado de todos, já que
quem está morto não corre o risco de so er um acidente”. Dessa perspectiva, o maior dos erros que
governam nossa vida acaba exposto como uma espécie de erro. É como se, em vez de imaginar a
morte, estivéssemos o tempo todo imaginando algo mais parecido com ser enterrado vivo — privado
de todos os benefícios da existência e, no entanto, ainda assim forçado a vivenciar, de alguma forma,
essa privação.
Um contra-argumento poderoso a essa posição é que nosso medo não vem do fato de
imaginarmos erradamente a morte, mas do fato de que não conseguimos imaginá-la de forma
alguma. Essa era, grosso modo, a visão de Freud sobre a questão: para ele, aquilo que chamamos de
“medo da morte” é mais uma espécie de ataque de medo diante de algo absolutamente inconcebível.
Mas, como aponta o filósofo contemporâneo Thomas Nagel, também há algo errado com esse
argumento — porque não há nada terrível por definição em relação a estados “inimagináveis”. Não
conseguimos imaginar o que é estar em um estado de sono sem sonhos, tampouco. Mas nos
rendemos a ele todas as noites, e bem poucos de nós o fazem com sentimento de terror. Nagel
escreve, irônico: “Gente avessa à morte, em geral, não é avessa à inconsciência”.
Epicuro tem um segundo argumento, ligado ao primeiro, contra o receio da morte. Ele se
tornou conhecido com o “argumento da simetria”. Por que temer o esquecimento eterno da morte,
pondera ele, se antes de nascer não lhe causou terror o esquecimento eterno — tão esquecimento
e tão eterno quanto o outro? Vladimir Nabokov abre seu livro de reminiscências Na outra margem
da memória com ases que ilustram perfeitamente esse argumento: “O berço balança diante de um
abismo, e o senso comum nos diz que nossa existência é apenas um breve clarão entre duas
eternidades de trevas. Embora ambas sejam gêmeas idênticas, o homem, como regra, encara o
abismo pré-natal com muito mais calma do que aquele para onde se dirige”. Se ainda não ter nascido
não o deixou traumatizado, parece lógico não ficar traumatizado por estar morto. Mas, é claro,
ressalva Tillinghast, “para a maioria das pessoas não é muito útil mostrar que um medo é ilógico. Isso
não o dissipa”.
Há outro problema em relação a todos esses esforços para tornar estar morto algo menos
assustador. É o seguinte: quem é que acha, antes de tudo, que estar morto é o problema? Quando
contemplamos nossa própria mortalidade pessoal, o que incomoda certamente é que vamos cessar
de estar vivos, e perder todos os benefícios de que des utamos pelo fato de estarmos vivos. “Em
geral, as pessoas não me procuram por medo do esquecimento quando morrerem”, disse Tillinghast.
“Mas a ideia de que algo que define a vida está chegando ao fim… Bem, essa é uma fonte de
ansiedade muito maior.” Claro, é verdade que você não estará por perto para vivenciar a perda
desses benefícios. Logo, pode-se dizer que não há argumentos para defender a privação. Mas, como
alega Nagel em um artigo intitulado simplesmente “Morte”, o fato de você não dever temer a morte
não significa que isso não seja ruim. Ele faz uma analogia: imagine um adulto que so eu uma lesão
cerebral severa, reduzindo-o ao estado mental de uma criança de três anos. Ele pode se sentir
perfeitamente feliz nessa nova situação, mas ninguém discordaria que algo ruim aconteceu ao adulto
que ele um dia foi. Não faz diferença se o adulto está ou não por aí. Não importa o quanto você ache

convincentes os argumentos de Epicuro contra o medo da morte, disso não se depreende que a
morte não seja ruim.
Essa distinção é fundamental, porque começa a dar sentido à ideia de que um grau maior de
conscientização da mortalidade pode ser parte da receita para a felicidade. Pois enquanto você for
aterrorizado pela ideia de sua mortalidade, não se pode esperar que você engula o “remédio
amargo” de Ernest Becker e decida voluntariamente pensar mais na própria morte. Por outro lado,
tentar abraçar a morte como uma coisa boa pareceria pedir demais a si mesmo. Não é nem
necessariamente desejável, uma vez que poderia levá-lo a dar menos valor a estar vivo. Mas chegar
a entender a morte como algo que não há motivo para temer, embora continue a ser algo ruim, por
aquilo a que ela põe fim, pode ser um meio do caminho ideal. Trata-se de um raciocínio
absolutamente pé no chão, pragmático e estoico: quanto mais você permanecer consciente da
finitude da vida, mais valor você dará a ela, e menos suscetível estará a desperdiçá-la com coisas que
o distraiam. Diz Tillinghast:
É como ir a um restaurante de primeira. Você sabe que a refeição não vai durar para sempre.
Pouco importa se é assim mesmo, ou se você acha que merece comer mais, ou se você
lamenta que a refeição não seja eterna. Acontece que essa é a refeição que lhe oferecem.
Então faria sentido, não faria? Tentar aproveitá-la o máximo possível? Concentrar-se nos
sabores? Não se deixar distrair pela irritação com o perfume exagerado da mulher na mesa ao
lado?
O psicoterapeuta Irvin Yalom, no livro
, afirma que muitos de nós temos
um medo difuso de que, no leito de morte, venhamos a lamentar como vivemos nossa vida. Lembrar
nossa mortalidade nos aproxima do ponto de vista a partir do qual pode ser feito esse juízo no leito
de morte — permitindo, assim, que vivamos nossa vida de maneira menos provável de se lamentar.
Encarar verdadeiramente nossa própria mortalidade, afirma Yalom, é passar por um despertar
— uma mudança total de perspectiva que transforma de maneira fundamental a sensação de estar
vivo. Isso não é necessariamente agradável, nem de longe. Yalom lembra a reflexão de um de seus
pacientes, uma mulher de trinta e poucos anos. Ela disse a ele: “Acho que os sentimentos mais fortes
vieram da compreensão de que quem vai morrer sou eu — e não alguma outra entidade, como EuVelhinha, ou Eu-Com-Uma-Doença-Terminal-E-ProntaPara-Morrer. Acho que eu sempre pensei na
morte meio de lado, como algo que pode acontecer, em vez de algo que vai acontecer”. Yalom insiste
que fazer essa mudança não é só uma questão de viver com mais intensidade, mas de mudar sua
relação com a vida. É uma transformação que ele descreve, tomando emprestada a terminologia do
filósofo Martin Heidegger, como sair do foco em “como as coisas são” para “o que as coisas são”:
foco no espantoso ser da existência.
Esta é a verdadeira distinção entre a consciência da mortalidade como forma de vida, por um
lado, e, pelo outro, todas essas ases feitas sobre “viver cada dia como se fosse o último”. Essas ases
podem ser motivacionais — lembretes para dedicar-se às coisas importantes, antes que seja tarde
demais. Mas Yalom se refere a uma transformação que redefine aquilo que representa as “coisas

importantes”. Tudo muda quando você encara a mortalidade de verdade, o pior, inevitável e
derradeiro cenário. “Todas as expectativas externas, todo o medo da vergonha ou do acasso… Tudo
isso fica de lado diante da morte, e resta apenas o que é verdadeiramente importante”, disse certa
vez o fundador da Apple, Steve Jobs, em um discurso rapidamente cooptado por vários gurus do
pensamento positivo, embora a verdadeira mensagem de Jobs fosse um ataque ao âmago da
mensagem deles. “Lembrar de que você vai morrer é a melhor forma que conheço de evitar a
armadilha de achar que você tem algo a perder.
Você já está nu.”
Comece a pensar assim, diz Yalom, e o círculo virtuoso já começou. Viver com mais significado
reduzirá sua ansiedade em relação à possibilidade de lamentar, no futuro, não ter vivido uma vida
com significado — o que, por sua vez, irá tirando da morte seu poder de provocar ansiedade. Nas
palavras dele, há uma relação direta entre o medo da morte e a sensação de uma vida não vivida.
Viva uma vida infundida pela consciência da própria finitude, e você pode esperar terminá-la da
maneira como Jean-Paul Sartre esperava morrer: “Em silêncio […]. Certo de que a última batida do
meu coração estaria inscrita na última página da minha obra, e que a morte estaria apenas levando
um homem morto”.
*
Depois de algum tempo me debatendo com as ideias de Becker, Epicuro, Thomas Nagel e Irvin
Yalom, decidi viajar ao México. Já fazia algum tempo que eu desconfiava que isso se tornaria
necessário, caso eu quisesse entender de verdade o papel da consciência da mortalidade na vida
cotidiana. Já tinha ouvido falar várias vezes que no México a atitude em relação à morte era
diferente. Havia o consenso de que é um dos poucos países que ainda têm a tradição viva d o
memento mori — rituais e costumes criados para incentivar a reflexão periódica sobre a mortalidade
— e, conforme várias pesquisas internacionais recentes, também é um dos países mais felizes do
mundo, talvez até o primeiro ou o segundo, conforme a medição usada. O exemplo mais famoso
dessa atitude em relação à morte é a festa anual conhecida como o Dia dos Mortos, em que os
mexicanos brindam àqueles que morreram — e à morte propriamente dita — com enormes
quantidades de tequila e pão no formato de restos mortais humanos; as pessoas erguem altares em
casa, desfilam pelas ruas das cidades, e fazem vigílias noturnas junto aos túmulos de parentes
falecidos. Mas essa forma de pensar vai mais longe que um feriado nacional a cada mês de novembro.
Como escreveu o consagrado ensaísta mexicano Octavio Paz em seu livro O labirinto da solidão: “A
palavra ‘morte’ não é pronunciada em Nova York, em Paris, em Londres, porque queima os lábios
[…]. O mexicano, em compensação, está acostumado com a morte, brinca com ela, a acaricia, a
festeja; é um de seus brinquedos favoritos e seu amor mais constante”.
Essa relação mais íntima com a morte não era tão incomum no passado. Tradições assim
remontam no mínimo à Roma antiga, onde, segundo a lenda, generais vitoriosos no campo de
batalha mandavam um escravo seguir atrás deles em desfiles pelas ruas. A tarefa do escravo era

repetir continuamente, para o general ouvir, uma advertência contra a arrogância — memento mori,
“Lembre-se de que você vai morrer”. Muito tempo depois, na Europa cristã, memento mori tornouse um componente básico das artes visuais: símbolos da morte apareciam constantemente em
naturezas-mortas, às vezes incluindo crânios que representavam o crânio do mecenas do artista. Em
relógios públicos figuravam autômatos representando a morte e, às vezes, a inscrição latina
Vulnerant omnes, ultima necat lembrava o efeito dos minutos que passam — “Cada uma [hora] fere,
e a última mata”. A motivação específica para contemplar a mortalidade é diferente de uma época
para outra, e de uma cultura para outra. Na antiguidade, tinha muito a ver com lembrar-se de
saborear a vida como ela é: uma refeição deliciosa, como aconselha Lauren Tillinghast. Para cristãos
de uma era posterior, era mais uma questão de lembrar-se de comportar-se bem, antecipando o
juízo final.
Minha maior curiosidade era me informar sobre um exemplo recente da consciência da morte
na vida cotidiana mexicana. Santa Muerte era o nome de uma nova religião (segundo seus
seguidores), ou de um culto satânico (aos olhos da Igreja Católica) que cultuava a morte
propriamente dita — a figura conhecida como La Santa Muerte, ou a Santa Morte. Esse movimento
nasceu várias décadas atrás, nos bairros mais violentos da Cidade do México, entre prostitutas,
traficantes e os mais pobres — gente que o governo mexicano e a Igreja Católica haviam esquecido.
Eles passaram a rezar para Santa Muerte buscando proteção contra a morte, ou uma morte suave,
ou às vezes a morte para seus inimigos. Como resultado da imigração, Santa Muerte espalhou-se
para algumas partes dos Estados Unidos; dizem que alguns dos empresários e políticos mais
poderosos do México têm altares secretos em casa. E embora muitos dos seguidores da Santa
Muerte sejam mexicanos obedientes à lei — que marcharam pelas ruas, protestando contra a
tentativa do governo de caracterizar o movimento como nada além de uma quadrilha —, também é
verdade que ela se tornara a religião favorita dos narcotraficantes, das impiedosas facções
criminosas de contrabando de drogas do norte do México. No maior altar do movimento, no barrio
de Tepito, na Cidade do México — onde um esqueleto em tamanho natural, coberto de joias, fica
exposto em uma caixa de vidro numa rua lateral —, alguns dos homens mais violentos do país vêm
deixar como oferenda dólares, cigarros e maconha. O movimento pode ter tido outras intenções,
mas tornar-se um seguidor da Santa Muerte parece ter passado a acarretar a devoção a uma forma
particularmente radical de memento mori: organizar a vida em torno da onipresença da morte.
Octavio Paz escreveu: “Em um mundo de fatos, a morte é apenas mais um fato. Mas por ser um fato
tão desagradável, contrário a todos os nossos conceitos e ao próprio significado de nossa vida, a
filosofia do progresso […] a faz desaparecer, como um mágico empalma uma moeda”. No México,
Santa Muerte é o lugar aonde ir quando as circunstâncias de sua vida tornam impossível essa mágica
— quando o medo constante da morte violenta elimina a opção de ignorar sua mortalidade.
Eu cheguei a visitar Tepito durante minha estadia no México, alguns dias antes do Dia dos
Mortos propriamente dito, embora no fim não tenha sido uma das missões mais bem-sucedidas.
Advertiram que eu não devia pegar um táxi na rua para ir até lá, por causa do risco de sequestro; não
sou dos repórteres mais atraídos pelo perigo, e talvez eu nem devesse ter ido, no fim das contas.
“Por motivos óbvios, estrangeiros nunca vão a Tepito”, advertiu um usuário de um fórum na internet

que eu não deveria ter consultado. “Só os idiotas e ignorantes visitam Tepito”, alertava outro. Alguns
dias antes, uma quadrilha armada tinha abatido seis pessoas em uma esquina, em plena luz do dia.
Os jornais diziam que a polícia não entrava em vários trechos do bairro, considerados perigosos
demais para tentar patrulhar. Um cineasta da Cidade do México, autor de um documentário sobre
Tepito, recusou-se a me acompanhar até lá, alegando razões de segurança. A dona de um restaurante
em uma parte mais chique da cidade me contou alegremente o que disse ser um ditado conhecido:
em Tepito, até os ratos andam armados. Assim, minha entrada em Tepito seria no mínimo um bom
exercício de memento mori para mim mesmo.
Saí do centro da cidade no meio da manhã, passando por ruas comerciais e pela região de
negócios da Cidade do México. Depois, por avenidas mais largas, margeadas por feiras improvisadas
e movimentadas, até que as ruas foram ficando mais estreitas, e os prédios cada vez menores, e
encontrei-me em Tepito. O coração do bairro era outro mercado cacofônico — Tepito é conhecido
como um centro de venda de bens falsificados e roubados —, mas, em minha busca pelo altar de
Santa Muerte, logo saí das ruas principais e me embrenhei em vielas desertas, onde ratos pululavam
de imensas pilhas de lixo abandonado.
Passei apressado por entradas escuras, cada vez mais nervoso.
No fim das contas, a cena no altar, propriamente dito, era festiva. Umas vinte pessoas
esperavam, numa fila organizada, para prestar homenagem ao esqueleto, resplandecente com
colares roxos e alaranjados, e envolto em um xale. Uns traziam suas próprias estatuetas, menores,
ou bebidas alcoólicas como oferendas; um ou outro soprava fumaça de charuto ou de cigarro no
esqueleto, quando chegava a vez na fila, naquilo que eu soube depois ser um rito de descarrego. Os
devotos papeavam e riam — homens e mulheres, senhoras de idade e jovens musculosos, alguns
com recém-nascidos e bebês no carrinho.
Incapaz de convencer um tradutor a me acompanhar ao barrio, tive que confiar no meu
espanhol horroroso para entabular conversa com uma mulher que levava debaixo do braço uma
estátua da morte de um metro de altura.
Várias pessoas na fila se viraram para observar.
Ela não queria falar. O clima nos arredores imediatos rapidamente ficou menos festivo. Eu era
um intruso. Além disso, era bem possível que alguns daqueles à minha volta não quisessem conversar
com repórteres ou estrangeiros: as pessoas vinham a Santa Muerte, segundo o ensaísta mexicano
Homero Aridjis, “para lhe pedir: ‘Proteja-me esta noite, porque eu vou sequestrar ou assaltar
alguém’”. Difícil imaginar uma vida em que a morte desempenhasse papel tão central. Mais uma vez,
a grande verdade evidenciada pela cena no altar, onde diferentes gerações se encontravam
enquanto esperavam na fila, era que a morte era um assunto em que todos tinham um interesse
inescapável.
Enquanto inglês magro e pálido, porém, eu claramente destoava. E aparentemente isso foi
notado por um homem musculoso, usando uma jaqueta preta sem mangas, que parecia estar
vigiando o altar. Em seu olhar havia tanto curiosidade quanto ameaça, já que era
constrangedoramente óbvio que eu não representava ameaça física a ele. Mesmo assim, ele

balançou a cabeça de uma forma que parecia indicar a direção em que ele achava que eu deveria
seguir:
para longe do altar e de volta à rua principal.
Foi um pouco depois disso que eu decidi ir embora de Tepito.
Tive mais sorte no Dia dos Mortos propriamente dito (a festa começa no último dia de outubro,
mas o auge do festival é no dia 2 de novembro). Por intermédio do amigo de um colega, entrei em
contato com um mecânico aposentado do local, chamado Francisco, fluente em inglês e acostumado
a servir de “guia” para jornalistas em visita à Cidade do México. Ainda de madrugada, ele chegou a
meu hotel em uma perua Ford cinza, bastante rodada. “É um carro muito seguro”, disse ele, radiante,
antes mesmo que eu perguntasse, e acrescentou: “Meu outro carro so eu um acidente, agora meu
irmão não pode mais usar a perna!”. Não insisti no assunto. Francisco, como ele me explicara pelo
telefone alguns dias antes, sabia o caminho através dos pequenos terrenos rurais fora da capital onde
o Dia dos Mortos ainda era autêntico — não comercializado nem turístico, mas puro e assombrador,
onde os moradores passavam a noite inteira realizando vigílias em cemitérios locais, em comunhão
com os cadáveres de seus parentes. Eu não estava muito a fim de começar a discutir segurança nas
estradas.
Na Cidade do México, a celebração oficial do município estava chegando ao auge. A histórica
praça central, Zócalo, estava lotada de famílias passeando em meio a carrinhos vendendo pão em
forma de osso e crânios de açúcar. Gente de todas as idades, em toda parte, estava vestida de morte:
meninos como vampiros de cavidades oculares ocas e colarinhos duros de goma; mulheres vestidas
de “La Catrina”, o ícone mexicano da morte em forma de mulher com chapéu de abas largas. Em
várias esquinas havia altares para os mortos, forrados de crânios de papier mâché. São tradições que
remontam a séculos atrás, mas se integraram à vida de uma cidade moderna e movimentada.
Disseram-me que nos escritórios de bancos e seguradoras, no centro, muitas mesas viram altares.
Tornou-se uma tradição colegas de trabalho escreverem versinhos cômicos uns para os outros,
prevendo a forma como vão morrer.
Mas Francisco e eu estávamos indo para longe das ruas movimentadas — primeiro em direção
a avenidas largas e caóticas, desviando de vira-latas e micro-ônibus pilotados de maneira suicida, e
depois, à medida que a noite caía, por estradas rurais desertas e sem iluminação. Um pouco depois
de passarmos por mais uma estátua da morte que surgia da escuridão, mal iluminada à beira da
estrada, Francisco disse: “Quando eu era criança, nesse dia, a gente ia de casa em casa, brincando de
dizer como cada pessoa ia morrer. Se alguém fumava demais, a gente levava cigarros, brincando que
ela ia morrer de tanto fumar”.
Ele sorriu ao lembrar-se disso. “Ou se alguém que morava naquela casa tivesse morrido de tanto
fumar, a gente levava cigarros como um presente para lembrálo.”
“Ninguém se sentia ofendido?”
“Ofendido?”
“Sabe? Desrespeitado.”
“Não, por quê?” Ele se virou para olhar para mim. “Mas acho que é só no

México.”
Ele tinha toda a razão. No restante do mundo católico, o segundo dia de novembro é o Dia de
Finados, marcado desde o século VIII como uma ocasião para lembrar pesarosamente os mortos.
Mas quando os conquistadores chegaram ao México, no século XV, eles encontraram celebrações da
morte entre os maias e os astecas, muito mais elaboradas que as suas: os astecas respeitavam a
“senhora dos mortos”, Mictecacihuatl, com um festival de dois meses de fogueiras, dança e
banquetes. Os colonizadores decidiram trocar tudo isso por algo mais sombrio, e mais cristão. O Dia
dos Mortos — com sua estranha mistura de cristianismo e religiões pré-cristãs, pranto e humor — é
um testamento à incompletude da vitória deles.
Houve culturas, porém, que levaram o memento mori a extremos ainda maiores. Michel de
Montaigne, pensador do século XVI, gostava de elogiar os antigos egípcios “que, no ápice de seus
banquetes e festividades, traziam ao salão um esqueleto humano desidratado, para servir de
memento a seus convidados”. (A mesa de trabalho de um escritor, na visão de Montaigne, deveria
ter uma boa vista para o cemitério; parece que aguça as ideias.) Entretanto, no Satipatthana Sutta,
um dos textos formadores do budismo, Buda conclama seus monges a visitar ossuários em busca dos
seguintes objetos sobre os quais meditar:
Um cadáver, de um ou dois dias, inchado e arroxeado; um cadáver comido pelos corvos; uma
armação de ossos, a carne ainda pendente, coalhados de sangue e unidos pelos tendões; ossos
espalhados por todas as direções, descorados como conchas; ossos empilhados anos a fio,
desgastados pelo tempo e se transformando em pó.
O objetivo da “meditação sobre o cadáver”, como se tornou conhecida, era levar o monge
meditabundo a compreender — como teria dito Buda — que “este meu corpo tem a mesma
natureza, a mesma densidade e não pode escapar disso”.
Francisco e eu seguimos em ente. Por fim, depois de parar numa cidadezinha para comer
chilaquiles de porco em uma barraca na beira da estrada, e depois de assistir a uma procissão
de fiéis segurando fotos emolduradas de parentes mortos, chegamos ao destino que ele
propusera: o vilarejo de San Gregorio Atlapulco. Já era quase meia-noite e fazia um io intenso.
No começo, só dava para ver uma luz alaranjada no céu escuro; ao fazer uma curva na
estrada, chegamos repentinamente à origem da luz. O cemitério do vilarejo estava tomado
por centenas de velas, e coberto por toda parte com pétalas de calêndula, o que mandava ao
céu uma suave luz alaranjada.
Francisco estacionou a perua e entramos no cemitério. Meus olhos levaram um instante para
se adaptar ao que eu estava vendo. Muitas lápides eram simples lajes de concreto, ou pedaços curtos
de madeira, mas quase nenhuma estava abandonada. Umas ao lado das outras, sentadas em cadeiras
dobráveis, ou no chão, de pernas cruzadas, havia grupos de duas, três, quatro pessoas, às vezes mais,
conversando baixinho e bebendo tequila em copos de papel. Em um canto, um grupo de mariachis,
vestido a caráter, caminhava de túmulo em túmulo, cantando serenatas uma lápide por vez. Parei

uma mulher que estava carregando vários tapetes e cadeiras para uma lápide próxima e perguntei o
que ela estava fazendo. “Oh, é minha mãe”, ela disse animada, apontando para o túmulo. “A gente
vem todo ano.”
Seria inteiramente errado dar a impressão de que o Dia dos Mortos — ou, a propósito, a
abordagem mexicana para o memento mori em geral — represente algum tipo de fuga para as
realidades inescapáveis e dilacerantes da dor. Aqueles que participam das vigílias nos cemitérios não
são, na grande maioria, os que ainda estão se recuperando do choque de um luto recente. A ideia,
em todo caso, não é adotar um sorriso forçado diante da morte. Essa abordagem seria, certamente,
o “culto do otimismo no que tem de pior”: não funciona, e mesmo que funcionasse não seria uma
resposta apropriada para uma perda. O Dia dos Mortos não é um esforço para transformar algo
terrível em algo tranquilo; é, precisamente, a rejeição dessa categorização binária. O que estava
acontecendo naquele cemitério era o memento mori no que tem de mais poderoso — um ritual que
nem reprime o pensamento da morte nem busca, à maneira do Halloween americano ou britânico,
edulcorá-lo e torná-lo inofensivo. Trata-se de deixar a morte introduzir-se de volta na vida.
Criado no México, o escritor Victor Landa observou: “Na nossa tradição, morre-se três vezes.
A primeira é quando nosso corpo deixa de funcionar; quando nossos corações não batem mais por
nossa vontade, quando nosso olhar não tem mais peso ou profundidade, quando o espaço que
ocupamos lentamente perde o sentido. A segunda morte vem quando o corpo é baixado à terra […].
A terceira morte, a mais definitiva, ocorre quando não há mais ninguém vivo que se lembre de nós”.
A morte estava onipresente naquela noite no cemitério, e mesmo assim — justamente por causa
disso — a terceira morte estava ausente. Uma cidade inteira estava se recordando — e recordando,
também, a própria mortalidade, que só era diferente da de seus parentes mortos no sentido em que
ainda não os havia alcançado.
É claro que você não precisa fazer vigílias em cemitérios para praticar o memento mori. Você
pode começar de um jeito bem mais simples. O psicólogo Russ Harris propõe um exercício fácil:
imagine que você tem oitenta anos de idade — quer dizer, supondo que você ainda não tenha oitenta
anos; se você tiver, pense numa idade mais avançada — e complete as ases: “Eu gostaria de ter
passado mais tempo…” e “Eu gostaria de ter passado menos tempo…”. Esse é um jeito
surpreendentemente eficaz de se conscientizar rapidamente da mortalidade. Tudo se encaixa. Fica
mais fácil seguir o conselho de Tillinghast e entender o que, exatamente, você pode fazer para se
concentrar nos sabores da vida, para aumentar sua chance de chegar à morte tendo vivido a vida
mais plena e profunda possível.
Esse tipo de hábito menor pode, na verdade, ser a forma mais poderosa de memento mori.
Pois é justamente por meio desses rituais banais e sem pompa que podemos ter esperança de incluir
a consciência da morte no ritmo diário da vida, alcançando parte da racionalidade tranquila de
Epicuro diante da mortalidade. Meses depois da viagem ao México, em todo caso, o que ficou na
minha mente não foi a celebração ruidosa da morte, embora eu tenha visto parte dela no centro da
Cidade do México. Foi, isso sim, a sensação que absorvi, em San Gregorio Atlapulco, de relaxar ao
lado da mortalidade, de coexistir confortavelmente com ela, do companheirismo entre vida e morte.

Naquela noite, antes de ir embora do vilarejo, lá pelas duas da manhã, notei uma senhora de
idade, sentada sozinha em uma cadeira dobrável perto de um dos muros que delimitavam o
cemitério. Ela estava enrolada em um xale e parecia estar falando baixinho com uma lápide.
Aproximei-me cuidadosamente dela. Interrompê-la parecia indelicado, mas ela não se mostrou
hostil; sorridente, ela apontou com a cabeça para a borda do túmulo, convidando-me a sentar. Então
eu me sentei.
Ao longe se ouviam os acordes dos mariachis do outro lado do cemitério. Notei que algumas
famílias fizeram fogueirinhas para se aquecer; a alguns metros dali, Francisco batia com os braços no
próprio corpo na tentativa de produzir algum calor. Dei uma olhada geral no cemitério, repleto de
calêndulas e cheio de gente amontoada. Do lado de fora, nenhuma luz clareava a escuridão, mas
dentro as fogueiras e as centenas de velas bruxuleantes conferiam à noite uma espécie de
aconchego, apesar do frio. Os músicos continuavam a tocar.
A morte estava no ar, e tudo estava bem.

Epílogo: Capacidade negativa

Em dezembro de 1817, o poeta John Keats, então com 22 anos, foi ver a pantomima de Natal
anual no Teatro Real, em Londres, na Drury Lane. Na plateia também estava um amigo, o crítico
Charles Wentworth Dilke. Voltando para casa juntos, os dois começaram a conversar sobre literatura
— mais especificamente, sobre a natureza do gênio literário. Em algum lugar entre o teatro, no Soho,
e sua casa, em Hampstead, Keats deu-se conta de algo que explicou vários dias depois em uma carta
aos irmãos. Essa carta registra o que um biógrafo de Keats chamou de “marco fundamental” na
história da literatura:
Eu não estava tendo uma discussão, mas uma elucubração com Dilke sobre vários assuntos;
várias coisas povoavam minha mente, e subitamente me ocorreu a qualidade que dá forma a
um Homem de Realizações, sobretudo na literatura, e que Shakespeare possuía tão
enormemente: refiro-me à Capacidade Negativa, isto é, quando um homem é capaz de estar
em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer busca impaciente de fatos e razão.
Há algo ao mesmo tempo impressionante e talvez um pouco irritante em um jovem de 22 anos
capaz não apenas de tais insights, mas de tê-los de forma tão casual, voltando para casa depois de
uma pantomima. Para Keats, esse tipo de observação sempre veio sem esforço e com equência,
como de certa forma tinha que ser; ele morreu três anos depois. O jovem poeta pensou tão pouco
na “capacidade negativa”, na verdade, que nunca mais escreveu essa expressão, proporcionando
assim, generosamente, aos futuros acadêmicos literários a oportunidade de escrever livros inteiros
dedicados a descobrir o que ele estava querendo dizer.
Neste ponto de nossa jornada pelo caminho negativo para a felicidade, porém, o significado
do que ele disse pode pelo menos parecer compreensível. Às vezes, o mais valioso de todos os
talentos é ser capaz de não buscar a solução; perceber o desejo de completude, certeza ou conforto,
e não se sentir forçado a segui-lo. Keats considerava esse vício em conforto e completude o maior

defeito de Dilke, e o veredicto do poeta sobre o amigo ilustra com perfeição um tema que já
encontramos muitas vezes. “Ele nunca vai chegar a uma verdade, enquanto viver”, escreveu Keats,
“porque ele sempre está tentando chegar.” É a tentativa — a “busca impaciente” — que constitui
todo o problema.
Definida de forma mais genérica, a “capacidade negativa” é, na verdade, apenas mais uma
expressão para viver de acordo com a “lei do reverso” — e poderia ser um bom rótulo para descrever
o maior talento que sempre descobri entre as pessoas que encontrei durante a pesquisa para este
livro. O que todos compartilhavam era essa mesma forma de pensar, que acabei visualizando como
uma espécie de passo de dança gracioso da mente: uma disposição para adotar uma posição oblíqua
em relação à própria vida interior; dar um tempo e um passo para trás; encarar aquilo de que outros
tentavam fugir; e compreender que o caminho aparentemente mais curto para um estado de espírito
positivo raramente é um caminho seguro para uma forma mais profunda de felicidade. A expressão
“capacidade negativa” também ajuda a esclarecer um duplo sentido sutil na palavra “negativa”. Ela
se refere tanto a um conjunto de habilidades que envolve o “não fazer”, em oposição ao fazer — um
tipo negativo de capacidade —, quanto o fato de que essa habilidade envolve en entar pensamentos,
emoções e situações negativas (no sentido de “desagradáveis”).
Aqui, não se está argumentando que a capacidade negativa sempre é superior à positiva. O
otimismo é maravilhoso; metas podem ser úteis às vezes; até o pensamento e a visualização positivos
trazem benefícios. O problema é que desenvolvemos o hábito de supervalorizar cronicamente a
positividade e a habilidade de “fazer”, quando pensamos em felicidade, e subestimamos
cronicamente a negatividade e a habilidade de “não fazer” — como permanecer na incerteza ou
aceitar o acasso. Usando um chavão do “terapês”, passamos muito tempo de nossa vida em busca
de “closure”. Mesmo aqueles de nós que riem desses clichês somos constantemente motivados pelo
desejo de pôr fim à incerteza e à ansiedade, seja nos convencendo de que o futuro será brilhante ou
nos resignando desanimados à expectativa de que não será. Em vez disso, precisamos de mais
daquilo que o psicólogo Paul Pearsall chamou de “openture”. Sim, é um neologismo esquisito. Mas
é uma esquisitice que relembra o espírito daquilo que expressa, que inclui a aceitação da
imperfeição, o relaxamento da busca constante por soluções perfeitas.
As variadas abordagens que exploramos muitas vezes se contradizem entre si, no nível dos
detalhes; às vezes, parecem tão intrinsecamente paradoxais que praticamente se contradizem em si
mesmas. Mas, nesse sentido geral, todas incorporam a “capacidade negativa”. Para os estoicos, a
compreensão de que podemos constantemente decidir não nos deixar abalar pelos acontecimentos,
mesmo sem poder escolher os acontecimentos propriamente ditos, é a base da tranquilidade. Para
os budistas, a disposição de observar o “tempo interior” de seus pensamentos e emoções é a chave
para compreender que não é preciso deixar que eles governem suas atitudes. Cada um é um jeito
diferente de resistir à “busca impaciente” de circunstâncias, pensamentos ou sentimentos melhores.
Mas a capacidade negativa não precisa incluir a aceitação de antigas filosofias ou tradições religiosas.
Você também a exerce quando toca um projeto — ou sua vida — sem metas claramente definidas,
ou quando tem coragem de examinar seus acassos, quando para de tentar suprimir os sentimentos

de insegurança, ou quando você deixa de lado técnicas “motivacionais” em favor de simplesmente
agir.
É claro, você pode optar por dedicar sua vida ao estoicismo, como Keith Seddon em sua cabana
de mago em Watford; ou você pode passar por uma experiência completamente transformadora, à
maneira de Eckhart Tolle. Mas você também pode tratar essas ideias como um kit de ferramentas,
de onde você pode tirar ferramentas quando necessário. Qualquer um pode se tornar um pouco
estoico, ou um pouco mais budista, ou praticar o memento mori com um pouco mais de equência;
ao contrário de um monte de métodos de autoajuda, que pretendem ser guias abrangentes para a
vida, o caminho negativo para a felicidade não é uma questão de tudo ou nada. A verdadeira
capacidade negativa acarreta moderação, equilíbrio e evitar esforços excessivos na luta — inclusive
na prática da capacidade negativa. Aldous Huxley escreveu: “A competência e os resultados da
competência chegam apenas para aqueles que aprenderam a arte paradoxal do fazer e não fazer, de
combinar descanso e atividade, de abandonarse como pessoa para que tome conta a Quantidade
Desconhecida, imanente e transcendente”.
E o resultado disso tudo? O principal benefício da “openture”, segundo Paul Pearsall, não é
nem a certeza, nem a calma, nem o conforto tal como costumamos imaginá-los, e sim “o conforto
estranho e animado [de] sermos apresentados aos enormes mistérios que a vida oferece, e termos
que lidar com eles”. No fim, o que define o “culto do otimismo” e a cultura do pensamento positivo
— até em suas formas mais místicas e new age — é o horror ao mistério. Ele busca certezas, busca
tornar a felicidade permanente e definitiva. E, no entanto, esse tipo de felicidade — ainda que você
consiga alcançá-lo — é raso e insatisfatório. O maior benefício da capacidade negativa, e o verdadeiro
poder do pensamento negativo, é permitir a volta do mistério.

Uma das piores coisas a respeito de ser um palestrante motivacional, ou qualquer outro tipo
de defensor do poder do pensamento positivo, deve ser a pressão constante para parecer animado:
se alguém um dia pegá-lo carrancudo, estressado ou sentindo pena de si mesmo — coisas normais
para qualquer pessoa, é claro —, pode solapar tudo aquilo que você representa. Tornar-se um
defensor do poder do pensamento negativo, como eu aos poucos me tornei, não implica nenhum
problema do gênero. O mau humor é permitido. Ainda assim, supostamente o objetivo de toda essa
aventura pela negatividade é a felicidade. Então é legítimo que você se pergunte se as filosofias e as
técnicas psicológicas que encontrei me tornaram realmente mais feliz — e quais delas, depois de
todas as viagens e de toda a apuração, passaram a fazer parte da minha vida. O caminho negativo
para a felicidade funcionou mesmo? Responder com um simples “sim” ou “não”, ou apresentar uma
lista de dez dicas infalíveis para o sucesso do pensamento negativo, seria macular o espírito da coisa.
A “openture”, certamente, exige resistir a essas tentadoras certezas. Mas eu posso apresentar um
relatório parcial da situação.
Eu não adotei o hábito de me humilhar em sistemas de transporte público de grandes cidades.
Nem me mudei para o interior do México para viver uma vida impregnada de morte. Até agora, eu
nem sequer voltei a um retiro de meditação silenciosa, desde minha semana em Massachusetts. Mas

de muitas formas menores, um pequeno grau de capacidade negativa tornou-se uma prática diária.
É raro que passe um dia sem algum momento em que eu faça uso daquilo que passei a chamar de
pausa estoica, que é tudo de que preciso para lembrar que é meu juízo — sobre o colega irritante,
ou o engarrafamento, ou a comida que queimou — que causa a minha dor, e não a situação em si.
Entretanto, cinco ou dez minutos de meditação vipassana, o que consigo fazer quase toda manhã,
bastam para que eu sinta como se tivesse aplicado um spray antiferrugem nas minhas engrenagens
mentais: pelo resto do dia, pensamentos e emoções problemáticos passam bem mais fácil. A
pergunta enganosamente simples de Eckhart Tolle — “Você está com um problema neste instante?”
— é um maravilhoso antídoto para pequenos estresses. E certamente eu não conseguiria terminar
este livro sem o insight de Shoma Morita: não é preciso “motivar-se” antes de pôr a mão na massa.
Em amizades e no relacionamento com minha namorada, passei a entender mais profundamente
que felicidade e vulnerabilidade são, muitas vezes, a mesma coisa. E pelo menos uma vez por semana
tenho algum motivo para me lembrar da distinção que Albert Ellis faz entre um desfecho muito ruim
e um desfecho absolutamente terrível. Na
verdade, imaginar a pior hipótese possível é uma das maiores fontes de consolo na minha vida.
Quando você realmente tenta responder, detalhada e racionalmente, a pergunta “Qual é a pior coisa
que poderia acontecer?”, a resposta costuma ser bem pesada. Mas é um peso finito, e não
infinitamente terrível. Logo, sempre é possível suportá-lo. Ou eu acho que é. Estou inteiramente
consciente de que, durante o período que passei explorando essa perspectiva em relação à vida, não
me sobreveio nenhuma grande tragédia, e minha família e meus amigos, de forma geral,
prosperaram. Como um bom estoico, tentei me manter consciente disso, de modo a obter felicidade
da gratidão por minha boa fortuna. Mas, no meu caso, o verdadeiro teste dessas filosofias pode estar
por vir.
Porém, já consigo ver que no fim essas técnicas levam, como eu suspeitava, a algo além das
“técnicas”, a uma nova definição da própria felicidade. A verdadeira revelação do caminho negativo
para a felicidade não é o caminho, e sim o destino. Aceitar a negatividade como caminho, no fim das
contas, só faz sentido se você busca um estado que contenha ao mesmo tempo negatividade e
positividade. O supracitado Paul Pearsall, inventor do “openture”, passou grande parte da vida numa
batalha solitária que John Keats certamente teria apreciado: que o conceito de “admiração” fosse
aceito pelo establishment da psicologia como uma das emoções primárias do homem, assim como
os conhecidos amor, raiva, medo e tristeza. Ele argumentava: “Ao contrário de todas as outras
emoções”, a admiração “[…] são todos os nossos sentimentos resumidos em um só, intenso. Não se
pode defini-la como simples alegria, tristeza, medo, raiva ou esperança. Ao contrário, é uma questão
de vivenciar todos esses sentimentos e ainda assim, paradoxalmente, não vivenciar nenhuma
emoção claramente identificável, ou pelo menos não facilmente descritível”. A admiração, escreve
ele, “é como tentar montar um quebra-cabeça complicado em que faltam algumas peças. Nunca se
fecha uma vida inspirada pela admiração, há apenas a aceitação constante dos mistérios da vida.
Nunca nos deixam saber quando terminará essa fantástica viagem […] mas faz parte do caos
desorientador da vida que torna essa escolha tão emocionantemente difícil”. Essa me parece a
melhor descrição possível da felicidade digna desse nome. Esse tipo de felicidade não tem nada a ver

com as superficialidades fáceis do pensamento positivo — com a insistência sorridente no otimismo
a todo custo, ou a ambição do sucesso assegurado. É muito mais difícil que isso — e muito mais
autêntico.
O caminho negativo para a felicidade, portanto, é um caminho diferente. Mas também é para
um destino diferente. Ou talvez faça mais sentido afirmar que o caminho é o destino? É terrivelmente
difícil encontrar as palavras certas, e o espírito da capacidade negativa, é bem verdade, nos aconselha
a não nos esforçarmos demais para achá-las. Disse Lao-tsé: “O bom viajante não tem planos fixos,
nem tampouco a intenção de chegar”. Não poderia existir maneira melhor de fazer a viagem.

Agradecimentos

Escrever este livro me proporcionou várias oportunidades de testar alguns de seus
argumentos, en entando a incerteza, a ansiedade, a perspectiva de acasso e, vez por outra, o terror
cego. Felizmente não tive de me apoiar na assertividade do pensamento positivo para lidar com esses
problemas. Em vez disso, tirei proveito das habilidades e do tempo de pessoas extraordinárias. Na
Canongate, agradeço acima de tudo a meu editor, Nick Davies, incrivelmente estoico, cujo talento
melhorou meu texto de forma fundamental, e a seus colegas, entre eles Norah Perkins, Angela
Robertson e Octavia Reeve. Mitzi Angel, na Faber & Faber, em Nova York, forneceu-me informações
inestimáveis. Dizer que tenho uma dívida para com minha agente, Claire Conrad, seria um cômico
eufemismo. Sou grato a todos na Janklow & Nesbit, em especial a Tina Bennett, pela orientação inicial
e pelo incentivo.
Além dos entrevistados que citei, agradeço às seguintes pessoas pelos conselhos, contatos ou
comentários sobre o conteúdo dos capítulos: Cyntia Barrera, Tor Butler-Cole, Jeremy Chatzky, Clar Ni
Chonghaile, Catherine Crawford, Joanna Ebenstein, Je Gibbins, Julia Greenberg, Debbie Joffe-Ellis,
Kenneth Folk, Solana Larsen, Jeff Mickelson, Mac Montandon, Salvador Oguín e Joanna Tuckman. No
Guardian, pela assistência e paciência, em grau maior ou menor, agradeço a Emma Cook, Janine
Gibson, Clare Margetson, Emily Wilson e Becky Gardiner. Ian Katz não é uma pessoa propriamente
paciente, mas sou grato por muito mais coisas.
Como este livro surgiu, de início, dos temas explorados em minha coluna na revista de fim de
semana do Guardian, muitas das ideias aqui contidas surgiram da mente de Merope Mills, o editor
da revista. Outros que merecem muitos agradecimentos são Esther Addley, Anne Bernstein e meus
amigos de York, entre os quais vou injustamente citar Adam Ormond, Rurik Bradbury,
Abigail Gibson, Daniel Weyman, Sally Weyman, Rachael Burnett e Robin Parmiter. Emma Brockes
deu continuidade a seu indispensável serviço como cérebro exterior e ajudou muito mais que
qualquer seminário motivacional.

Não tenho certeza alguma de que Heather Chaplin tenha feito uma boa estratégia para
alcançar a felicidade ao ter decidido abraçar este projeto com tanta devoção como abraçou, mas isso
fez uma diferença incalculável. Por esta, e muitas outras razões, eu tenho uma sorte imensa de
conhecê-la.

Notas

Algumas das entrevistas deste livro foram originalmente realizadas enquanto eu era repórter
do jornal Guardian. Em outros poucos casos, as cenas e os diálogos foram resumidos ou reproduzidos
de memória.

1. DA BUSCA EXCESSIVA DA FELICIDADE
foi acusada de negar acesso a jornalistas, uma tribo famigerada pelo pensamento negativo. Lowe
nega a acusação: Ver Eric Anderson, “Media Barred om Get Motivated Seminar, at Least for
Now”, blog The Buzz, Albany Times Union, 21 jul. 2009; e comentário de Tamara Lowe,
disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
a maior igreja dos Estados Unidos construída quase toda de vidro estava em processo de falência: Ver
Rebecca Cathcart, “Crystal Cathedral Files for Bankruptcy”, The New York Times, 18 out. 2010.
o crescimento econômico não garante sociedades mais felizes: Este é um tema de infindáveis
polêmicas, com psicólogos e economistas rivais se digladiando constantemente. Como
sempre, a resposta depende de definições questionáveis de felicidade. Mas uma das maiores
e mais atualizadas revisões da literatura a respeito, que não encontrou correlação de longo
prazo entre crescimento econômico e melhoria no bem-estar, é Richard Easterlin et al., “The
Happiness-Income Paradox Revisited”, Proceedings of the National Academy of Sciences, n.
107, 2010, pp. 22463-8.
uma renda pessoal maior, acima de um nível mínimo, não garante pessoas mais felizes: Ver nota
anterior. Ver também Daniel Kahneman et al., “Would You Be Happier If

You Were Richer? A Focusing Illusion”, Science, n. 312, 2006, pp. 1908-10. Sendo mais preciso,
é quase certo que, se você tem como meta atingir objetivos materiais, será menos feliz que
aqueles que têm outras prioridades: ver Carol Nickerson et al., “Zeroing in on the Dark Side of
the American Dream”, Psychological Science, n. 14, 2003, pp. 531-6.
Nem uma educação melhor: Ver, por exemplo, Robert Witter et al., “Education and Subjective
Wellbeing: A Meta-analysis”, Educational Evaluation and Policy Analysis, n. 6, 1986, pp. 16573.
Nem um número cada vez maior de produtos de consumo: Ver Barry Schwartz, The Paradox of Choice.
Nova York: Ecco, 2003 [Ed. bras.: O paradoxo da escolha. São Paulo: A Girafa, 2007].
Nem casas maiores e mais bonitas: Robert H. Frank, How Not To Buy Hapiness, Daedalus, vol. 133,
2004, pp. 69-79.
estudos indicam fortemente que eles não costumam ajudar muito: Um exemplo é Gerald
Haeffel, “When Self-Help is No Help: Traditional Cognitive Skills Training
Does Not Prevent Depressive Symptoms in People Who Ruminate”,
Behaviour Research and Therapy, n. 48, 2010, pp. 152-7. A bem da verdade, há estudos
mostrando que alguns livros de autoajuda específicos têm um efeito benéfico, sobretudo
Feeling Good, de David Burns — ver Eric Stice et al., “Randomised Trial of a Brief Depression
Preventing Programme: An Elusive Search for a Psychosocial Placebo Control Condition”,
Behaviour Research and Therapy, n. 45, pp. 863-76, 2007.
“regra dos dezoito meses”: Para mais a respeito, ver Steve Salerno, Sham: How the SelfHelp
Movement Made America Helpless. Nova York: Crown, 2004.
expressar sua raiva não a faz passar: Brad Bushman, “Does Venting Anger Feed or Extinguish the
Flame? Catharsis, Rumination, Distraction, Anger, and Aggressive Responding”, Personality
and Social Psychology Bulletin, n. 28, 2002, pp. 724-31.
“quanto mais você tenta boiar [...]”: Ambas as citações são de Alan Watts, The Wisdom of Insecurity.
Nova York: Vintage, 1951, p. 9 [Ed. bras.: A sabedoria da insegurança. Rio de Janeiro: Record,
1978].
“quanto mais tentamos [...]”: Aldous Huxley, Complete Essays 1939-1956. Lanham, Maryland: Ivan R.
Dee, 2002, p. 225.
o “culto do otimismo”, como o batizou o filósofo Peter Vernezze : Ver Peter Vernezze, Don’t Worry,
Be Stoic . Lanham, Maryland: University Press of America, 2005. p. XX. transcrição de uma tentativa
típica: Daniel Wegner, White Bears and Other Unwanted Thoughts. Nova York: Guilford Press, 1989,
p. 3.
ele explicou num artigo: Daniel Wegner, “How To Think, Say or Do Precisely the Worst Thing for Any
Occasion”, Science, n. 325, 2009, p. 48.
"A metacognição", explica Wegner, "ocorre quando o pensamento faz de si mesmo um objeto." :
Ver Wegner, White Bears and Other Unwanted Thoughts, p. 44.
“O metapensamento é uma instrução [...]”: Ibid., p. 54.

quando voluntários de uma experiência recebiam uma notícia ruim: Ibid., pp. 128-9. Ver também
Daniel Wegner et al., “Ironic Processes in the Mental Control of Mood and Mood-related
Thought”, Journal of Personality and Social Psychology, n. 65, 1993, pp. 1093-1104.
: Ver Chris Adler et al., “Relaxationinduced Panic (RIP):
When Resting Isn’t Painful”, Integrative Psychiatry, n. 5, 1987, pp. 94-100.
: Wegner, White Bears and Other Unwanted
Thoughts, p. 9, referindo-se a Erich Lindeman, “Symptomatology and Management of Acute
Grief”, American Journal of Psychiatry, n. 101, 1944, pp. 1418.
quem é orientado a não pensar em sexo: Ver Wegner, White Bears and Other Unwanted
Thoughts, p. 149, referindo-se a Barclay Martin, “Expression and Inhibition of Sex Motive
Arousal in College Males”, Journal of Abnormal and Social Psychology, n. 68, 1964, pp. 307-12.
Uma perversidade a mais foi revelada em 2009: Joanne Wood et al., “Positive Selfstatements: Power
for Some, Peril for Others”, Psychological Science, n. 20, 2009, pp. 860-6.
“Existem muitas maneiras de ficar triste”: Edith Wharton, “The Last Asset”, in The Collected Stories
of Edith Wharton. Nova York: Carroll & Graf, 2003, p. 65.
“fazer o que parece ser o mais correto é contraprodutivo”: Steven Hayes, “Hello Darkness:
Discovering Our Values by Con onting Our Fears”, Psychotherapy Networker, n. 31, 2007, pp.
46-52.

2. O QUE SÊNECA FARIA?
uma palestra para executivos do banco de investimentos Merrill Lynch, em meados da década de
1980: Ver Jeanne Pugh, “The Eternal Optmist”, St. Petersburg Times, 8 jun. 1985. estudos indicam
que gente feliz e saudável, em geral, tem menos capacidade, por excesso de otimismo, de avaliar sua
capacidade real de influenciar os acontecimentos: O estudo clássico sobre o “realismo depressivo” é
Lauren Alloy e Lyn Abramson, “Judgment of Contingency in Depressed and Nondepressed Students:
Sadder but Wiser?”, Journal of Experimental Psychology, n. 108, 1979, pp. 441-85.
ao estimular voluntários a pensar que a semana de trabalho estava sendo altamente produtiva:
Heather Barry Kappes e Gabriele Oettingen, “Positive Fantasies about Idealized Futures Sap
Energies”, Journal of Experimental and Social Psychology, n. 47, 2011, pp. 719-29.
Oettingen desidratou ligeiramente alguns dos participantes: Ibid.
escreve William Irvine, estudioso acadêmico do estoicismo: In A Guide to the Good Life: The Ancient
Art of Stoic Joy. Nova York: Oxford, 2008, edição para Kindle.
“aquilo que não nos toca a alma”: Marco Aurélio, The Meditations, livro IV, trad. para o inglês de
George Long; texto eletrônico disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
[Ed. bras.: Meditações de Marco Aurélio. Taguatinga: Kiron, 2010].
“a mais valiosa técnica do ‘arsenal de ferramentas’ dos estoicos”: In William Irvine, A Guide to the
Good Life.

Sempre que você se afeiçoar a alguma coisa: Citado por William Stephens, “Epictetus on
How
the
Stoic
Sage
Loves”,
disponível
em
. Acesso em: 15 nov. 2013.
“Ninguém pegou um estilete e arrancou meu saco”: Ibid.
“quando você teima que um evento indesejável é mau ou terrível”: Albert Ellis, How to Make Yourself
Happy and Remarkably Less Disturbable. Atascadero: Impact, 1999. p. 60.

3. A TEMPESTADE ANTES DA CALMARIA
imediatamente caíam no chão: A história foi tirada de Rick Fields, How the Swans Came to the Lake:
A Narrative Story of Buddhism in America. Boston: Shambjala, 1992. p. 252.
“Mergulhar, de mãos entrelaçadas [...].”: Ver Jack Kerouac, Pomes All Sizes. San Francisco: City Lights,
1992, p. 96.
um de seus biógrafos: Ann Charters, Kerouac: A Biography. Nova York: Macmillan, 1994, p. 219.
“Você se dá conta de que seu cérebro está, o tempo todo, conversando [...].”: J. Krishnamurti,
“Dialogue
at
Los
Alamos”,
mar.
1984.
Disponível
em
. Acesso em: 15 nov. 2013.
uma série de experiências realizadas em 2009: Para detalhes e para os comentários, ver o
comunicado da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte: “Brief Training in Meditation
May
Help
Manage
Pain,
Study
Shows”.
Disponível
em
. Acesso em: 15 nov. 2013.

Ver também Fadel Zeidan et al., “The Effects of Brief Mindfulness Training on Experimentally
Induced Pain”, The Journal of Pain, n. 11, 2009, pp. 199-209.
numa experiência semelhante da equipe de Zeidan: Ver Fadel Zeidan et al., “Brain
Mechanisms Supporting the Modulation of Pain by Mindfulness
Meditation”, Journal of Neuroscience, n. 31, 2011, pp. 5540-8.
“Se sentirmos a emoção certa [...].”: De um debate com Tony Robbins no congresso TED; disponível
em:
. Acesso em: 15
nov. 2013.
A escritora Julie Fast: Ver Julie Fast, Get it Done When You’re Depressed. Nova York: Alpha Books,
2008.
“Inspiração é para amadores [...].”: Citado em Julie Bernstein e Kurt Anderson, Spark: How Creativity
Works. Nova York: HarperCollins, 2011, p. 13.
Não é necessário fazer esforços impossíveis quando não se está bem: Shoma Morita, Morita Therapy
and the True Nature of Anxiety-Based Disorders. Trad. para o inglês de Akihisa Kondo. Albany:
State University of New York Press, 1998, p. 53.
Muitos métodos terapêuticos ocidentais focam: Ver James Hill, “Morita Therapy”, disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
“Uma mente clara é como a lua cheia no céu”: Stephen Mitchell (org.), Dropping Ashes on the Buddha:
The Teaching of Zen Master Seung Sahn. Nova York: Grove, 1994, pp. 51-2.

4. OBCECADO POR METAS
Em 1996, aos 28 anos, um americano de Indiana: Meu relato das viagens de Christopher Kayes, seu
relato do desastre de 1996 no Everest e sua interpretação do estudo de 1963 no Everest, junto
com citações de Ed Viesturs, James Lester, Beck Weathers e outros foram tirados de uma
entrevista com Kayes e de seu fascinante livro Destructive Goal Pursuit: The Mount Everest
Disaster. Nova York: Palgrave Macmillan, 2006.
escondidas em um estudo de psicologia: Minha fonte primária é Christopher Kayes, Destructive Goal
Pursuit, mas o estudo em questão é detalhado em James Lester, “Wrestling with the Self on
Mount Everest”, Journal of Humanistic Psychology, n.
23, 1983, pp. 31-41.
um jornalista da revista de tecnologia Fast Company: Lawrence Tabak, “If Your Goal Is Success, Don’t
Consult These Gurus”, Fast Company, n. 18, dez. 2007.
“Pense em qualquer indivíduo em qualquer período de sua vida [...].”: Alexis de Tocqueville,
Democracy in America, v. 2. Trad. para o inglês de George Lawrence. Nova York: HarperCollins, 2007.
p. 369. a psicóloga Dorothy Rowe afirma: In Tim Lott, “Why Uncertainty Is Good for You”, The Sunday
Times, 24 maio 2009.

Assim escreveu o blogueiro: Ver David Cain, “How to Get Comfortable Not Knowing”, disponível em:
. Acesso em: 15 nov.
2013.
o economista Colin Camerer e três colegas: Colin Camerer et al., “Labor Supply of New York City
Cabdrivers: One Day at a Time”, Quarterly Journal of Economics, n. 112, 1997, pp. 407-41.
um artigo de 2009 com um trocadilho infame no título: Lisa Ordóñez et al., “Goals Gone Wild: The
Systematic Side-effects of Overprescribing Goal-setting”, Academy of Management
Perspectives, n. 23, 2009, pp. 6-16.
Um exemplo esclarecedor do problema: Meu relato da campanha dos “29” da GM foi tirado de Sean
Cole, “It’s Not Always Good to Create Goals”, do site do programa Marketplace, da rádio
American Public Media, disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2013. Ver também Drake Bennett, “Ready, Aim... Fail”,
Boston Globe, 15 mar. 2009.
a resposta de Gary Latham e Edwin Locke: Gary Latham e Edwin Locke, “Has Goalsetting Gone Wild,
or Have Its Attackers Abandoned Good Scholarship?”, Academy of Management Perspectives,
n. 23, 2009, pp. 17-23.
“Quando tentamos separar uma única coisa do resto [...].”: John Muir, My First Summer in the Sierra.
Nova York: Houghton Mifflin, 1911, p. 211.
“A existência contínua de complexos sistemas interativos [...].”: Gregory Bateson, Steps to an Ecology
of Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1972, p. 124.
“Não tenho certeza se foram minhas metas [...].”: Steve Shapiro, Goal. Hoboken, New
Jersey: Wiley, 2006. p. XII.
Numa pesquisa que ele encomendou: Steve Shapiro, Goal-free Living, p. V.
Alguns anos atrás, a pesquisadora Saras Sarasvathy: As fontes primárias das informações e citações
sobre a efetivação são Leigh Buchanan, “How Great Entrepreneurs Think”, Inc. Magazine, fev.
2011; e o site
.
“A busca pela certeza bloqueia a busca pelo sentido [...].”: Erich Fromm, Man for Himself. Nova York:
Macmillan, 1947, p. 45.
Ser uma boa pessoa: In Bill Moyers, A World of Ideas. Nova York: Doubleday, 1989, p. 448.
5. QUEM ESTÁ AÍ?
“um movimento lento no começo [...].”: Todas as citações de Eckhart Tolle foram tiradas de meu
encontro com ele ou de seus livros O poder do agora e O despertar de uma nova consciência.
Ver Oliver Burkeman, “The Bedsit Epiphany”, Guardian, 11 abr. 2009; Eckhart Tolle, The Power
of Now. Novato, Califórnia: New World Library, 1999 [Ed. bras.: O poder do agora: Um guia
para a iluminação espiritual. Rio de Janeiro: Sextante, 2002]; e A New Earth. Nova York:
Dutton, 2005 [Ed. bras.: O despertar de uma nova consciência. Rio de Janeiro: Sextante, 2007].
“não menos ardiloso e enganador do que poderoso [...].”: Esta nota e as seguintes vêm de

René Descartes, Meditations on First Philosophy. Trad. para o inglês de Michael Moriarty.
Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 16 [Ed. bras.: Meditações sobre filosofia primeira.
Trad. Fausto Castilho. Campinas: Unicamp, 2004].
“Quem assiste Matrix [...].”: Christopher Grau (org.), Philosophers Explore the Matrix. Oxford: Oxford
University Press, 2005, p. 13.
De minha parte, quando entro mais intimamente: David Hume, An Enquiry Concerning Human
, ed. Thom Chittom. Nova York:
Barnes and Noble, 2004, p. 200.
“não há no cérebro um centro [...].”: Citado em Jullian Baggini, “The Blurred Reality of Humanity”,
The Independent, 21 mar. 2011.
Como demonstrou o psicólogo Michael Gazzaniga: Ver Michael Gazzaniga, The Ethical Brain. Nova
York: Harper Collins, 2006, p. 149.
Paul Hauck, um psicólogo que se opõe ao conceito de autoestima, afirma: Paul Hauck, Overcoming
the Rating Game: Beyond Self-love, Beyond Self-esteem. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox
Press, 1992. p. 46. que adaptei neste livro a partir do trabalho do autointitulado “animador espiritual”
Alan Watts : Todas as citações foram tiradas de Alan Watts, The Wisdom of Insecurity.

6. A ARMADILHA DA SEGURANÇA
uma “lança bastante eficiente”: Todas as citações de Bruce Schneier são oriundas de minha
entrevista com ele e de seu ensaio “The Psychology of Security”. Ver Oliver Burkeman, “Heads
in the Clouds”, Guardian, 1o dez. 2007; e Bruce Schneier, “The Psychology of Security”,
disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
o Projeto 2020, uma iniciativa dos serviços de inteligência encarregados de fazer previsões amplas
sobre o futuro, publicou: Ver . Acesso em:
15 nov. 2013.
Havia o sentimento de viver em uma época de insegurança incomum: Alan Watts, The Wisdom of
Insecurity, p. 14.
“Na verdade”, insistiu Watts: Ibid., p. 15.
“Ser vulnerável é estar sem armadura de defesa [...].”: Citado por Susan Schwartz Senstad, “The
Wisdom
of
Vulnerability”;
disponível
em
. Acesso em: 15 nov. 2013.
“você não pode fazer a emoção adormecer seletivamente [...].”: De uma palestra na co nf er ênci a
TED de Brené Brown; disponível em
. Acesso em: 15 nov. 2013.
Amar não é senão ser vulnerável: Citado em Vincent Genovesi, In Pursuit of Love: Catholic Morality
and Human Sexuality. Collegivelle, Minneapolis: Liturgical Press, 1996, p. 28.

“A verdade que muita gente nunca entende [...].”: Thomas Merton, The Seven Storey Mountain. Nova
York: Harcourt, 1948, p. 91.
“Tornar-se budista”: Citado em Helen Tworkov, “No Right, No Wrong: An Interview with Pema
Chödron”. Tricycle, outono de 1993.
“As coisas não são permanentes [...].”: Ibid.
“É claro que a pobreza prejudica Kibera [...].”: De Jean-Pierre Larroque, “Of Crime and Camels”;
disponível em: . Acesso em: 15
nov. 2013.
“Acho tão inspirador quando a tv mostra gente de países mais pobres [...].”: Ver “Colleen
‘Inspired’
by
Poor
People”,
artigo
não
assinado;
disponível
em
. Acesso em: 15 nov.
2013.
Pesquisas internacionais de felicidade: Todos os dados da Pesquisa Mundial de Valores estão
disponíveis em . Acesso em: 15 nov. 2013. Ver também
“Nigeria Tops Happiness Survey”, BBC News, 2 out. 2003. Disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
: Uma boa visão geral dessa pesquisa está em Carol
Graham e Matthew Hoover, “Poverty and Optmism in A ica:
Adaptation or Survival?”, preparado para a Cúpula Gallup de Psicologia Positiva, out. 2006.
Disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
De acordo com pesquisadores de saúde mental: O estudo “Prevalence, Severity, and Unmet Need for
Treatment of Mental Disorders in the World Health Organization World Mental Health
Surveys” foi feito pelo Consórcio de Pesquisa Mundial de Saúde Mental da Organização
Mundial de Saúde (OMS). Discutido em “Global Study Finds Mental Illness Widespread”,
Associated Press, 7 jul. 2004.
“É evidente por si mesmo”: Alan Watts, The Wisdom of Insecurity. p. 16.
7. O MUSEU DO FRACASSO
como escreveu o jornalista Neil Steinberg: Ver Neil Steinberg, Complete and Utter Failure. Nova York:
Doubleday, 1994, p. 31.
50% das pessoas que dirigem melhor: Ola Svenson, “Are We All Less Risky and More Skillful Than Our
Fellow Drivers?”, Acta Psychologica, n. 47, 1981, pp. 143-8.
Uma série fascinante de estudos de cientistas: Ver Kelvin Dunbar, “Scientific Creativity”,
The Encyclopedia of Creativity, Steven Pritzker e Mark Runco (orgs.). Waltham,
Massachusetts:
Academic
Press,
1999,
p.
1379-84;
disponível
em:
. Acesso em: 15
nov. 2013.

“Se você for um cientista e estiver realizando uma experiência”: De uma palestra na conferência
PopTech, dada por Kevin Dunbar. Disponível em:
. Acesso em: 15 nov.
2013.
Ele relatou ao escritor de neurociência Jonah Lehrer: Ver Jonah Lehrer, “Accept Defeat: The
Neuroscience of Screwing Up”. Wired, jan. 2010.
“Pense nisso”: Todas as citações de Jerker Denrell vêm de minha entrevista com ele ou de Jerker
Denrell, “Vicarious Learning, Undersampling of Failure, and the Myths of Management”,
Organization Science, n. 14, 2003, pp. 227-43; e de Jerker Denrell, “Selection Bias and the Perils
of Benchmarking”, Harvard Business Review, abr. 2005.
pesquisa de Denrell com analistas da imprensa: Jerker Denrell e Christina Fang, “Predicting the Next
Big Thing: Success as a Signal of Poor Judgment”, Management Science, n. 56, 2010, pp. 165367. Ver também Joe Keohane, “That Guy Who Called the Big One? Don’t Listen to Him”, Boston
Globe, 9 jan. 2011.
O Dome tem uma marca evidente: Ros Coward, “Wonderful, Foolish Dome”, Guardian, 12 mar. 2001.
: Neil Steinberg, Complete
and Utter Failure. p. 3.
“A queda nos traz para o chão [...].”: Natalie Goldberg, The Great Failure. Nova York: HarperCollins,
2005. pp. 1-2.

8. MEMENTO MORI
“Ninguém acredita na própria morte”: Sigmund Freud, Reflections on War and Death. Nova York:
Moffat Yard, 1918, versão digitalizada no Google Books. p. 41.
“Matar, nos negócios [...].”: Sam Keen, prefácio para Ernest Becker, The Denial of Death. Nova York:
Free Press, 1973, edição do Kindle [Ed. bras.: A negação da morte.
Rio de Janeiro: Record, 2007].
Outro conjunto típico de experiências de gestão do terror: As experiências de Rutgers são Mark
Landau et al., “Deliver Us from Evil: The Effects of Mortality Salience and Reminders of 9/11
on Support for President George W. Bush”, Personal and Social Psychology Bulletin, n. 30,
2004, pp. 1136-50.
Os cristãos mostram mais negatividade em relação aos judeus: “Evidence for Terror Management
Theory: II. The Effect of Mortality Salience on Reactions to Those Who Threaten or Bolster the
Cultural Worldview”, Journal of
Personality and Social Psychology, n. 58, 1990, pp. 308-18.
Os conservadores se tornam mais conservadores: Abram Rosenblatt et al., “Evidence for Terror
Management Theory: I. The Effects of Mortality Salience on
Reactions to Those Who Violate or Uphold Cultural Values”, Journal of

Personality and Social Psychology, n. 57, 1989, pp. 681-90.
reações mais intensas de nojo: Jamie Goldenberg et al., “I Am Not an Animal: Mortality Salience,
Disgust, and the Denial of Human Creatureliness”, Journal of Experimental Psychology, n. 130,
2001, pp. 427-35.
Um dos artigos afirma: Ibid.
simpático à teoria criacionista do “design inteligente”: Jessica Tracy et al., “Death and Science: The
Existential Underpinnings of Belief in Intelligent Design and Discomfort with Evolution”, PLoS
One, n. 6, 2001.
“Bem”, disse-lhe Becker: Ver Sam Keen, “How a Philosopher Dies”. Disponível em:
. Acesso em: 15 nov. 2013.
“Gradual e relutantemente”: Sam Keen, prefácio para Ernest Becker, The Denial of Death.
como aponta o filósofo contemporâneo Thomas Nagel: Todas as citações de Nagel vêm de “Death”,
in: Mortal Questions. Nova York: Cambridge University Press, 1979, pp. 1-10.
Jean-Paul Sartre: Citado em Irvin Yalom, Staring at the Sun. San Francisco: Jossey-Bass, 2008. Edição
do Kindle.
um dos países mais felizes: Dois exemplos são uma pesquisa Ipsos Global que colocou o México em
terceiro, esmiuçada em “World Is Happier Place Than in 2007 — Poll”, Reuters, 10 fev. 2012;
e as conclusões do projeto
Happiness Barometer [Barômetro da felicidade], de 2010, patrocinado pela Coca-Cola em
parceria com a Universidade Complutense de Madri, que pôs o México em primeiro lugar;
disponível em: .
Acesso em: 15 nov. 2013.
“para lhe pedir: ‘Proteja-me esta noite [...].”: Citado em Elizabeth Fullerton, “Booming Death Cult
Draws Mexican Gangsters, Police”, Reuters, 13 maio 2004.
“para lhe pedir: ‘Proteja-me esta noite [...].”: Citado em Judy King, “Los Días de los Muertos”.
Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2013.
EPÍLOGO
“Na nossa tradição”: Steven Edward Jones, Satire and Romanticism. Nova York: Palgrave Macmillan,
2000. p. 196.
marco fundamental: Citado em ibid., pp. 195-6.
“Eu não estava tendo uma discussão, mas uma elucubração [...].”: Citado em Jacob Wigod, “Negative
Capability and Wise Passiveness”, PMLA, n. 67, 1952, p. 383-90.
“Ele nunca vai chegar a uma verdade”: Todas as citações de Paul Pearsall vêm de Awe:
The Delights and Dangers of Our Eleventh Emotion. Deerfield Beach, Flórida: Health
Communications, 2007.

“openture [...].”: Aldous Huxley, Complete Essays 1939-1956, p. 225.
“A competência e os resultados da competência [...].”: Lao Tzu, Tao Te Ching : A New English Version.
Interpretado por Stephen Mitchell. Nova York: Harper Collins, 1991. p. 27.
p. 190 “O bom viajante não tem planos fixos [...].”: Lao Tzu, Tao Te Ching : A New English Version.
Interpretado por Stephen Mitchell. Nova York: Harper Collins, 1991. p. 27.

JEFF MIKKELSON

OLIVER BURKEMAN é jornalista do The Guardian, onde escreve
semanalmente na coluna “This column will change your life” [Esta
coluna mudará a sua vida], em que fala sobre psicologia, autoajuda,
cultura e sobre a ciência da felicidade. É vencedor do prêmio Foreign
Press Association’s Young Journalist of the Year e ficou entre os
finalistas do Orwell Prize. Já trabalhou em Londres, Washington e
Nova York e escreve também para o jornal Guardian US e para a
revista inglesa
Psychologies.
Copyright © 2012 by Oliver Burkeman

A Editora Paralela é uma divisão da Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.
TÍTULO ORIGINAL The Antidote: Happiness For People Who Can’t Stand Positive Thinking
CAPA Eduardo Foresti
PREPARAÇÃO Andressa Bezerra Corrêa
REVISÃO Larissa Lino Barbosa e Renato Potenza Rodrigues
ISBN 978-85-8086-925-5

Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ
S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
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Telefone (11) 3707-3500 Fax (11)
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Title                           : Manual Antiautoajuda
Author                          : Oliver Burkeman
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